Gulag, mais um dia de vida
O
Arquipélago é tão-somente o herdeiro,
o filho da Revolução.
Aleksandr
Soljenítsin, O Carvalho e o Bezerro
Três
homens correm na neve, em fuga. Dois deles conceberam o plano, desafiando um
terceiro a acompanhá-los. Era o cozinheiro do campo, gordo e anafado, que iria
servir-lhes de sustento na jornada. Prática comum nas evasões do Gulag:
convidava-se a escapar um homem bem nutrido para depois ser morto e devorado
pelos seus companheiros de fuga. Na gíria dos campos chamavam-lhes «a carne» ou
«fornecimento com pernas», falando-se também em «sangrar a vaca». Os novatos, mais
crédulos e inocentes, aceitavam participar em tentativas de evasão sem saber
que iriam ser mortos para lhes comerem as vísceras; geralmente o sangue, os
rins e o fígado, mas também os pulmões e os seios, que eram ingeridos em cru,
uma vez que os fugitivos não acendiam fogos com medo de serem detectados. Como
previsto, os dois homens mataram o cozinheiro, e comeram-no. O caminho era mais
longo do que pensavam. Então regressou a fome imensa, anoiteceu. Ambos sabiam
que o primeiro que adormecesse seria morto pelo companheiro. Por isso, como na
lenda de Xerazade, fingiram que não estavam cansados e passaram a noite a
contar histórias fabulosas um ao outro, observando-se mutuamente. De madrugada,
um deles não resistiu ao sono. O seu parceiro de fuga, amigo de muitos anos,
cortou-lhe a garganta. Seria capturado dois dias mais tarde, com peças de carne
fresca ainda no saco.
Houve
de tudo, ali. Corpos seminus atirados dos vagões de gado para a berma da linha
do comboio, cadáveres enterrados que o degelo das primaveras fazia voltar, intactos,
à superfície do solo, homens que se mutilavam para serem dispensados do
trabalho, cortando um pé ou uma mão, ingerindo colheres, peças de xadrez ou
pedaços de vidro, injectando sabão derretido no pénis, infectando-se nas veias com
agulhas de coser sujas e ferrugentas; viu-se um preso a pregar os testículos
num banco de prisão, outro a pregar o escroto ao cepo de uma árvore morta. Os
que se faziam passar por loucos eram encerrados nas alas psiquiátricas junto
aos verdadeiros esquizofrénicos – passadas algumas horas, todos, mesmo os mais
fortes, batiam aos gritos na porta blindada, implorando que os deixassem sair
dali. Em longas travessias ferroviárias pela estepe, que duravam semanas ou
mesmo vários meses, os guardas só davam água aos presos quando os comboios
paravam para largar os cadáveres que se amontoavam a um canto, já despojados de
todos os seus haveres. Muitos enlouqueciam de fome ou cansaço, mas sobretudo de
sede. Um sobrevivente dos campos recorda-se que, numa viagem de comboio que
durou vinte e oito dias, apenas em três ocasiões foi dado de beber aos
prisioneiros.
Naquele
que é um dos mais cruciantes relatos do quotidiano dos campos soviéticos, Man is Wolf to Man (1998), o judeu
polaco Janusz Bardach conta a sua viagem de barco até Kolymá, em 1942, quando a
secção das mulheres foi assaltada por criminosos de delito comum, com o
consentimento tácito dos vigilantes. As mulheres foram violadas sucessivamente
por muitas dezenas de homens; depois, os homens voltaram-se para os rapazes
adolescentes, que após a carnificina ficaram prostrados de barriga para baixo
no chão do navio, sangrando e chorando compulsivamente. Outra sobrevivente,
Elena Glink, recorda uma das viagens do Minsk,
em Maio de 1951, em que os cadáveres das mulheres esventradas por violações em
massa foram lançados ao mar, borda fora. Histórias desses navios sinistros, os
«Vagões de Kolymá», eram contadas pelos prisioneiros em todo o sistema dos
campos e durante décadas fizeram parte do seu imaginário pavoroso. Havendo
poucos suicídios entre os reclusos, o mesmo não sucedia com os vigilantes, dos
quais entre 300 a 400 todos os anos punham termo à vida. Nas valas comuns,
entre centenas de fuzilados, ainda hoje se encontram muitas garrafas de vodca –
os guardas embriagavam-se para suportar o fardo das matanças. Os operários que
construíam um gasoduto numa floresta das imediações de Minsk descobriram uma
vala comum com cerca de 100.000 esqueletos, alinhados aos pares, pois eram
executados em conjunto para poupar balas; junto às ossadas, os objectos que as
vítimas transportavam consigo: óculos, sacos com moedas, tubos ou frascos com
medicamentos. Vários testemunhos asseveram que as crianças da região de Kolymá ainda
usam crânios humanos para transportar as amoras e os morangos silvestres que
apanham na floresta.
