Na
década de 1920, um jovem polícia inglês colocado em Burma matou um elefante. O
dono do elefante ficou furioso e o chefe da esquadra disse que aquele jovem
envergonhava a educação que recebera em Eton. O jovem chamava-se Eric Arthur
Blair e, mal regressou a Inglaterra de licença, abandonou a polícia para
abraçar a carreira das letras com o pseudónimo de George Orwell.
Ainda
hoje os seus biógrafos não se entendem sobre se Orwell terá mesmo morto um elefante
ou se é pura fantasia literária o que contou em “Shooting an Elephant”, em que
o protagonista não quer matar um elefante tresmalhado no bazar mas acaba por
fazê-lo devido à pressão da multidão ululante.
Topsy
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Muito
provavelmente, foi também a multidão ululante que levou à morte de Topsy, uma
elefanta executada por electrocussão em Nova Iorque, dia 4 de Janeiro de 1903.
Topsy nasceu na Ásia e foi contrabandeada às secretas para a América, onde fez
carreira no circo Forepaugh, cujo dono anunciou, falsamente, ser ela o primeiro
elefante indiano a nascer nos Estados Unidos. A história foi desmascarada pela
concorrência e, com o passar dos anos, Topsy tornou-se conhecida nos meios
circenses pelo seu temperamento rebelde e péssimo feitio. Em 1902 matou um homem.
Especula-se ainda hoje sobre o que se terá passado, mas as fontes mais
credíveis dizem que o homem procurava a todo o custo ser contratado pelo circo
Forepaugh e, numa manhã de 1902, entrou bêbado na zona dos animais e pôs-se a
arreliar os elefantes. Atirou-lhes areia para os olhos e, não contente, queimou
com um cigarro a ponta da tromba da elefanta Topsy, uma parte muito sensível do
corpo dos proboscídeos. Tão sensível que Topsy lhe deu com a tromba em cima, e
matou-o. A multidão, é óbvio, começou a ulular. E, como sempre, a imprensa ajudou
à festa, noticiando que a alimária já tinha um cadastro de doze homicídios, uma
mentira completa. Passados uns tempos, a elefanta foi vendida aos empresários
que construíam o Luna Park de Coney Island. Uma série de incidentes com o
tratador, outro bêbado violento, fez com que os donos do parque anunciassem que
a iriam matar – e em público. A execução da elefanta à vista de todos era,
pasme-se, um chamariz publicitário do novo parque de atracções. Pensaram até em
enforcar o bicho, mas, após demoradas negociações, foram dissuadidos desse
intento pela Sociedade Americana para Prevenção da Crueldade sobre os Animais.
Topsy livrou-se da forca, mas, anos depois, em 1916, uma elefanta chamada Mary
foi mesmo morta assim. Cinco toneladas de elefante penduradas numa grua enorme,
na cidadezinha de Erwin, no Tennessee, perante uma multidão de duas mil e
quinhentas pessoas, muitas das quais crianças.
O
caso de Topsy esteve esquecido durante décadas e só é lembrado porque existe um
filmezinho de breves segundos feito pelos estúdios de Thomas Edison (as
acusações de que o célebre inventor foi o mentor da cena não têm fundamento, ao
que parece). O que o filme não mostra é a multidão, que até pagou bilhete para
assistir àquilo, em teatro de crueldade. O recinto encheu por completo, muitos
treparam as vedações, outros presenciaram o ruim espectáculo do cimo de prédios
vizinhos. E outros tantos, muitos mais, viram o filme de Edison nas salas de
cinema. Um filme de 74 segundos que mostra um elefante acorrentado e drogado (por
misericórdia, deram-lhe antes cenouras envenenadas com cianureto de potássio) a
tombar entre nuvens de fumo, derrubado por uma corrente alternada de 6.600
volts.
Nos
nossos dias, claro, prestam-se infindas homenagens à elefanta Topsy. Fez-se uma
instalação artística em jeito de memorial, patente no museu de Coney Island, e
até um poeta duas vezes galardoado com o Pulitzer lhe dedicou pungentes
estrofes nas páginas lustrosas da revista New
Yorker. A multidão indigna-se agora com a barbárie dos seus antepassados.
Esquece-se, todavia, que, como se conta no livro Elephants on Acid, de Axel Boese, há bem poucos anos – em 1962,
para sermos exactos – uns cientistas do Oklahoma tiveram a infeliz ideia de administrar
a bonita dose de 297 miligramas de LSD ao elefante Tusko, numa experiência destinada
a avaliar os efeitos daquele alucinogénio, que se julgava poder curar o
alcoolismo e a esquizofrenia. Se um ser humano ingerir 25 microgramas de LSD –
menos do que o peso de um grão de areia – passa um dia inteiro a flutuar nas
nuvens; pois bem, a Tusko, um paquiderme de catorze aninhos, injectaram uma
dose três mil vezes mais potente, a maior alguma vez ministrada a um ser vivo. Evidentemente,
Tusko morreu. Morreu asfixiado, por paragem muscular, ao fim de uma dolorosa
agonia, lenta de oitenta minutos. E, à semelhança do ocorrido com a elefanta
Topsy, também fizeram um filme, até hoje guardado a sete chaves. Após a
tragédia, um dos cientistas veio defender-se com grande lata, dizendo que Tusko
poderia vir a ser assassino e que a
sua experiência tivera muito valor para a ciência, ao demonstrar que o LSD até mata
elefantes. Isso não impediu que, vinte anos depois, em 1982 um cientista da
Califórnia voltasse a dar LSD a um casal de elefantes, salvos a custo ao fim de
24 horas de alucinação.
A
multidão que hoje ulula, e bem, contra a electrocussão de Topsy, por vezes
esquece-se que a morte de seres humanos ainda é legal na maioria dos Estados
norte-americanos – 31 autorizam-na, contra 19 que a aboliram. Desde que foi
reinstaurada em 1976, a pena de morte foi aplicada a mais de 7.800 pessoas, das
quais 1.479 foram executadas. E, numa estatística ainda mais arrepiante, nos
tempos mais recentes – de 1973 até hoje –, 161 condenados acabaram por ser ilibados,
em média ao fim de onze anos de lancinante espera no corredor da morte. Quanto
a racismo, basta dizer que na Louisiana, por exemplo, a probabilidade de
condenação à morte é 97% mais elevada se a vítima for de raça branca do que se
for de raça negra. Dos executados por homicídios inter-raciais, houve 288
negros (sendo a vítima de raça branca) e apenas 20 brancos (sendo a vítima de
raça negra). 288 versus 20, leram
bem. A pena de morte não dissuade o crime, servindo apenas para satisfazer os piores
instintos das multidões ululantes. Um estudo do FBI, feito há dois anos, demonstrou
que os Estados sulistas, onde ocorrem mais de 80% das execuções, são os que continuam
a registar as mais altas taxas de criminalidade; décadas e décadas de pena de
morte não tiveram o mínimo efeito na prevenção do crime. Nos Estados do nordeste,
pelo contrário, com apenas 1% das execuções, é onde existe menos criminalidade.
Não admira, pois, que no mais completo inquérito feito aos maiores
criminologistas dos EUA, 88% tenham dito que a pena de morte não tem qualquer
efeito visível na prevenção do homicídio.
Lágrimas
para a elefanta Topsy? Sem dúvida. Mas não esqueçamos os bichos humanos, que
também são gente. Enquanto lê estas linhas, 3.000 pessoas aguardam vez nas
prisões dos EUA, o único país do Ocidente com pena de morte. Até parece
mentira, mas não é. Palavra de honra que não é.
(publicado
originalmente no Diário de Notícias)
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