Bastaria atinar no fracasso
total que foram as entrevistas dadas pelo General Spínola a jornais e a
revistas, durante a sua viagem aos Estados Unidos, em Novembro de dezembro de
1975, na qualidade aspirante a revolucionário, para concluir que essa viagem
foi um malogro de todo o tamanho. Isto para não falar no fiasco que foi a
conferência de imprensa no National Press Club, em Washington, D.C., e a
entrevista ao jornalista português, Carlos Pinto Coelho, de que já se falou nas
kalendas gregas no blogue MALOMIL (aqui)
A fim de justificar esta
asserção, vamos apresentar três casos.
Primeiro Caso
ALMOÇO DO GENERAL
SPÍNOLA COM O JORNALISTA TAD SZULC
Por intermédio do meu colega
e amigo, Doutor John Plank, professor de Ciência Política na University of
Connecticut e antigo Assessor do Secretário de Estado para assuntos
latino-americanos, durante o Governo de John F. Kennedy, foi combinado um
almoço entre o General Spínola e Tad Szulc, um dos jornalistas mais
prestigiosos dos Estados Unidos, por ocasião de uma das várias viagens do
General a Washington, D.C.. Como Tad Szulc fala Português fluentemente (esteve
no Brasil, como jornalista, durante a II Guerra Mundial), o almoço devia ser
apenas a dois. Mas, a insistências do General, eu estive também presente.
Porém, fiz questão de nada dizer durante todo o almoço de trabalho, para nem de
longe interferir no que se esperava viesse a dar origem a um artigo
importantíssimo sobre o deplorável estado em que Portugal se encontrava durante
o regime do PREC e sobre o programa de democratização de Portugal, nos moldes
propostos pelo MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal), fundado
pelo General Spínola. Entretanto, desse encontro não resultou nem uma linha. E
porquê? Porque o General mais uma vez se recusou a dizer uma única palavra
sobre o 11 de Março e se furtou a responder a outras perguntas pertinentes, sob
o ponto de vista jornalístico.
Segundo caso
ALMOÇO COM SUSAN FRAKER, JOVEM JORNALISTA DA NEWSWEEK
Mal tínhamos acabado de
sentar-nos à mesa, já a jovem jornalista nos estava a mostrar cópias de
entrevistas que ela tinha feito a reconhecidos líderes internacionais, cujos
nomes não recordo agora, com a excepção de Salvador Allende, já desaparecido do
mundo dos vivos, não se sabe se por assassinato se por suicídio. Fácil era de
perceber que ela se sentia na necessidade de assim proceder, para que a
tomássemos a sério como jornalista, como se as credenciais de correspondente da
Newsweek, que já conhecíamos,
não fossem suficientes para isso. E a verdade é que ela tinha toda a razão para
assim proceder, pois a primeira coisa que o General Spínola fez foi chamar a
atenção do Capitão Ramos e a minha para a aparente falta de maturidade da
jornalista, baseado na sua idade, tendo levado essa observação tão longe, que
foi ao ponto de pôr em dúvida a sua competência. Tanto mais, dizia-nos ele, que
isso lhe fazia lembrar experiências muito desagradáveis com jornalistas
portugueses, durante os parcos meses que ocupou o cargo de Presidente da
República Portuguesa, após o 25 de Abril.
Escusado é dizer, portanto,
que durante o almoço no restaurante de alto gabarito comeu-se mais do que se
falou, limitando-se essencialmente o General Spínola a propor à jovem
jornalista da Newsweek que em tempo oportuno lhe submetesse a perguntas por
escrito.
