segunda-feira, 2 de abril de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 41

 
 
 
 
 
41.
 
«Manji [Hokusai] estava doente e nenhum tratamento poderia já salvá-lo. Morreu dessa doença ao início da manhã, à sétima hora [quatro horas]. Quis informá-lo o mais rapidamente possível do sucedido. Ei hai [respeitosamente escrito por] Ei» − escreveu Eijo no décimo oitavo dia do quarto mês de 1849.
A filha de Hokusai acrescentou em letras mais pequenas, junto à morada: «O funeral será amanhã, décimo nono dia, à quarta hora [cerca das dez horas]». 

    O bilhete que dava conta da morte de Katsushika Hokusai, ocorrida a 10 de Maio de 1849 (segundo o calendário europeu), foi enviado a um seu discípulo, sendo provável que a filha do mestre tenha escrito a muitas outras pessoas, informando-as do falecimento do pai. Entre as dezenas ou centenas de bilhetes que foram mandados, apenas este sobreviveu, encontrando-se hoje numa colecção privada no Japão. O seu destinatário era Fukawa (Kōsai) Hokushin (1824-1876), que se diz ter sido pupilo de Hokusai desde os doze anos de idade.
Cerca de cem pessoas acompanharam o cortejo fúnebre até ao templo Seikōji, incluindo alguns samurais que transportavam aljavas com lanças e caixas de viagem lacadas, facto nunca visto nos enterros dos moradores nos bairros populares de Edo (actual Tóquio), comentado com inveja entre os vizinhos do morto. O caixão, porém, era modesto e o dramaturgo Yomo no Umehiko recordou que fora comprado graças ao contributo de discípulos e amigos do mestre falecido.   
Pouco se sabe da existência de Eijo (ou Ei, O-Ei, Ōi), a filha de Hokusai que com ele vivia há décadas, desconhecendo-se sequer quando nasceu ou morreu (terá nascido por volta de 1800 e morrido seguramente após 1857). Sabe-se que era a sua terceira filha, fruto do segundo casamento. Juntamente com as irmãs – Miyo, Tatsu e Nao –, ajudava o pai na venda dos seus trabalhos, cabendo ao irmão abraçar a profissão de fabricante de espelhos, na qual iria ser um artesão bem-sucedido. Era impensável que, à semelhança do irmão, seguisse uma profissão, ainda que, segundo parece, numa fase mais tardia da sua vida Eijo conseguiu reunir meios próprios de sustento através do fabrico e da venda de bonecas keshi ningyō. Por volta de 1824, Eijo casou com o pintor Tsutsumi (Minamisawa) Tōmei, mas o casamento acabou rapidamente em divórcio, crê-se que logo três anos depois, em 1827, correndo rumores de que a ruptura conjugal se deveu ao facto de Eijo ter comentado mordazmente a falta de talento do seu marido.
Kotome, a segunda mulher de Hokusai, morreu em 1828, sendo essa a data provável em que Eijo, que nunca voltou a casar, foi viver com o pai. O seu nome artístico, Ōi, significa «seguidor de Iitsu», o que permite afirmar com bastante segurança que Eijo se juntou a seu pai e começou a trabalhar com ele no período em que Hokusai usou o nome «Iitsu», ou seja, entre 1820 e 1834.
Eijo terá, portanto, acompanhado de muito perto a criação de Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji, como refere Timothy Clark, «Late Hokusai, backwards», in Timothy Clark (ed.), Hokusai: Beyond the Great Wave, Londres, Thames & Hudson-The British Museum, 2017, p. 19 (cf. também este texto de Julie Nelson Davies, das Freer and Sackler Galleries, no blogue do Museu Britânico).
É na série Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji que se insere A Grande Onda. No limite, poder-se-ia até aventar a hipótese de Eijo ter tido uma participação activa no processo de elaboração da obra-prima do pai, algo não totalmente implausível se tivermos em conta a proximidade entre o mestre e a sua filha no plano artístico e pessoal, assente na convivência em comum numa etapa da vida de Hokusai marcada por acontecimentos dolorosos: a morte de uma filha amada, em 1821; os tormentos passados com as dívidas de jogo de um dos netos, que acaba por ser banido de Edo; a morte da segunda mulher, em 1828; um acidente vascular no final da década de 1820, que afectou significativamente as suas capacidades de trabalho, tornando-o bastante dependente do apoio dos discípulos e, em particular, da filha. Ainda assim, não existem quaisquer provas que permitam afirmar que A Grande Onda foi feita em co-autoria por Hokusai e pela sua filha Eijo (da qual, aliás, não se conhecem trabalhos em xilogravura, exceptuando as ilustrações para uma nova edição do clássico Tesouro de Educação para Mulheres, de 1629, feita por Takai Ranzan em 1847).
 