A
prática do canibalismo e da necrofagia foi constante, apesar de raramente se ter
chegado ao extremo do ocorrido em Nazino, uma ilha nos confins da Sibéria
ocidental para onde na Primavera de 1933 foram deportados 6.000 detidos em Moscovo
e Leninegrado, por ordem de Genrikh Yagoda, o chefe da polícia secreta, a OGPU.
Logo no primeiro mês, dois terços dos deportados morreram de fome e frio.
Testemunhos recolhidos em 1989 pela Associação Memorial referem que os
habitantes da zona, ao percorrerem a ilha nos anos trinta, viam carne humana
embrulhada em farrapos, cortada e pendurada nas árvores. O resto vem contado
num livro de Nicolas Werth cujo título dispensa comentários: A Ilha dos Canibais (trad. portuguesa,
Pedra da Lua, 2007).
Em
campos situados muito a norte do Círculo Polar Árctico, a centenas ou milhares
de quilómetros de qualquer lugar habitado, as fugas eram raras. Como refere
Soljenítsin em O Arquipélago Gulag,
«um grande obstáculo às fugas era a geografia do Arquipélago: aqueles espaços
imensos de deserto nevado ou arenoso, de tundra, de taiga». Ainda assim, as
fugas aconteceram mais vezes do que se supõe. Deram azo a alguns livros,
relatos de viagens que, de tão extraordinárias, suscitam dúvidas quanto à sua
autenticidade, como acontece com A Longa
Caminhada, de Slavomir Rawicz (trad. portuguesa, Asa, 2001). Nos campos próximos
de povoações, outros elementos dificultavam as fugas. Na mira de generosas recompensas,
os habitantes das imediações participavam na caça ao homem, perseguindo e
denunciando os evadidos. Um morador em Kolymá recebeu um avultado prémio de 250
rublos ao entregar a mão – ou a cabeça, segundo outros relatos – de um fugitivo
que apanhara. De acordo com Soljenítsin, se era frequente os captores, para não
arcarem com o peso do corpo inteiro, trazerem numa sacola apenas a cabeça do
fugitivo, era mais conforme aos regulamentos entregarem o braço direito cortado
pelo cotovelo, para que as autoridades carcerárias pudessem verificar as
impressões digitais e dar baixa do prisioneiro. Os que ousavam evadir-se eram
executados de imediato e os seus corpos exibidos publicamente durante vários
dias, à vista dos outros reclusos. Apesar de tudo, houve vários casos de fugas
bem-sucedidas, nomeadamente das remotas Ilhas Solovetsky, rumo à Finlândia. A
par das fugas, houve protestos, greves de fome ou ao trabalho, até mesmo
rebeliões. Uma das mais famosas, ocorrida em Utsa-Utsa em Janeiro de 1942, foi
afogada num banho de sangue, mas ainda assim conseguiu durar alguns dias. Soljenítsin
dedica um capítulo do Arquipélago aos
«quarenta dias de Kenguir», a revolta ocorrida em 1955 e em que, pela primeira
vez na história dos campos, os criminosos de delito comum aceitaram ser
liderados pelos presos políticos. Tudo acabou como se previa, com a repressão brutal
da revolta e a liquidação total da zona. Embriagados, os condutores dos tanques
e dos blindados não hesitaram em avançar sobre os grevistas, esmagando dezenas
de pessoas à sua passagem. Depois, julgaram-se os cabecilhas. Na mais estrita
legalidade, foram todos mortos. Junto às suas sepulturas cresce hoje uma erva
particularmente densa: tendo localizado as campas, os habitantes da região
levaram-lhes tulipas da estepe, que aí ainda florescem.
