segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

De como o Diabo passeava pelas praias de Portugal.



 

         DE COMO O DIABO PASSEAVA PELAS PRAIAS DE PORTUGAL
 
(capítulo inédito de um romance inédito)
 

         Durante os três anos de estudos filosóficos em Jardim Venusino e em Monte Carmelo, havia duas praias que podíamos frequentar, sempre acompanhados – note-se bem – por um superior, normalmente o Prefeito e, na ausência dele, ou em concomitância com ele, o Director Académico. Durante essa fase da minha carreira eclesiástica, o Director Académico foi sempre o Padre Angelini, e o Prefeito, durante o primeiro ano, em Jardim Venusino, foi o Dr. Ambrósio, a quem alguns de nós chamávamos, às escondidas, Cornélio à Lápide, e durante o segundo e terceiro anos, em Monte Carmelo, foi o Dr. Timóteo.

         Quanto às duas praias em questão, uma era a Praia da Purificação, particular, e a outra era a Praia da Glória. A primeira, como ouvi dizer no primeiro dia que para lá fui, juntamente com os meus colegas de Filosofia, destinava-se exclusivamente aos senhores padres e seminaristas bonifacianos, pelo que não se corria o risco de manchar a pureza, por ser totalmente impossível deparar aí com representantes do sexo fraco, autênticos emissários de Satanás, postos neste mundo para fazer perigar a virtude da castidade e, portanto, a vocação religiosa e eclesiástica, dado que uma e outra exigiam dos seus membros o voto de castidade.

         E pelo que se refere à Praia da Glória, era tão tristemente famosa pelo seu ar inóspito, pela bravura das ondas e pelas grandes tempestades de areia, que dela fugiam os praistas como o diabo da água benta. Além disso, enquanto a Praia da Purificação se podia frequentar em todas as estações, a Praia da Glória era-nos interdita nos meses de verão.   

         Foi no decorrer do primeiro ano de Filosofia, em plena primavera, num encantador dia de sol, que se deu este episódio.

         Pela uma e meia da tarde, aí vamos todos os seminaristas, do primeiro, segundo e terceiro anos, a caminho da Praia da Glória. Era numa quinta-feira, dia do passeio semanal, de que só se era dispensado por razões de força maior. Depois de uma longa caminhada, vestidos em traje talar, eis-nos chegados à praia. Uma vez aí, de nós dependia sentarmo-nos na areia, sempre em grupos, idealmente constituídos por mais de dois, ou passearmos também em grupos, mas – que ficasse bem entendido - sempre à vista do prefeito. Estar sentado sozinho ou passear sozinho era terminantemente proibido. "Vae soli!" – todos aprendíamos no noviciado, ou mesmo antes, e ouvíamos repetir a toda a hora. "Ai do solitário!" Está sempre em grave risco de ser presa do demónio do meio-dia, o mais perigoso de todos os membros das legiões infernais. E pelo que se refere a grupos de dois, eram também altamente desaconselháveis, por poderem dar azo às nefandas e perniciosas amizades particulares, tão prejudiciais para a perseverança na vocação religiosa e sacerdotal.

         Convém também esclarecer que, estando como director do seminário, no seu primeiro ano, aliás, o Padre Santiago, espanhol profundamente vitoriano, e Mestre de Noviços durante os últimos seis ou sete anos, em Vale das Vinhas, tinha havido, segundo nos foi dito pelos estudantes do segundo e terceiro anos de Filosofia, um grande retrocesso, pelo que se refere a traje de praia. Era muito simples o traje tolerado, ou, melhor dito, imposto, pelo Padre Santiago. Jamais se podiam arregaçar as calças acima do joelho e jamais se podia andar de tronco nu. Calções faziam-se de calças velhas, cortadas à tesoura pelo joelho. Houve quem murmurasse um pouco ao princípio, sobretudo de entre os "filósofos" dos dois últimos anos, habituados a um nadinha mais de liberdade, mas, tendo todos eles sido noviços do novo director, e tendo todos o voto de obediência, nada mais nos restou senão aceitar o novo regime de traje de praia. Aliás – pontificava sabiamente o Rev.do Padre Santiago –, o melhor da praia eram os banhos de sol e não os banhos de água.

