domingo, 3 de fevereiro de 2019

Spínola e a imprensa nos Estados Unidos.




 
         Bastaria atinar no fracasso total que foram as entrevistas dadas pelo General Spínola a jornais e a revistas, durante a sua viagem aos Estados Unidos, em Novembro de dezembro de 1975, na qualidade aspirante a revolucionário, para concluir que essa viagem foi um malogro de todo o tamanho. Isto para não falar no fiasco que foi a conferência de imprensa no National Press Club, em Washington, D.C., e a entrevista ao jornalista português, Carlos Pinto Coelho, de que já se falou nas kalendas gregas no blogue MALOMIL (aqui)
         A fim de justificar esta asserção, vamos apresentar três casos.
 

Primeiro Caso
   ALMOÇO DO GENERAL SPÍNOLA COM O JORNALISTA TAD SZULC
 
         Por intermédio do meu colega e amigo, Doutor John Plank, professor de Ciência Política na University of Connecticut e antigo Assessor do Secretário de Estado para assuntos latino-americanos, durante o Governo de John F. Kennedy, foi combinado um almoço entre o General Spínola e Tad Szulc, um dos jornalistas mais prestigiosos dos Estados Unidos, por ocasião de uma das várias viagens do General a Washington, D.C.. Como Tad Szulc fala Português fluentemente (esteve no Brasil, como jornalista, durante a II Guerra Mundial), o almoço devia ser apenas a dois. Mas, a insistências do General, eu estive também presente. Porém, fiz questão de nada dizer durante todo o almoço de trabalho, para nem de longe interferir no que se esperava viesse a dar origem a um artigo importantíssimo sobre o deplorável estado em que Portugal se encontrava durante o regime do PREC e sobre o programa de democratização de Portugal, nos moldes propostos pelo MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal), fundado pelo General Spínola. Entretanto, desse encontro não resultou nem uma linha. E porquê? Porque o General mais uma vez se recusou a dizer uma única palavra sobre o 11 de Março e se furtou a responder a outras perguntas pertinentes, sob o ponto de vista jornalístico. 
 
 

Segundo caso
ALMOÇO COM SUSAN FRAKER, JOVEM JORNALISTA DA NEWSWEEK
 

 
         No dia 20 de Novembro de 1975, combinou-se o almoço no PanAm Building de New York City, num restaurante panorâmico, localizado num dos últimos andares, e, portanto, com uma vista fantástica sobre Manhattan. Almoço a quatro: General Spínola, Capitão Ramos, Susan Fraker e o abaixo-assinado.
         Mal tínhamos acabado de sentar-nos à mesa, já a jovem jornalista nos estava a mostrar cópias de entrevistas que ela tinha feito a reconhecidos líderes internacionais, cujos nomes não recordo agora, com a excepção de Salvador Allende, já desaparecido do mundo dos vivos, não se sabe se por assassinato se por suicídio. Fácil era de perceber que ela se sentia na necessidade de assim proceder, para que a tomássemos a sério como jornalista, como se as credenciais de correspondente da Newsweek, que já conhecíamos, não fossem suficientes para isso. E a verdade é que ela tinha toda a razão para assim proceder, pois a primeira coisa que o General Spínola fez foi chamar a atenção do Capitão Ramos e a minha para a aparente falta de maturidade da jornalista, baseado na sua idade, tendo levado essa observação tão longe, que foi ao ponto de pôr em dúvida a sua competência. Tanto mais, dizia-nos ele, que isso lhe fazia lembrar experiências muito desagradáveis com jornalistas portugueses, durante os parcos meses que ocupou o cargo de Presidente da República Portuguesa, após o 25 de Abril.
         Escusado é dizer, portanto, que durante o almoço no restaurante de alto gabarito comeu-se mais do que se falou, limitando-se essencialmente o General Spínola a propor à jovem jornalista da Newsweek que em tempo oportuno lhe submetesse a perguntas por escrito.
         As perguntas da jovem jornalista vieram a ser submetidas ao General Spínola por escrito, como ele sempre exigia, por suma cautela, e as respostas do General vieram a ser dadas, por escrito também, mas a dita entrevista nunca veio a ser publicada na Newsweek, pela mesma razão por que outras também não vieram a ser publicadas nos órgãos de imprensa a que se destinavam, devido ao facto de o General se recusar a falar dos assuntos que mais interessavam aos entrevistadores, a começar pelo papel desempenhado pelo General no malogrado golpe de 11 de Março de 1975. Essa entrevista, assim como a concedida a Carlos Pinto Coelho, viria a ser publicada mais tarde no livro do General Spínola, Ao Serviço de Portugal, cuja primeira edição data de 1976.
 

