quarta-feira, 4 de abril de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 42

 
 


 
 
42.
 
Entre Outubro de 2006 e Janeiro de 2007 esteve patente ao público, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a exposição «Mundos de Sonho. Gravuras japonesas da colecção de Robert O. Muller», com curadoria de James T. Ulak.
 
Robert Otto Muller (1911-2003) foi um importante coleccionador de gravuras japonesas, sobretudo do período Meiji, ou seja, de uma fase posterior àquela em que se notabilizaram Katsushika Hokusai ou Utagawa Hiroshige. O seu acervo, composto por mais de 4.000 gravuras e outros documentos, integra actualmente a Robert O. Muller Collection da Arthur M. Sackler Gallery do Smithsonian, em Washington, fruto da doação feita ainda em vida do coleccionador.

 
Robert e Inge Muller no Imperial Hotel em Tóquio, 1940 
 
 
Muller comprou a sua primeira gravura japonesa em 1931 (uma paisagem de Kawase Hasui, adquirida em Nova Iorque), quando tinha apenas 20 anos e estudava em Harvard. Nascido em Pelham, Nova Iorque, em 5 de Outubro de 1911, Robert nasceu num ambiente privilegiado, sendo bisneto do fundador da farmacêutica Pfizer. De ascendência germânica, aprendeu alemão e, ao longo da vida, sempre se manteve interessado na cultura alemã, especialmente a ópera. Após formar-se em Harvard, em 1934, trabalhou episodicamente na Lufthansa e graças aos contactos aí feitos pôde viajar até Frankfurt no famoso Hindenburg, viagem pela qual pagou a astronómica quantia de 400 dólares, só ida. No regresso aos Estados Unidos, visitou Thomas Bates Blow (1854-1941), um proeminente botânico e coleccionador de gravuras japonesas que o familiarizou com as estampas do período Meiji e, em particular, com as da autoria de Kobayashi Kiyochika (1847-1915).
Robert Muller iniciou então a sua vasta colecção, beneficiando do facto de as gravuras do período que lhe interessavam não serem na época muito disputadas por um público que privilegiava as estampas dos séculos XVII a XIX, considerados a «idade de ouro» das xilogravuras nipónicas. O interesse pelas gravuras do período Meiji foi em larga medida promovido por Watanabe Shōzaburō (1885-1962), um empresário e editor que se apercebeu do potencial artístico mas sobretudo comercial dos trabalhos dessa época, mais acessíveis ao grande público e igualmente evocativos do «exotismo» nipónico. Em 1940, em viagem de lua-de-mel com a sua mulher Ingeborg Lee (1918-2004), Robert Muller visitou o Japão pela primeira vez, tendo aí permanecido cerca de três meses, com viagens de curta duração à Coreia e à China.
No regresso aos Estados Unidos, Muller abriu em Nova Iorque uma galeria dedicada a gravuras japonesas, mas o ataque a Pearl Harbor em Dezembro de 1941 e o início da guerra com o Japão impediram o desenvolvimento deste negócio: no dia do ataque a Pearl Harbor, Muller teve de se precipitar para a galeria, retirando da montra as gravuras japonesas em exposição; por outro lado, com a guerra fechavam-se os canais de fornecimento de gravuras que, com grande tenacidade negocial, Robert O. Muller estabelecera no Japão. Tendo decidido sair de Nova Iorque, Muller fixa-se no campo, no Connecticut, em 1946, sendo aí que reuniu a sua colecção de gravuras japonesas, que, como «gift to the nation»  legou em vida à Sackler Gallery, como informam Joan B. Mirvbiss e James T. Ulak no texto introdutório ao catálogo da exposição patente na Fundação Calouste Gulbenkian.

 
Tusji Kakō, Destruição de Dois Navios de Guerra Russos, 1904
Arthur M. Sackler Gallery, Washington; Robert O. Muller Collection, S2003.8.2787a-c
 
 
 
Não tendo exemplares da obra de Hokusai, a mostra patente em Lisboa exibiu, ainda assim, uma xilogravura de Tusji Kakō (1870-1931) onde é possível entrever a influência do mestre e, em especial de A Grande Onda (atente-se na onda junto ao convés do navio em primeiro plano, muito semelhante àquela que, na obra de Hokusai, mimetiza o Monte Fuji). Na verdade, o modo de figuração das ondas na gravura Destruição de Dois Navios de Guerra Russos, datada de 1904, tem afinidades notórias com A Grande Onda, sendo extremamente improvável que Kakō desconhecesse a opus magnum de Katsushika Hokusai. O mesmo também sucede, e de forma ainda mais patente, numa obra de Watanabe Nobukazu do mesmo ano (e não integrada na colecção de Robert Muller): Ataque Nocturno a Port Arthur.
 
Watanabe Nobukazu, Ataque Nocturno a Port Arthur, 1904
 
 
É inquestionavelmente interessante o facto desta similitude com A Grande Onda surgir numa gravura de propaganda de guerra, feita nos alvores do conflito russo-japonês de 1904-05. Não era, aliás, a primeira vez (nem a última) que, segundo parece, o célebre desenho de Hokusai inspirou obras de cariz propagandístico. Na verdade, algumas representações de batalhas navais da guerra sino-japonesa de 1894-1895 têm, ou aparentam ter, claras afinidades visuais com A Grande Onda.

 






 

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