         Mas vamos ao episódio. Nessa tarde – como poderei eu esquecer o mínimo pormenor? – o meu grupo constava do Padre Angelini, do Serafim, do Ludovico e do Faustino. Estávamos todos sentados na areia, em conversa amena, vagamente filosófica, quando, muito ao longe, começou a vislumbrar-se um vulto que certamente não era o de um seminarista. Fazendo de conta que nenhum de nós via o que estava vendo, a conversa prosseguiu, pontuada por pausas cada vez mais intermitentes, enquanto o vulto se foi aproximando e se foi tornando cada vez mais visível. Mais uns momentos, e todos pudemos notar claramente que se tratava de uma praista, em fato de banho razoavelmente modesto. Ao ver que o vulto caminhava lentamente em nossa direcção, o Serafim e o Padre Angelini, num acto reflexo, apressaram-se a puxar o chapéu para os olhos e a dizer estas palavras para eles mesmos e para todos nós, como se se tratasse de um coro falado:

         - Vamos embora, que vem aí o diabo; vamos embora, que vem aí o diabo.

         E como se tivessem molas debaixo das reverendas nádegas, e as asas de Mercúrio nos pés clericais, o Serafim e o Padre Angelini levantaram-se e afastaram-se da praia, a grande velocidade. O Ludovico e o Faustino ficaram muito tranquilamente a ver passar o diabo. Muito tranquilamente, é como quem diz. Lá muito no fundo – e quem sabe se também um pouco à superfície! – operou-se neles uma certa perturbação, mas acharam que era bom ficar a ver o diabo passar.

         Aliás, tratava-se de um diabo levemente reboludo, sem o omnipresente e fálico rabo vermelho a irromper atrevido e irreverente de entre as pernas, e sem os emblemáticos cornos em fogo a decorarem-lhe a testa, e de comportamento exemplar, à diabo lusitano.

         Com a maior das naturalidades, sem alterar o andamento, ao passar a nosso lado, o diabo lançou-nos um olhar entre sereno e lânguido, e prosseguiu impertérrito no seu passeio à beira-mar.

         Onde o meu amigo Ludovico pôs os olhos, no momento em que o diabo passou, não o soube então e não o sei hoje. Éramos dois seminaristas demasiado sérios para falarmos de coisas tão delicadas e tão perigosas e tão mundanais. Mas onde eu pus os olhos gulosos nesse instante de alumbramento soube-o então e sei-o hoje. Pu-los, com a velocidade de um relâmpago, primeiro no rosto do diabo, e depois na anatomia espartanamente defendida pelo meu voto de castidade, mas acessível à gulodice tímida e trepidante dos meus olhos castos...e dos meus invisíveis desejos... (Nono, não desejar a mulher do próximo. Mas eu não sei se a mulher que acaba de passar por mim pertence a um homem. Ou será que próximo quer dizer o homem a quem ela vai pertencer a seguir? Ou será que próximo significa o homem que está mais perto de mim neste momento? Mas a este homem ela não pode pertencer. O Ludovico, como o Faustino, tem voto de castidade. Meu Deus, que tremenda confusão! Se nem os hermeneutas entendem estas coisas, como as posso entender eu, que sou menos que noviço nos intrincados labirintos da Sagrada Escritura? Faustino, meu filho, lá diz Jesus no santo Evangelho que aquele que desejou a mulher do próximo já pecou dentro do seu coração, o que aliás também está explícito no nono mandamento do Decálogo. Vai em paz e não voltes a pecar. Muito obrigado e deite-me a sua bênção. Que Deus te abençoe.)