Terceiro caso
A ENTREVISTA QUE PODERIA TER SIDO E QUE NÃO FOI
 
         Para surpresa minha, mal tínhamos chegado ao hotel, em Washington, D.C., recebo um telefonema no quarto a dizer-me que estava uma pessoa na sala de recepção que desejava falar urgentemente comigo.
         Sem qualquer demora, dirigi-me à recepção.
         Como se já me conhecesse de longa data, aproxima-se de mim um indivíduo muito bem posto e apresenta-se-me como correspondente do Sunday Times, depositando-me o cartão de visitas na mão e mostrando-me as credenciais de jornalista.
         – Como soube que eu estava aqui? – perguntei eu com certo ar de suspense e meio intrigado.
         – Nós os jornalistas temos a nossa maneira de tomar conhecimento das coisas aparentemente secretas – respondeu-me em tom meio jocoso o meu interlocutor.
         – Isso, porém, não deixa de ser estranho, pois nós não demos conhecimento a ninguém da nossa vinda a Washington, para além de umas quantas pessoas com quem agendámos encontros de antemão. E quanto ao hotel em que nos íamos hospedar, só nós o sabíamos.
         – A verdade é que eu soube da vinda do General Spínola a Washington e do hotel em que se iria hospedar e estou aqui para lhe dizer que teria o maior interesse e o maior prazer em entrevistá-lo para o Sunday Times de Londres.
         Que a minha alma ficou em festa perante o santo atrevimento do correspondente de um dos jornais mais importantes e prestigiosos do mundo nem vale a pena dizer. De maneira que, num tom muito cortês, proferi estas palavras:
         – Nesse caso, peço-lhe que aguarde uns minutos, que eu vou falar com o General e expor-lhe o caso. Uma coisa, porém, lhe posso garantir desde já: que, apesar de todo o nosso tempo estar praticamente tomado, da minha parte tudo procurarei fazer para agendar um encontro. Mas veremos o que o General pensa sobre o assunto.
         – Pelo que a mim me toca – disse-me ele –, devo esclarecer que qualquer hora e qualquer lugar me servem. Não tenho qualquer compromisso que me impeça de estar ao inteiro dispor do General para uma entrevista. Isso tem prioridade sobre tudo o mais. É para isso que estou aqui.
         – Então, como lhe disse, queira ter a bondade de esperar um pouco, que eu vou falar com o General Spínola e volto já.
         E, sem mais delongas, dirigi-me ao quarto do General Spínola e contei-lhe o ocorrido.
         – Diga a esse senhor que eu não dou entrevista nenhuma a nenhum jornalista. Os jornalistas são todos uns irresponsáveis. Estou demasiado escaldado para me arriscar a mais uma aventura destas. Desde o dia em que assumi a Presidência da República Portuguesa até ao momento em que a abandonei, os jornalistas não fizeram outra coisa senão escrever disparates a meu respeito e distorcer todas as minhas palavras, mesmo as que se encontravam escritas.
         – Senhor General, há jornalistas e jornalistas, como há jornais e jornais.
         – Professor, já disse que não dou entrevista nenhuma. Os jornalistas são todos os mesmos em toda a parte do mundo.
         – Senhor General, peço-lhe que não confunda um jornalista do Sunday Times com um mísero escrevinhador de um pasquim alfacinha. Por outro lado, que melhor meio poderia o Senhor General encontrar para levar ao conhecimento do público internacional a causa por que lutamos que uma entrevista dada a um dos jornais mais conceituados do mundo?
         – O Professor acha então que eu devia dar uma entrevista ao correspondente do Sunday Times?
         – Claro que acho, Senhor General. Uma oportunidade destas não surge todos os dias. Uma oportunidade destas agarra-se com ambas as mãos.
         – Mas só se for por escrito.
