sexta-feira, 13 de abril de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 47

 




         47.
 
         Como tem sido observado por alguns comentadores de A Grande Onda, a xilogravura de Katsushika Hokusai – e aqui residiu um dos seus principais atractivos no Ocidente de finais do século XIX, que de algum modo se prolonga até aos nossos dias – captura a acção de um dos poderes elementares da Natureza, o mar em fúria, razão pela qual teve um impacto profundo sobre a imaginação romântica oitocentista e o seu culto do sublime.
 
         Por outro lado, a sua proveniência de um lugar remoto e exótico, impregnado de uma cultura em larga medida idealizada, pode levar-nos a concluir que o japonisme, de um modo geral, e o fascínio pela Grande Onda, em particular, confirmam a afirmação de Said segundo a qual «o Oriente é menos importante como material humano do que como elemento de um projecto redentor romântico» (cf. Edward W. Said, Orientalismo. Representações ocidentais do Oriente, tradução portuguesa, Lisboa, Livros Cotovia, 2004, p. 180).
 
         A pertinência desta observação, quando aplicada à obra de Katsushika Hokusai, torna-se mais evidente se tivermos presente que, ao contrário do que poderia sustentar uma visão romantizada dessa obra, as xilogravuras do ukiyo-e visavam satisfazer desejos de consumo populares e, digamos assim, «de massas». A Grande Onda, bem como todas as gravuras da série Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji, entre os milhares que se produziram em Edo na altura, serviam, de certo modo, como os pósteres da actualidade, sendo ademais desvalorizadas pelas elites japonesas da altura como expressão de um gosto marcadamente popular e pouco sofisticado.
 
         Em face disto, não deixa de ser irónico que, com o passar dos anos, e muito por efeito da sua recepção e difusão no Ocidente, A Grande Onda tenha adquirido um estatuto de símbolo nacional nipónico ou seja vista como expressão da quintessência da identidade japonesa no que esta tem de mais elaborado ou complexo.
 
         A constatação desta ironia aprofunda-se se pensarmos que este processo não se cinge à Europa ou à América, tendo sido incorporado – pelas mais diversas razões, incluindo turísticas ou comerciais – no Japão, que só recentemente começou a valorizar o trabalho de Hokusai e em especial A Grande Onda, o que talvez seja, ao cabo e ao resto, um reflexo, mais um reflexo, da ocidentalização do país iniciada no pós-2ª Guerra Mundial.
 
         O conhecimento das condições materiais de criação, produção e comercialização de A Grande Onda não implica necessariamente retirar-lhe o seu carácter «aurático» (Walter Benjamin), que é autónomo e se desenvolve independentemente daquele específico circunstancialismo histórico.  
 
         Além disso, se em A Grande Onda podemos ver tão-só a representação de uma actividade laboral corrente – a pesca e o transporte de peixe para o mercado de Tóquio –, retratada para mais ao gosto popular e numa linguagem visual «fácil», não é menos certo que nesta e noutras obras de Hokusai a marca da sua espiritualidade é muito vincada, designadamente na figuração do Monte Fuji. Simplesmente, esses dois aspectos – o comercial e o espiritual – não são, e sobretudo não eram no Japão daquela época, antagónicos ou contraditórios, sobretudo se tivermos presente que a espiritualidade do autor (e do editor, Nishimuraya Yohachi) era uma religiosidade «popular» e compósita, que agregava diversos elementos (v.g., o culto da Estrela do Norte) que de modo algum se excluíam entre si, como observa Angus Lockyer no ensaio «Hokusai’s thought», in Timothy Clark (ed.), Hokusai. Beyond the Great Wave, Thames & Hudson-The British Museum, 2017, pp. 28ss.
 
          
 
 

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