         E o "diabo" do Padre Angelini e do Serafim passou e o tempo passou e o silêncio que se estabeleceu entre o Ludovico e o Faustino era mais difícil de cortar que o nó górdio. Furtivamente, olhavam um para o outro para ver se dos lábios do interlocutor potencial brotava uma palavra salvadora, mas, como se entre ambos se interpusesse uma nuvem de cumplicidade pecaminosa, baixavam o olhar para a areia e continuavam a escrever no chão palavras sem nexo, unicamente para disfarçarem o vulcão de emoções que dentro deles ardia.

         Mas, de repente, olham mais uma vez um para o outro, e, num daqueles fenómenos que só os psicólogos poderão explicar, nos lábios de um e do outro começa a esboçar-se um sorriso, primeiro tímido, e depois mais ousado, até que ambos explodem numa gargalhada homérica, que parecia não ter fim. E a gargalhada crescia e uma espécie de compreensão do que se tinha passado, e se estava passando, começava a aflorar na mente dos dois seminaristas que haviam tido a coragem de enfrentar o "diabo", indo, dessa forma, contra o ensinamento de todos os mestres de ascese, que, em casos idênticos, aconselhavam a fuga às ocasiões de tentação.

         Dominado o riso convulso que nos invadira com a fúria com que as tempestades de areia tomavam às vezes de assalto a praia em que estávamos sentados, quase ao mesmo tempo, numa necessidade imparável de quebrar o silêncio que nos asfixiava, irrompemos ambos, em uníssono, nestas palavras:

         - Estamos quilhados.

         - Quando chegarmos a casa, tenho a certeza que ambos vamos ser chamados a conselho – disse o meu companheiro. – Devíamos ter feito como o Serafim e o Padre Angelini. Eu ainda pensei em imitá-los, mas a verdade é que me senti como que preso à areia, impossibilitado de fazer qualquer movimento. E, ainda por cima, nem o chapéu tinha comigo para baixar para os olhos, como eles fizeram.

         - Comigo sucedeu outro tanto. E quanto ao chapéu, ainda que quisesse, nada poderia fazer, pois também o não trouxe. Mais: para te ser sincero, nem sequer tenho chapéu. Estou sem ele, desde o primeiro passeio que demos à Praia da Purificação. Ao dar-me conta do ridículo que é passar pelo meio de Jardim Venusino e de Fortaleza, não só embatinado, ou de fato preto e cabeção, mas também de chapéu, desci muito sorrateiramente, sozinho, até à beira das ondas, e, para me convencer a mim mesmo que não tinha a responsabilidade toda no que ia acontecer, pousei-o numa pedra e fiz que me esqueci dele, enquanto abria um livro, aliás a biografia de S. Luís Gonzaga, e me punha a passear os olhos pelas páginas. Quando me dei conta, eis que vem a rajadazinha de vento que eu interiormente implorara à minha rica Santa Bárbara, e lá vai o meu chapéu eclesiástico a caminho das ondas. Para não ver São Luís Gonzaga a levantar-se em atitude vingadora das páginas que enalteciam as suas virtudes, sobretudo a da modéstia e a da pureza, para me fulminar pela acção praticada, fechei o livro num acto reflexo, não sem marcar a página com a pétala seca de uma violeta, de que sempre me sirvo, desde o terceiro ano de seminário. Quando estávamos preparados para o passeio da semana seguinte, o Padre Basílio perguntou-me por que não punha o chapéu. Eu, fazendo de conta que não notava que ele estava a falar comigo, nada respondi. Mas, como ele insistisse, disse-lhe que me tinha desaparecido, sem saber bem como. Que era necessário arranjar outro quanto antes, apressou-se ele a dizer-me. E eu, interiormente, desejei ardentemente que isso não viesse a acontecer. E a verdade é que até à data ainda não se arranjou outro. E, se depender de mim, nunca mais se arranjará outro. E se outro tiver que aparecer um dia, por artes do diabo, podes crer que por artes de dois diabos desaparecerá como o primeiro. Quero que saibas que as coisas que mais me custa fazer é andar de chapéu e de coroa feita. E quanto à coroa, quero que saibas também que tenho vindo a recorrer a todos os meios para não voltar a fazê-la no futuro próximo. O Padre Director e o Padre Basílio já me chamaram mais de uma vez a atenção para isso, mas eu tenho procurado fazer-me desentendido. E, como poderás ver, aqui está um santo seminarista, aspirante ao sacerdócio e estudante de Filosofia, alérgico a dois mandamentos do código de direito canónico e da praxe eclesiástica lusitana: o uso da tonsura e o uso do chapéu. A primeira para mostrar ao mundo que estou marcado para ser sacrificado a Cristo, e o segundo para mostrar ao mundo – e me dizer a mim mesmo – que renunciei para sempre às pompas do século e às vaidades mundanas.