         – Senhor General, se bem conheço a política de jornais da categoria do Sunday Times de Londres, devo dizer que em geral eles não gostam de publicar entrevistas dadas por escrito.
         – Isso é lá com eles. Quanto a mim, recuso-me terminantemente a dar entrevistas directas. Recordo-me muito bem do que me faziam os jornalistas de Lisboa. Falseavam-me sempre as respostas. Só imprimiam o que a eles muito bem lhes apetecia. Quase nunca me reconhecia nas palavras que eles me atribuíam.
         – Embora saiba por experiência que isso jamais sucederia com um jornalista do Sunday Times de Londres, eu posso comunicar ao correspondente que o Senhor General só aceitará ser entrevistado por escrito.
         – Pois seja. Diga-lhe que me submeta as perguntas por escrito, que eu verei o que poderei fazer. Sem compromisso definitivo – repare bem, Professor.
         Com esta resposta, dirigi-me à sala de espera do hotel e expus o caso ao correspondente do Sunday Times.
         Tendo concluído, com certa relutância, que essa era a única maneira de talvez vir a entrevistar o General Spínola, o correspondente acabou por concordar. Disse-me que dentro de uma hora nos traria as perguntas por escrito: que as deixaria na recepção se nós não estivéssemos quando ele regressasse, e que no dia seguinte iria lá buscar as respostas. E, na eventualidade de querermos falar com ele, deixava-nos o seu cartão de visitas, o nome do hotel em que estava hospedado, assim como o número do quarto e do telefone.
         Em seguida, agradecendo de antemão a entrevista que lhe ia ser concedida pelo General Spínola, o jornalista do Sunday Times estendeu-me respeitosamente a mão e saiu.          
         Quando à noite regressámos ao hotel, depois da malograda e malfadada conferência de imprensa dada pelo General Spínola no National Press Club de Washington, lá estava à nossa espera uma carta do correspondente do Sunday Times com umas vinte e tal perguntas.           
         Aberta a carta, o General pediu-me que lhe lesse as perguntas em Português, dado o escasso conhecimento que ele tinha do Inglês.
         Ao ver que quase metade das perguntas eram sobre o 11 de Março, o General interrompeu a minha leitura e pronunciou estas palavras:
         – Veja se eu tinha ou não razão, Professor: estes gajos só estão interessados no 11 de Março, e esquecem-se do mais importante. Eu não tenho qualquer interesse em falar do 11 de Março. O meu interesse é alertar o mundo ocidental para a estratégia do comunismo internacional – a tomada do poder na Península Ibérica – e para a decadência do Ocidente, sobretudo por culpa da política desse coveiro do Ocidente, chamado Kissinger. Mas essas questões não interessam aos jornalistas: eles só estão interessados em sensacionalismo. Não dou entrevista nenhuma. Acabou-se.
         – Faz muito bem, meu General – apressou-se a dizer subservientemente o Cap. Ramos.
         – Pois esse não é o meu parecer – contrapus eu. – Perder a oportunidade de chamar a atenção do mundo inteiro sobre o estado deplorável em que se encontra Portugal e sobre a nossa causa é uma coisa que não se deve fazer. De que outros meios dispomos nós para conseguir esse objectivo? Será que tenho que voltar-lhes a repetir que foram baldadas todas as diligências feitas por mim para levar o Sr. General ao programa 60 Minutes da CBS e ao Meet the Press e ao Today Show da NBC e ao Issues and Answers da ABC?
         E para dar mais força à minha opinião, pus mais uma vez nas mãos do General Spínola e do Capitão Ramos as cópias das cartas que os realizadores desses programas televisivos me escreveram para eles verem com os próprios olhos o difícil que era conseguir levar a nossa mensagem ao conhecimento do grande público internacional, a começar pelo americano.