As perguntas da jovem
jornalista vieram a ser submetidas ao General Spínola por escrito, como ele
sempre exigia, por suma cautela, e as respostas do General vieram a ser dadas,
por escrito também, mas a dita entrevista nunca veio a ser publicada na Newsweek,
pela mesma razão por que outras também não vieram a ser publicadas nos órgãos
de imprensa a que se destinavam, devido ao facto de o General se recusar a
falar dos assuntos que mais interessavam aos entrevistadores, a começar pelo
papel desempenhado pelo General no malogrado golpe de 11 de Março de 1975. Essa
entrevista, assim como a concedida a Carlos Pinto Coelho, viria a ser publicada
mais tarde no livro do General Spínola, Ao Serviço de Portugal, cuja primeira
edição data de 1976.
Terceiro caso
A ENTREVISTA QUE PODERIA TER SIDO E
QUE NÃO FOI
Para surpresa minha, mal
tínhamos chegado ao hotel, em Washington, D.C., recebo um telefonema no quarto
a dizer-me que estava uma pessoa na sala de recepção que desejava falar
urgentemente comigo.
Sem qualquer demora,
dirigi-me à recepção.
Como se já me conhecesse de
longa data, aproxima-se de mim um indivíduo muito bem posto e apresenta-se-me
como correspondente do Sunday Times,
depositando-me o cartão de visitas na mão e mostrando-me as credenciais de
jornalista.
– Como soube que eu estava
aqui? – perguntei eu com certo ar de suspense e meio intrigado.
– Nós os jornalistas temos a
nossa maneira de tomar conhecimento das coisas aparentemente secretas –
respondeu-me em tom meio jocoso o meu interlocutor.
– Isso, porém, não deixa de
ser estranho, pois nós não demos conhecimento a ninguém da nossa vinda a Washington,
para além de umas quantas pessoas com quem agendámos encontros de antemão. E
quanto ao hotel em que nos íamos hospedar, só nós o sabíamos.
– A verdade é que eu soube da
vinda do General Spínola a Washington e do hotel em que se iria hospedar e
estou aqui para lhe dizer que teria o maior interesse e o maior prazer em
entrevistá-lo para o Sunday Times
de Londres.
Que a minha alma ficou em
festa perante o santo atrevimento do correspondente de um dos jornais mais
importantes e prestigiosos do mundo nem vale a pena dizer. De maneira que, num
tom muito cortês, proferi estas palavras:
– Nesse caso, peço-lhe que
aguarde uns minutos, que eu vou falar com o General e expor-lhe o caso. Uma
coisa, porém, lhe posso garantir desde já: que, apesar de todo o nosso tempo
estar praticamente tomado, da minha parte tudo procurarei fazer para agendar um
encontro. Mas veremos o que o General pensa sobre o assunto.
– Pelo que a mim me toca –
disse-me ele –, devo esclarecer que qualquer hora e qualquer lugar me servem.
Não tenho qualquer compromisso que me impeça de estar ao inteiro dispor do
General para uma entrevista. Isso tem prioridade sobre tudo o mais. É para isso
que estou aqui.
– Então, como lhe disse,
queira ter a bondade de esperar um pouco, que eu vou falar com o General
Spínola e volto já.
E, sem mais delongas,
dirigi-me ao quarto do General Spínola e contei-lhe o ocorrido.
– Diga a esse senhor que eu
não dou entrevista nenhuma a nenhum jornalista. Os jornalistas são todos uns
irresponsáveis. Estou demasiado escaldado para me arriscar a mais uma aventura
destas. Desde o dia em que assumi a Presidência da República Portuguesa até ao
momento em que a abandonei, os jornalistas não fizeram outra coisa senão
escrever disparates a meu respeito e distorcer todas as minhas palavras, mesmo
as que se encontravam escritas.
– Senhor General, há
jornalistas e jornalistas, como há jornais e jornais.
– Professor, já disse que não
dou entrevista nenhuma. Os jornalistas são todos os mesmos em toda a parte do
mundo.
– Senhor General, peço-lhe
que não confunda um jornalista do Sunday
Times com um mísero escrevinhador de um pasquim alfacinha. Por outro
lado, que melhor meio poderia o Senhor General encontrar para levar ao
conhecimento do público internacional a causa por que lutamos que uma
entrevista dada a um dos jornais mais conceituados do mundo?