         - Sabes uma coisa, pá? Falaste bem. Quase me convencias com a tua argumentação. Mas a verdade é que a pessoa a quem tens necessidade de convencer é a ti mesmo. Pelo que me diz respeito, tudo quanto disseste sobre a perda do chapéu e os subterfúgios para não fazeres a coroa aplica-se perfeitamente a mim também.

         Interessante. Foi preciso mergulhar num acto de cumplicidade comum para que o Ludovico e eu escancarássemos as almas de par em par um ao outro. Dizer do lenitivo que esse comportamento análogo me causava interiormente não é necessário. É como se os meus actos adquirissem um estatuto de quase legalidade. É assim a natureza humana. Sempre a refugiar-se na cumplicidade dos outros. O que quer dizer que o sofisma é inerente à natureza do homem. Mesmo quando esse homem é um seminarista. Sobretudo, quando esse homem é um seminarista.

         Quanto às consequências desastrosas que poderiam advir dessa nossa queda involuntária na tentação a que o sentido da vista nos tinha arrastado não seria preciso esperar muito tempo para virmos a sabê-lo, pois nem o Ludovico nem eu tínhamos a mínima dúvida de que, chegados ao seminário, seríamos chamados a capítulo. De facto, mal tínhamos entrado na sala de estudo, quando o Prefeito, o Dr. Ambrósio, se aproximou da carteira do Ludovico e lhe sussurrou algo ao ouvido. O meu confrade de aventuras levantou-se prontamente, lançou-me um rápido olhar e saiu. Quando regressou, cerca de quarenta e cinco minutos mais tarde, vinha visivelmente perturbado. Que teria acontecido? Teria o Padre Director considerado grave o episódio? Correríamos o risco de ser ameaçados de expulsão? Mas nós não tínhamos procurado o diabo. Por outro lado, o Padre Director conhecia-nos muito bem para concluir, de ciência certa, se assim o desejasse, que tanto um como o outro tínhamos maturidade suficiente para podermos e sabermos ser superiores a obstáculos dessa natureza. 

         Como previa, não dispus de muito tempo para formular hipóteses no ar. Apenas o meu colega se tinha sentado, já o Dr. Ambrósio me estava a dizer baixinho que fosse falar com o Padre Director.

         Sabendo, de antemão, da inevitabilidade desse encontro, tinha-me preparado mentalmente para ele. É que, se noutras coisas era noviço, em situações como esta não o era. Há um dito, muito usado entre nós, seminaristas, que traduz perfeitamente a minha atitude: "para um espertalhão espertalhão e meio." De maneira que, em vez de assumir a atitude de alguém que tem a consciência culpada, decidi fazer de conta que na minha consciência reinava a maior das tranquilidades, e que não via qualquer mal no que tinha acontecido na praia.