         – Mas, ó Professor, não reparou que o gajo só está interessado no 11 de Março?
         – Não é bem assim, Sr. General. Se reparar bem, ele também quer saber sobre o que o Sr. General julga ser necessário fazer para salvar Portugal da possível ditadura comunista de que está ameaçado e do que o Sr. General pensa fazer pessoalmente a esse respeito. Depois, uma das vantagens das entrevistas por escrito é dar ao entrevistado a possibilidade de evadir ou tornear as perguntas que bem lhe parecer e deter-se mais demoradamente naquelas que mais lhe interessa levar ao conhecimento do público. O que quer dizer que o Sr. General pode responder um pouco vagamente às perguntas sobre o 11 de Março e responder em pormenor às outras perguntas. Mais: pode até, com certo jeito, falar de questões que não foram directamente postas.
         – Bom: já que insiste tanto, vou ver o que se poderá fazer. Agora vamos jantar, e, depois de terminar o jantar, estudamos novamente essa questão da entrevista.
         E fomos jantar e regressámos do jantar e eu levantei imediatamente a questão da entrevista ao Sunday Times.
         – Como é meu hábito, agora vou andar uns quilómetros e depois voltaremos a considerar o caso.
         – Eu por mim volto a repetir que não se devia de maneira nenhuma perder a ocasião de dar esta entrevista. Não é todos os dias que nos aparece uma oportunidade destas. Eu até sugeriria que, enquanto o Sr. General dá o seu passeio da praxe, o Cap. Ramos e eu fôssemos rascunhando as respostas a algumas das perguntas, para adiantarmos trabalho. De regresso do passeio, o Sr. General fazia todas as alterações que muito bem entendesse nessas respostas e responderia às perguntas deixadas em branco. Como sabe, eu trouxe comigo a minha máquina de escrever.
         – Não me parece uma boa ideia o elaborarem as respostas por mim, mesmo provisoriamente – apressou-se a retorquir o General. – Coisas destas tenho que ser eu a fazê-las na íntegra. A única coisa que peço ao Professor é que tenha a bondade de me passar à máquina a entrevista, na eventualidade de eu vir a dá-la.
         O General saiu para o seu passeio diário, acompanhado do Comandante Rebordão de Brito, e o Capitão Ramos e eu ficámos no hotel a fazer um balanço das actividades do dia e a estudar a maneira de conseguir os 11 milhões de dólares que necessitávamos urgentemente, pois, ao fim e ao cabo, era essa a razão fundamental da viagem do General Spínola aos Estados Unidos, com um passaporte especial.
         Quando o General regressou, a primeira coisa que fiz foi apresentar-lhe as perguntas do jornalista do Sunday Times e um maço de papel, para que ele escrevesse as respostas.
         – Caro Professor, enquanto dava o meu passeio do costume, pensei no assunto e cheguei à conclusão que não seria uma boa ideia dar esta entrevista. De maneira que fica tudo sem efeito. Pode ir repousar, que eu vou repousar também.
         Com a maior delicadeza possível tentei levar o General a reconsiderar, mas em vão. A decisão tinha sido tomada e agradecia-me que não lhe voltasse a falar no caso.
         Os poucos dias de convivência eram mais que suficientes para conhecer alguns dos traços da personalidade do General Spínola. Quando ele teimava numa coisa, ninguém conseguia demovê-lo.
         E foi assim que o General Spínola perdeu uma oportunidade soberana de levar a sua mensagem ao conhecimento do grande público internacional, através das páginas do Sunday Times, um dos jornais mais prestigiosos do mundo ocidental. 
 
 
António Cirurgião
 

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