Katsushika Ōi, ilustrações para Tesouro de Educação para Mulheres, 1847
Museu Britânico, 1979,0305,0.558
 
 
 
Investigações recentes sobre a obra de Eijo, levadas a cabo por Kubota Kazuhiro (v.g., na monografia Hokusai musume, Ōi Eijo shū, Tóquio, 2015), sustentam que muitos dos seus traços característicos também se encontram nos trabalhos assinados ou não assinados de Hokusai. Entre eles, a forma minuciosa de captar a luminosidade e os sombreados, num estilo «europeu» que podemos observar, por exemplo, na pintura Yoshiwara à Noite, de 1844-1854, a mais famosa obra de Eijo (ou Katushika Ōi). A gradação subtil das zonas de luz sombra evoca uma atmosfera onírica, como salienta Asano Shūgō no catálogo Beyond the Great Wave (ob. cit., p. 297), o qual afirma que, apesar de este trabalho não estar assinado, o facto de três caracteres do nome «Ōi Eijo» aparecerem desenhados nas lanternas da pintura permitem atribuir a sua autoria, sem qualquer dúvida, à filha de Katsushika Hokusai. Retrata-se a entrada e a sala de visitas de um bordel no «bairro do prazer» de Yoshiwara, com as cortesãs em exposição, a atrair clientes; algumas delas são perceptíveis apenas pelas silhuetas e um vulto, com o perfil recortado a negro, fala com os homens – ou, talvez mais rigorosamente, com um homem –, tendo o estabelecimento, na lanterna da entrada, o dístico «Izumiya» (vários bordéis de Yoshiwara ostentavam esse nome, pelo que não é possível determinar qual se tratava). 
 
Katsushika Ōi, Yoshiwara à Noite, 1844-1854
Museu Memorial de Arte de Ōta, Tóquio
 
 
 
Por outro lado, e mais especificamente, há detalhes singulares nas obras de Eijo, tais como os dedos das mãos longos afilados e as unhas desenhadas de forma estilizada, os tufos de cabelo recobrindo o rosto e a colocação nas imagens de um elemento arquitectónico vertical, geralmente um pilar. Algumas dessas características estilísticas encontram-se também em trabalhos de Hokusai da fase subsequente a 1820, existindo inclusivamente obras cuja autoria não é possível determinar com absoluta certeza, sendo atribuídas a Katsushika Hokusai ou à filha, ou a ambos. É o caso dos dois rolos que figuram de forma espantosa, com extremo realismo, crisântemos tomoe-nishiki e outras variedades dessa flor.


Katushika Hokusai ou Katsushika  Ōi (ou ambos), Crisântemos, finais da década de 1840
Museu Hokusai, Obuse



    A obra é datada de finais da década de 1840, ou seja, da última fase da vida de Hokusai. Como refere Matsuba Ryōko no catálogo citado (p. 302), as cores vivas e os detalhes delicados são característicos do estilo de Eijo e as tonalidades dos pigmentos azuis têm uma clara semelhança com uma outra obra da sua autoria, Mulher a Bater Roupa ao Luar, assinada «do pincel da mulher Ei, por especial pedido» (a assinatura exibe sinais de ter sido rasurada, possivelmente por um comerciante que, atenta a similitude de estilo com o de Katsushika Hokusai, terá tentado fazer passar esta obra como sendo da autoria do mestre). Além da delicadeza dos azuis e dos veios da madeira, bem como dos sombreados do céu nocturno, note-se a forma estilizada como são desenhadas as unhas do pé da mulher, uma característica singular do estilo de Katushika Ōi, cujo pai confessava, com admiração, ser incapaz de igualar nos retratos femininos. 
 