         O primeiro sinal a que recorri para transmitir ao Padre Director que essa era a minha convicção foi a maneira como bati à porta. Em vez de bater com a maior das levezas, como era da praxe, para não perturbar o silêncio que reinava àquela hora do dia, resolvi dar uma pancadinha relativamente forte. Como já supunha, a voz do Padre Director, dizendo que entrasse, fez-se esperar. Indício de que era intenção dele atribuir extrema gravidade ao caso. Fazendo de conta que eu não sabia interpretar esse sinal, bati novamente, e desta vez com um pouco mais de força. Passado quase meio minuto, lá se fez ouvir a voz do Director, mandando entrar. De tronco bem direito e cabeça bem ao alto, e com meio sorriso postiço nos lábios, transpus a ombreira da porta decidido, e, com ar prazenteiro, dei-lhe as boas-tardes. Como esperava também, o Padre Director não só não retribuiu a minha saudação, como continuou com a cabeça mergulhada num velho cartapácio. (Conheço a táctica, Padre Director. Usa-a com outros, que comigo não pega. Não nasci ontem. Tenho muita escola e vários anos de praia.) E para que fosse bem visível a minha serenidade interior – e exterior –, pus-me a olhar para um lado e para outro, à maneira de quem está a observar as decorações das paredes do escritório. Estive assim entre dois a três minutos, até que o Padre Director, sem levantar os olhos do velho cartapácio, e sem abrir os lábios, me apontou a cadeira, em frente dele. Com o maior dos à vontades, sentei-me e pus-me a olhar para o ar, continuando a aparentar o máximo de serenidade.

         Finalmente, o Padre Director levanta os olhos do livro, olha para mim com um ar de grande severidade, e pergunta-me se sei por que me tinha mandado chamar. Com a maior desenvoltura, apresso-me a dizer-lhe que não, mas que terei o maior prazer em que me diga a razão. Naturalmente que lhe dei essa resposta, com a maior cortesia possível, pois qualquer expressão que visivelmente traduzisse uma atitude de arrogância da minha parte poderia tornar-se contraproducente, saindo assim pior a emenda que o soneto, ou, como também se dizia frequentemente entre nós, virando-se o feitiço contra o feiticeiro.

         Não convencido com a sinceridade da minha resposta, sugeriu-me que pensasse um pouco, pois, se o fizesse, não me seria difícil saber a razão por que estava ali. Fiz que pensava um pouco, e disse-lhe muito calmamente que na verdade não conseguia imaginar razão alguma, pelo que a mim me dizia respeito.        

         Socraticamente – que meu São Sócrates me perdoe o quase sacrilégio pelo atrevimento da comparação –, o Padre director começou a fazer mil rodeios, com a finalidade de me levar a dizer que eu sabia que estava ali, devido ao que tinha acontecido na praia. Mas, visivelmente cansado desses rodeios e das minhas fintas, não teve outra saída senão ser ele a dizer claramente, em linguagem cristã, que eu tinha sido chamado para responder pelo que tinha sucedido naquele dia na Praia da Glória.

         - Verdadeiramente, não sucedeu nada de especial – intervim eu com a maior das naturalidades. – O tempo estava agradável e o passeio foi muito saudável. Saudável para o corpo e para a alma, como o devem ser todos os passeios – acrescentei.

         - Não foi isso o que teu superior e os teus companheiros me revelaram, e tu sabe-lo muito bem.

         - Sinceramente, não sei. Vossa Reverência sabe muito bem que cada um tem a sua consciência e responde diante dela. Pelo que a mim me toca, a minha consciência não me acusa de ter feito nada de mau ou de menos próprio para um seminarista exemplar.

         - Não sabia que em tão pouco tempo tinhas esquecido as inúmeras conferências que te fiz no Noviciado sobre a virtude da pureza, o voto de castidade e a necessidade de preservar, custe o que custar, intacta essa virtude e intacto esse voto.

         - Graças a Deus, não me esqueci dessas lições. Escrevi-as quase na íntegra, como sabe e me aconselhou, e tenho-as bem presentes na mente.

         - De pouco vale que as tenhas presentes na mente, se as tens ausentes do coração.

