sábado, 14 de abril de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 48

 



 
                48.
              
         A imagem de Hokusai suscita a questão, óbvia e irrecusável, de saber que destino terão os tripulantes dos oshiokuri-bune logo que a grande onda desabar em seu redor.  
 
         O rosto fechado e inexpressivo dos marinheiros levaria a crer que estão prestes a morrer, mantendo todavia a fleuma sacrificial e o empenho em chegar ao seu destino, cumprindo a missão de entregar a sua carga de peixe no mercado de Edo.
 
         A dimensão da onda, de dez a doze metros, e o efeito visual criado por Hokusai para a tornar ainda maior (cf. Notas sobre a Grande Onda – 45), favorecem a impressão de uma morte iminente, quase suicidária.
 
Theodore Géricault, La Radeau de la Méduse, 1819
 
 
         Seria tentador, perante isso, fazer analogias com outras obras de arte produzidas pela mesma altura, como La Radeau de la Méduse, que Théodore Géricault pintou entre 1818 e 1819, ou seja, não muito antes de Hokusai iniciar a série Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji.
 
         Poder-se-ia, no mesmo sentido, convocar as considerações do filósofo alemão Hans Blumenberg em Naufrágio com Espectador. Paradigma de uma metáfora da existência (tradução portuguesa, Lisboa, Vega, 1990), as quais assentam apenas em referências ocidentais no que à representação do mar diz respeito – ainda assim, o carácter potencialmente universalizável de algumas dessas referências faz com que o ensaio de Blumenberg seja tratado numa próxima Nota.    
 
           A impressão de uma morte iminente permitiria, de igual modo, traçar um ponto de contacto com as imagens jornalísticas de pessoas about to die, para usar o título do ensaio de Barbie Zelizer (About to Die. How News Images Move the Public, Oxford, Oxford University Press, 2010). Entre as dezenas de exemplos apresentados por Zelizer, escolhe-se um relacionado com a realidade japonesa: o homicídio em 1960 de Inejiro Asanuma, líder do Partido Socialista do Japão, morto a golpes de sabre durante um debate televisivo por Otoya Yamaguchi, um estudante nacionalista de extrema-direita, de dezassete anos, imagem captada por Yasushi Nagoa, repórter do diário de Tóquio Mainichi e difundida pela UPI por todo o mundo (cf. Barbie Zelizer, ob. cit., pp. 183ss).  
 

Yasushi Nagoa, Homícidio de Inejiro Asanuma (Tóquio, 12 de Outubro de 1960) 

 
 
 
         Simplesmente, há razões para crer que, pese o dramatismo da cena retratada, os marinheiros de A Grande Onda não se encontram na iminência de morrer (ou não se encontram necessariamente na iminência de morrer). O perigo está presente, como é óbvio, e o risco de morte também. Aliás, é muito mais na instauração da dúvida do que na assunção definitiva da morte iminente que reside um dos grandes tópicos narrativos da xilogravura de Katsushika Hokusai.
 
Quanto ao mais, ela corresponde à ilustração de uma jornada de trabalho no mar, reconhecível pelos potenciais compradores da gravura que aspiravam tê-la como ornamento nos seus lares. Esta conclusão decorre, com bastante fluidez e segurança, de outras figurações marítimas feitas por Hokusai, em que os vestígios do perigo são muito menores. Pese as dimensões das ondas, o modo como são apresentadas afasta do espectador qualquer dúvida sobre um desfecho fatal para os tripulantes dos navios que, bem ou mal, parecem adaptar-se ao gigantismo das vagas.
 

 
 
Katsuhika Hokusai, Chōsi na província de Shōshū (da série Mil Retratos do Mar, 1833)

 
Katsushika Hokusai, Oshiokuri hatō tsūtsen no zu, 1804-1806
Museu da Cidade de Nagoya
 
 
 
Katsushika Hokusai, Kanagawa oki Honmoku no zu,1807-1809
 
 
 
Os exemplos mais ilustrativos são Chōsi na província de Shōshū (da série Mil Retratos do Mar, Chie no umie, de 1833), posterior à Grande Onda, mas também duas gravuras anteriores a ela: Oshiokuri hatō tsūtsen no zu, de 1804-1806, e Kanagawa oki Honmoku no zu, de 1807-1809.
 
Há ainda um exemplo merecedor de realce pela sua grande afinidade com A Grande Onda. Trata-se de um desenho de 1835-1838 destinado à impressão de uma xilogravura da série Cem Poemas por Cem Poetas, Explicados pela Nutriz. Conservado no Victoria and Albert Museum, de Londres, o desenho evoca o poeta Fujiwara no Tadamichi (1096-1164) e também ele mostra um navio que tenta libertar-se das garras ou tentáculos ameaçadores de uma onda de grandes proporções. Uma vez mais, e como acontecia no modo de representação japonês, a leitura deve ser feita da direita para a esquerda, sendo deste lado que surgem os elementos novos que dão entrada em cena. 
 

Desenho «Poeta Fujiwara no Tadamichi» (da série Cem Poemas por Cem Poetas, Explicados pela Nutriz, 1835-1838)
Victoria and Albert Museum, E.3716-1910

 
 
É possível sustentar, assim, que A Grande Onda surge como um prolongamento ou está na linha dessas figurações, aditando-lhe tão-só elementos que reforçam a noção de risco ou possível tragédia, com uma evocação possível da proximidade da morte, mas sem que esta se possa considerar central para a dinâmica da representação.
 
Quando muito, suscita-se no observador a inquietação sobre o destino final dos navegantes após a rebentação da onda, mas não é possível afirmar, de modo algum, que A Grande Onda é o retrato inequívoco da morte prestes a acontecer.  
 
  
 

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