– O Professor acha então que
eu devia dar uma entrevista ao correspondente do Sunday Times?
– Claro que acho, Senhor
General. Uma oportunidade destas não surge todos os dias. Uma oportunidade
destas agarra-se com ambas as mãos.
– Mas só se for por escrito.
– Senhor General, se bem
conheço a política de jornais da categoria do Sunday Times de Londres, devo dizer que em geral eles não gostam de
publicar entrevistas dadas por escrito.
– Isso é lá com eles. Quanto
a mim, recuso-me terminantemente a dar entrevistas directas. Recordo-me muito
bem do que me faziam os jornalistas de Lisboa. Falseavam-me sempre as
respostas. Só imprimiam o que a eles muito bem lhes apetecia. Quase nunca me
reconhecia nas palavras que eles me atribuíam.
– Embora saiba por
experiência que isso jamais sucederia com um jornalista do Sunday Times de Londres, eu posso
comunicar ao correspondente que o Senhor General só aceitará ser entrevistado
por escrito.
– Pois seja. Diga-lhe que me
submeta as perguntas por escrito, que eu verei o que poderei fazer. Sem compromisso
definitivo – repare bem, Professor.
Com esta resposta, dirigi-me
à sala de espera do hotel e expus o caso ao correspondente do Sunday Times.
Tendo concluído, com certa
relutância, que essa era a única maneira de talvez vir a entrevistar o General
Spínola, o correspondente acabou por concordar. Disse-me que dentro de uma hora
nos traria as perguntas por escrito: que as deixaria na recepção se nós não
estivéssemos quando ele regressasse, e que no dia seguinte iria lá buscar as
respostas. E, na eventualidade de querermos falar com ele, deixava-nos o seu
cartão de visitas, o nome do hotel em que estava hospedado, assim como o número
do quarto e do telefone.
Em seguida, agradecendo de
antemão a entrevista que lhe ia ser concedida pelo General Spínola, o
jornalista do Sunday Times
estendeu-me respeitosamente a mão e saiu.
Quando à noite regressámos ao
hotel, depois da malograda e malfadada conferência de imprensa dada pelo
General Spínola no National Press Club de Washington, lá estava à nossa espera
uma carta do correspondente do Sunday
Times com umas vinte e tal perguntas.
Aberta a carta, o General
pediu-me que lhe lesse as perguntas em Português, dado o escasso conhecimento
que ele tinha do Inglês.
Ao ver que quase metade das
perguntas eram sobre o 11 de Março, o General interrompeu a minha leitura e
pronunciou estas palavras:
– Veja se eu tinha ou não
razão, Professor: estes gajos só estão interessados no 11 de Março, e
esquecem-se do mais importante. Eu não tenho qualquer interesse em falar do 11
de Março. O meu interesse é alertar o mundo ocidental para a estratégia do
comunismo internacional – a tomada do poder na Península Ibérica – e para a
decadência do Ocidente, sobretudo por culpa da política desse coveiro do
Ocidente, chamado Kissinger. Mas essas questões não interessam aos jornalistas:
eles só estão interessados em sensacionalismo. Não dou entrevista nenhuma.
Acabou-se.
– Faz muito bem, meu General –
apressou-se a dizer subservientemente o Cap. Ramos.
– Pois esse não é o meu
parecer – contrapus eu. – Perder a oportunidade de chamar a atenção do mundo
inteiro sobre o estado deplorável em que se encontra Portugal e sobre a nossa
causa é uma coisa que não se deve fazer. De que outros meios dispomos nós para
conseguir esse objectivo? Será que tenho que voltar-lhes a repetir que foram
baldadas todas as diligências feitas por mim para levar o Sr. General ao
programa 60 Minutes da CBS e ao Meet the Press e ao Today Show da NBC e ao Issues and
Answers da ABC?