         - Mas eu não as tenho ausentes do coração. Acompanham-me aonde quer que vá; estão comigo onde quer que esteja.

         - Estaria mais tranquilo e teria menos receio pela salvação da tua alma se sentisses tão bem como falas.

         - E se eu lhe disser que sinto tão bem como falo, Vossa Reverência acredita-me? - E ao proferir estas palavras, olhei bem de frente para o Padre Director.

         Um silêncio pesado espalhou-se por todo o escritório. Com o maior respeito, para de forma alguma provocar a sua ira, tinha conseguido argumentar com o meu antigo Mestre e Director, quase de igual para igual, o que não era proeza fácil. É que eu sabia muito bem que qualquer falta de firmeza da minha parte e qualquer indício de que o que tinha acontecido na praia me pesava na consciência poderia vir a ter consequências fatais para a minha carreira sacerdotal. E, por outro lado, eu, bem no fundo, não me sentia culpado. Não tinha procurado a chamada ocasião de pecado de propósito. E não tinha alimentado na consciência qualquer desejo menos puro. Voluntariamente, claro.

         Graças à compreensão e à ajuda do Sr. Padre Fidalgo, tinha resolvido esse problema durante o quarto ano de aspirantado. Nesse tempo, o dar com os olhos numa mulher, mesmo que fosse só de fugida, deixava-me numa perturbação terrível. Era como se tivesse cometido o mais hediondo dos pecados. Tudo fruto, naturalmente, de ensinamentos doentios, por parte de alguns superiores. Até que um dia, estando eu a sair da portaria, a caminho da capela, e encontrando-se aí uma senhora, me vi impetrado por ela para que lhe desse não sei que informação: creio que para a informar se o Padre Director estava em casa. Fiquei de tal maneira perturbado, que comecei a gaguejar, e me retirei quase a correr para a capela, onde implorei auxílio a Nossa Senhora e perdão a Deus por um pecado que não tinha cometido.     

         Tendo falado deste episódio ao confessor nesse mesmo dia, ele, depois de me haver tranquilizado, aconselhou-me a levar o caso ao Director. E eu fiz isso. E o Padre Director, com o maior tacto e com uma atitude verdadeiramente paternal, disse-me que as mulheres também eram criaturas de Deus. Que pensasse em minha mãe e nas minhas irmãs e que visse como o Senhor também criava mulheres boas.   Por fim, depois de muitos esclarecimentos e conselhos, pôs-me nas mãos um livrinho que ele tinha reservado para casos idênticos ao meu. Tratava-se de um pequeno manual que expunha, com a maior delicadeza possível, o mistério da criação...e da fecundação. Que o lesse e que, depois de lê-lo, lho levasse e falasse com ele. E despediu-me com estas palavras: - "Quando, por casualidade, te voltares a ver em situações análogas à de hoje, pensa que tens diante de ti a tua mãe ou as tuas irmãs."

         Durante o silêncio que se estabeleceu entre o Padre Director e eu refiz todo este episódio. Era a minha salvação. Estava disposto a referi-lo na íntegra, se necessário. O Padre Santiago tinha servido sob a jurisdição do Padre Fidalgo, enquanto Mestre de Noviços, e sempre manifestara muito respeito por ele.   

         - Queres explicar-me isso um pouco mais em pormenor? – perguntou o Padre Director, depois de uma longa pausa.

         - Para lhe explicar isso teria de lembrar Nossa Senhora e o culto de Nossa Senhora, advogado e propagado por S. Bernardo e depois universalizado por legiões de santos. E podia também trazer a Beatriz da Divina Commedia de Dante e a Laura do Canzoniere de Petrarca, e podia trazer o testemunho de David e de S. Paulo, os quais nos mandam elevar-nos a Deus através da contemplação da beleza das suas criaturas (só depois de ter proferido os nomes do Profeta-Rei e do Apóstolo das Gentes é que me lembrei que, se serviam para advogados de defesa, igualmente serviam para advogados de acusação). Mas sei que é desnecessário, porque Vossa Reverência conhece tudo isso melhor do que eu, como tantas vezes nos provou, durante o Noviciado, nas suas conferências, tão cheias de sã doutrina e santa erudição.