Katsushika Ōi, Mulher a Bater Roupa ao Luar, década de 1840
Museu Nacional de Tóquio, A-11653
 
 
 
 
Vemo-la na companhia de seu pai num desenho da autoria de um discípulo de Hokusai, Tsuyuki Kōshō (ou Iitsu III), elaborado em data incerta, mas decerto anterior a 1893. Trata-se de um desenho feito de memória, com base numa visita que Kōshō fez ao seu mestre, na altura com oitenta anos, e a sua filha, quando ambos moravam em Kamezawa-chō, no bairro de Fukagawa, em Edo. Segundo consta, ambos eram pouco cuidados na arrumação e na limpeza doméstica, para o que terá contribuído o facto de Hokusai ter mudado de residência muitas dezenas de vezes ao longo da vida. Ao que se supõe, o desenho foi elaborado para Iijima Kyoshin quando este redigia a biografia de Hokusai, considerado ainda hoje um texto fundamental para conhecer a vida e a obra do autor de A Grande Onda (e que será publicado em breve em língua inglesa, no âmbito do projecto Late Hokusai: Thought, echnique, Society).
 
Tsuyuki Kōshō, Hokusai e Eijo em casa,
Dieta Nacional do Japão, Tóquio, WA 31-12

Recriação do desenho de Tsuyuki Kōshō no Museu Sumida Hokusai, Tóquio
 
 
 
O ancião pinta, sob o olhar da filha, apoiada no seu cachimbo (Eijo também gostava de beber, ao contrário do pai, a ponto de o confessar na assinatura de uma das suas obras). O desenho de Kōshō foi recentemente recriado no Museu Sumida Hokusai, em Tóquio, aberto ao público em Novembro de 2016. Na legenda desse desenho diz-se que Hokusai se mantinha ao calor da sua mesa aquecida (kotatsu) desde o Outono até à Primavera, e aí dormia, desenhava, recebia os visitantes. No lado esquerdo do desenho, uma velha caixa para armazenar tangerinas mikan guardava agora uma imagem do monge Nichiren ou Nitiren (1222-1282), fundador do ramo Nitiren do budismo japonês, de que Hokusai era fiel devoto.
Se a hipótese de co-autoria de A Grande Onda não tem elementos sólidos que a sustentem, é possível, ainda assim, afirmar que Eijo terá certamente acompanhado com grande proximidade, pessoal mas também artística, a elaboração da série Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji. Sendo actualmente comum valorizar-se o contributo silenciado das mulheres em feitos que até aí se julgava serem de exclusiva autoria masculina – pense-se, entre tantos outros, no livro Galileo's Daughter, de Dava Sobel – a colaboração de Eijo com o seu pai, factualmente comprovada, é um dado extremamente interessante para a compreensão das etapas finais da obra de Katsushika Hokusai.
O trabalho de Eijo tem sido alvo da atenção crescente de especialistas na obra de Hokusai, mas já ultrapassou esse círculo restrito.
Em 2010, a escritora e feminista canadiana Katherine Govier (1948-) publicou The Ghost Brush (também editada com o título The Printmakers’s Daughter), novela que, como o nome indica, pretende explorar ficcionalmente a ideia de uma co-autoria silenciada dos trabalhos tardios de Katsushika Hokusai (não por acaso, alguma crítica sustentou que o livro de Govier acentuava em demasia o tema da repressão das mulheres no Japão do século XIX: ver aqui)
 
Keiichi Hara, Miss Hokusai, 2015
 
 
 Mais recentemente, foi estreado em 2015 o filme Miss Hokusai, realizado por Keiichi Hara (1959-), adaptação cinematográfica anime da obra mangá Sarusuberi/Miss Hokusai que Hinako Suigiura (1958-2005) produziu entre 1983 e 1987, tendo a filha de Katsushika Hokusai como personagem principal.
 
 




 

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