E para dar mais força à minha
opinião, pus mais uma vez nas mãos do General Spínola e do Capitão Ramos as
cópias das cartas que os realizadores desses programas televisivos me
escreveram para eles verem com os próprios olhos o difícil que era conseguir
levar a nossa mensagem ao conhecimento do grande público internacional, a
começar pelo americano.
– Mas, ó Professor, não
reparou que o gajo só está interessado no 11 de Março?
– Não é bem assim, Sr.
General. Se reparar bem, ele também quer saber sobre o que o Sr. General julga
ser necessário fazer para salvar Portugal da possível ditadura comunista de que
está ameaçado e do que o Sr. General pensa fazer pessoalmente a esse respeito.
Depois, uma das vantagens das entrevistas por escrito é dar ao entrevistado a
possibilidade de evadir ou tornear as perguntas que bem lhe parecer e deter-se
mais demoradamente naquelas que mais lhe interessa levar ao conhecimento do
público. O que quer dizer que o Sr. General pode responder um pouco vagamente
às perguntas sobre o 11 de Março e responder em pormenor às outras perguntas.
Mais: pode até, com certo jeito, falar de questões que não foram directamente
postas.
– Bom: já que insiste tanto,
vou ver o que se poderá fazer. Agora vamos jantar, e, depois de terminar o jantar,
estudamos novamente essa questão da entrevista.
E fomos jantar e regressámos
do jantar e eu levantei imediatamente a questão da entrevista ao Sunday Times.
– Como é meu hábito, agora
vou andar uns quilómetros e depois voltaremos a considerar o caso.
– Eu por mim volto a repetir
que não se devia de maneira nenhuma perder a ocasião de dar esta entrevista.
Não é todos os dias que nos aparece uma oportunidade destas. Eu até sugeriria
que, enquanto o Sr. General dá o seu passeio da praxe, o Cap. Ramos e eu
fôssemos rascunhando as respostas a algumas das perguntas, para adiantarmos
trabalho. De regresso do passeio, o Sr. General fazia todas as alterações que
muito bem entendesse nessas respostas e responderia às perguntas deixadas em
branco. Como sabe, eu trouxe comigo a minha máquina de escrever.
– Não me parece uma boa ideia
o elaborarem as respostas por mim, mesmo provisoriamente – apressou-se a
retorquir o General. – Coisas destas tenho que ser eu a fazê-las na íntegra. A
única coisa que peço ao Professor é que tenha a bondade de me passar à máquina
a entrevista, na eventualidade de eu vir a dá-la.
O General saiu para o seu
passeio diário, acompanhado do Comandante Rebordão de Brito, e o Capitão Ramos
e eu ficámos no hotel a fazer um balanço das actividades do dia e a estudar a
maneira de conseguir os 11 milhões de dólares que necessitávamos urgentemente,
pois, ao fim e ao cabo, era essa a razão fundamental da viagem do General
Spínola aos Estados Unidos, com um passaporte especial.
Quando o General regressou, a
primeira coisa que fiz foi apresentar-lhe as perguntas do jornalista do Sunday Times e um maço de papel, para
que ele escrevesse as respostas.
– Caro Professor, enquanto
dava o meu passeio do costume, pensei no assunto e cheguei à conclusão que não
seria uma boa ideia dar esta entrevista. De maneira que fica tudo sem efeito.
Pode ir repousar, que eu vou repousar também.
Com a maior delicadeza
possível tentei levar o General a reconsiderar, mas em vão. A decisão tinha
sido tomada e agradecia-me que não lhe voltasse a falar no caso.
Os poucos dias de convivência
eram mais que suficientes para conhecer alguns dos traços da personalidade do
General Spínola. Quando ele teimava numa coisa, ninguém conseguia demovê-lo.
E foi assim que o General
Spínola perdeu uma oportunidade soberana de levar a sua mensagem ao
conhecimento do grande público internacional, através das páginas do Sunday Times, um dos jornais mais
prestigiosos do mundo ocidental.
António Cirurgião
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