         A determinado momento, o Director faz-me esta pergunta:

         - Ainda tens contigo os cadernos de apontamentos do Noviciado? Refiro-me àqueles cadernos em que resumias, como todos os teus companheiros, as meditações, as instruções, as conferências, etc.

         - Tenho, sim.

         - Vai buscar aquele em que se fala da mortificação dos sentidos e traz-mo cá.

         Saí e, passados mais ou menos dois minutos, voltei com o dito caderno.

         - Vê se encontras as notas das minhas conferências sobre a mortificação dos olhos, e lê o que lá tens escrito.

         Não me foi difícil encontrar essas notas.

         - Está aqui o resumo dessas conferências a que Vossa Reverência se refere.

         - Lê lá então.

         E eu comecei a ler:

                           

          “As paixões alimentam-se dos olhares; o ladrão é inclinado ao roubo porque pousou o olhar sobre o objecto desejado; o impuro sente-se inclinado à desonestidade, por causa do olhar. David cometeu o nefando pecado do adultério, por causa da imprudência do olhar. Job dizia: "fiz um pacto com os meus olhos para que não se fiem nas mulheres." Quanto menos se olha para os objectos, menos tentações há e menos pecados se cometem. S. Jerónimo diz: "o demónio só precisa que lhe abramos um pouco as janelas, isto é, os olhos." S. Bernardo diz: "a primeira seta que trespassa a alma entra pelos olhos." Séneca dizia que a cegueira favorecia a inocência. Um filósofo grego arrancou os olhos para não pecar. S. Luís Gonzaga amava tanto a pureza que nem sequer olhava para a mãe e para as irmãs, e outros santos faziam a mesma coisa. O verdadeiro religioso não deve olhar para as pessoas de outro sexo nem para os meninos e os adolescentes, porque o coração se pode prender a eles com facilidade. E isso pode ser fatal para a vocação religiosa. Para aprender a mortificar o olhar, não se deve olhar para os aviões; não se deve olhar para os enfeites por ocasião de festas; deve afastar-se os olhos de vez em quando dos actores, quando se assiste à representação de uma peça de teatro. Quantas vezes se prende o coração a um adolescente que nos fascina e nos sensibiliza, em virtude da maneira como aparece vestido no palco! Não olhar para todas as passagens de uma fita cinematográfica. Não olhar para todos os pratos que nos vêm à mesa, sobretudo nos dias de festa. Não olhar para nós no banho. Não olhar para as pessoas do outro sexo nas praias.”

 

         - Basta. Podes parar aí. Espero que o que leste seja mais que suficiente para poderes compreender a temeridade e a gravidade da acção que praticaste esta tarde durante o passeio. Podes retirar-te. Mas aconselho-te a que, já hoje, releias o resumo daquelas conferências em que eu falo da virtude da pureza e dos perigos em que a põe todo aquele que não sabe fugir a tempo das ocasiões do pecado.

         - Muito obrigado pela sua compreensão. Muito humildemente quero rogar-lhe que me lembre nas suas orações, para que o Senhor me confirme na virtude da fortaleza, e, indirectamente, na da pureza.  

         Muito manso, talvez levemente desconfiado, o Padre Director deu-me a mão direita a beijar, enquanto me batia paternalmente com a esquerda na testa, e disse-me que fosse em paz.

         E eu saí em paz porque tinha conseguido convencer o meu Director que o diabo que o Padre Angelini e o Serafim tinham visto na Praia da Glória não era o diabo, mas uma simples criatura de Deus igual a ele e a mim...e provavelmente mil vezes superior em virtudes humanas ao Padre Angelini e ao Serafim. 

 
                       António Cirurgião
 

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