Um conto sobre violência domestica*
Só
conseguiu chegar a casa muito depois das oito. Primeiro foi o chefe que lhe
pediu para ficar mais meia hora até chegar a Júlia, que tinha telefonado a
dizer que vinha atrasada por causa da mãe que estava doente. Depois foi o
autocarro que bateu numa furgoneta e ficou ali especado sem andar nem deixar
correr o trânsito até se preencher o raio dos papéis. E depois foi a Luísa da
mercearia que lhe contou aquela pouca-vergonha da mulher do barbeiro, ele sem
querer saber de nada, a deixar-se enganar, a fazer penteadinhos à maneira ao
comilão do amante, com a navalha na mão cheio de cuidadinhos para não sangrar o
menino.
Quando
chegou a casa, Maria Fernanda estava exausta. Mal entrou na cozinha pousou os
sacos de compras de qualquer maneira e pôs-se a lavar as mãos ainda antes de
tirar o casaco para começar a fazer o jantar ao marido.
Quando
limpava as mãos ao pano da louça, a voz do marido chegou-lhe da sala: «Sabes
que horas são?»
Sentiu
um estremeção pela espinha, mas sabia que tinha de recuperar o sangue-frio para
aturar o bruto.
«Nem
sabes o dia que eu tive hoje! Olha, o chefe, já não basta o que eu me esfalfo a
trabalhar, ainda me obrigou a ficar até chegar a estúpida da...»
Não
pôde continuar. O marido apareceu-lhe por trás, virou-a com um sacão e deu-lhe
um murro no queixo que a encostou à parede. Maria Fernanda não teve tempo de
levar as mãos à cabeça. O marido começou a esboteá-la e a dar-lhe pontapés nas
pernas.
Maria
Fernanda abandonou-se. Sabia que aquilo havia de durar um par de minutos.
Quando acabou, deixou-se ficar encostada à parede da cozinha. O marido virou
costas e a meio caminho do corredor disse: «Para a próxima vens a horas».
Doía-lhe
o corpo. Ainda nem há quinze dias tinham desaparecido as nódoas negras da coça
anterior. Já nem se lembrava do que ia fazer para o jantar.
Da
sala chegava-lhe o diálogo da novela. O marido voltara a afundar-se no sofá e
aumentava agora o volume no televisor, juntando-se aquele som a tantos sons
iguais de outras casas do prédio e do prédio em frente, sons que se uniam em
estranha estereofonia através das frinchas e dos tijolos de 11.
«-
Ôba, Emanuel, você está tentando me enganar?
«-
Mas, quirida, lhe disse já três vezes que o apartamento é muito caro. São
muitos milhões de cruzados! Eu não posso dispor dessa quantia nesse momento!
«-
E porque não utiliza.... não sei... lá no banco... você afinal é um dos
donos...
«-
Quirida! O que está querendo que eu faça? Eu não posso...
Não é isso meu amô... É que eu queria tanto
aquele apartamento sobre a baía... O mar ali mesmo à nossa beirinha... Nós os
dois nos amando ao luar...»
A
novela embalava o ar morno da noite. Maria Fernanda continuava inerte na
cozinha. Se ao menos tivessem filhos... Talvez isto não acontecesse...
Sentiu
uma torção no estômago e sabia que não era fome. Filhos! Como poderia ter
filhos daquela besta! Ainda bem! Haviam de morrer os dois sem deixar rasto no
mundo! Haviam de morrer sem que ninguém chorasse por eles! Haviam de morrer
sozinhos, naquela porcaria de casa, naquela porcaria de bairro, naquela
porcaria de terra! Haviam de morrer.... Haviam de morrer... morrer... morrer...
A
palavra pareceu-lhe mais doce do que habitualmente. Morrer. Pegar numa faca da
cozinha e espetá-la no coração. Abrir os pulsos. Tomar remédio do escaravelho,
se soubesse o que isso era. Atirar-se da janela. Pendurar uma corda da roupa no
pescoço. Engolir os comprimidos todos acumulados nas gavetas da casa de banho.
Morrer...
morrer... Hei-de morrer eu... hás-de morrer tu...
O
corpo reagiu à ideia. Recuperou forças. Com dores a dificultar-lhe os
movimentos, tirou o casaco e pôs o avental com a algibeira grande.
Abriu
a gaveta dos talheres sem fazer barulho e tirou de dentro uma faca de cortar
peixe. Na sala, continuava a novela.
«-
E seu seguro de vida?
«-
Você ´tá louca, Joana?! Seguro de vida é seguro de vida! Quer me matar?
«-
Filipe! Você sabe que eu o amo! Eu só lhe quero o bem! Mas gostava tanto
daquele apartamentinho...»
Maria
Fernanda agarrou a faca com força, escondendo-a dentro da algibeira do avental.
Tirou os sapatos e começou a avançar descalça em direcção à sala, em silêncio
total, debaixo do som amplificado da novela.
«-
Sim, Joana, havemos de ter esse apartamento. Mas venha cá. Me beije...»
Maria
Fernanda estava à porta da sala. Sabia que o marido não a podia ver. O sofá
estava de costas para a porta, a meio da sala comum de estar e comer. A mão de
Maria Fernanda segurava firmemente a faca do peixe. Na televisão, o homem e a
mulher da novela beijavam-se, mas um grande plano mostrou uma pistola no saco
que ela trazia ao ombro. A música tornou-se dramática.
O
marido de Maria Fernanda estava quase deitado. Só lhe via o cabelo espetado
aparecendo por cima da costas. Maria Fernanda deu mais um passo em silêncio e a
força que fazia no punho da faca transformava-se em suor. Já nem pensava no que
ia fazer, só se lembrava que a mão lhe podia escorregar pelo cabo da faca.
Estava quase atrás do sofá, preparando-se para tirar a faca do avental quando,
sem se mexer um milímetro, o marido lhe disse:
-
Anda para aqui ver isto, que é hoje que ela dá um tiro ao marido. Senta-te aqui
ao meu lado. Comemos depois qualquer coisa.
Maria
Fernanda nem chegou a perceber como tinha ele sentido a sua presença ali. Arrastou-se até ao sofá. Sem olhar o marido,
sentou-se ao lado dele e deixou-se enredar pela história da Joana que disparava
sobre o Filipe.
Eduardo Cintra Torres
* Escrevi este conto em
Junho de 1995. Há duas décadas, a violência doméstica não fazia parte da agenda
político-social portuguesa. Com mais tempo livre do que tenho hoje, atirei uma
série de contos breves para a gaveta. A maioria são “retardo-realistas”,
realistas fora do tempo em que o realismo era e é “aceitável”. Com a humildade
de não ser “escritor”, escrevi-os com um estilo inexistente, que é uma em si
mesmo uma inexistência, mas não sei se há neles estilo, e qual. Não têm título.
Este é o nº 6.
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