O Gulag
Concebidas
como campos de trabalho e de reeducação ideológica, as cerca de 476 «ilhas» que
formaram o arquipélago Gulag são
frequentemente comparadas aos campos de concentração nazis. Na verdade, não
sendo seu propósito directo o extermínio ou a liquidação física dos
prisioneiros, o risco de morte causou tantas vítimas e era tão flagrante que
não pôde deixar de ser considerado pelos mais altos responsáveis pelo sistema,
quer pela nomenklatura, com Estaline
e Béria à cabeça, quer pelos burocratas que geriam a rede concentracionária,
quer pelos directores dos principais campos, muitos deles alvo de sucessivas e
sangrentas purgas. As comparações estatísticas, todavia, prestam-se a equívocos
e manipulações. A jornalista e historiadora Anne Applebaum dedicou um apêndice
do seu notável livro Gulag. Uma história,
galardoado com o Pulitzer em 2004 (trad. portuguesa, Civilização, 2004), ao
levantamento, tão rigoroso quanto possível, do número de encarcerados. Considera
uma «pura conjectura» a estimativa de 20 milhões de vítimas de Estaline, avançada
por Stéphane Courtois e outros em O Livro
Negro do Comunismo (trad. portuguesa, Quetzal, 1998), e conclui que a
avaliação mais completa aponta para dezoito milhões de cidadãos soviéticos que,
entre 1929 e 1953, passaram pelo sistema, campos e colónias. A monumental
colectânea em sete volumes, divulgada pelo Arquivo Estatal da Federação Russa,
apresenta um número ligeiramente mais elevado, estimando que entre 1930 e 1952
estiveram nos campos, colónias e prisões cerca de 20 milhões de pessoas. Obviamente,
nem todos os presos morreram. Mas, se quisermos fazer uma contabilidade dos
mortos, aos caídos no Gulag – cerca de dois milhões e 700 mil pessoas –,
deveríamos acrescentar os seis milhões de «exilados especiais» e os milhões
executados em massa, sobretudo durante o Grande Terror (curiosamente, o apogeu
do Grande Terror, em 1937-1938, não foi particularmente mortífero na história
do Gulag). Num cômputo global, que está longe de ser pacífico ou consensual, alguns
sustentam, como vimos, que Estaline terá sido directamente responsável pela
morte de cerca de 20 milhões de pessoas, o que demonstra que só uma pequena parte
das suas vítimas, cerca de 10%, terá perecido no Gulag (um terço ou mesmo
metade daquelas mortes ocorreram nas grandes fomes do início da década de 1930).
O
Gulag, acrónimo de Administração Geral dos Campos (Glavnoe Upravlenie Lagerei), durou muito mais tempo do que os
campos nazis e, ao contrário do que se pensa, não terminou com a morte de
Estaline, continuando a funcionar como prisão para os activistas da democracia,
os dissidentes, os nacionalistas e os criminosos de delito comum. Verdadeiramente,
o sistema prisional soviético só começou a ser desmantelado por Gorbatchev, ele
próprio neto de prisioneiros do Gulag. Se os campos não terminaram com
Estaline, também não começaram com ele – este é um ponto sublinhado quer por memorialistas
como Aleksandr Soljenítsin quer por historiadores como Anne Applebaum: desde a
ascensão dos bolcheviques que existiam intenções e programas de exílio em
massa, bastando recordar que, logo em Janeiro de 1918, Lenine determinou a
«detenção de sabotadores milionários» e sugeriu que fossem «condenados a um ano
de trabalhos forçados numa mina». A deportação era, aliás, uma prática russa
velha de séculos, que se intensificara nos derradeiros anos dos czares. Em todo
o caso – e esse é um aspecto recorrentemente salientado por Soljenítsin –, o
sistema carcerário czarista era de uma benevolência extrema quando comparado àquele
que os bolcheviques viriam a estabelecer. A expressão «campos de concentração»
não foi inventada pelos nazis: Trotsky usou-a em Junho de 1918, propondo que aí
fossem agrupados prisioneiros checos, e, em Agosto do mesmo ano, num telegrama
para os comissários de Penza, Lenine também exortou ao «terror de massas contra
os kulaks, sacerdotes e Guardas
Brancos» e à «detenção dos duvidosos (…) num campo de concentração fora da
localidade». De resto, as tentativas de branqueamento da acção de Lenine (e de
Trostky), feitas à custa de uma responsabilização exclusiva de Estaline, não
resistem a um confronto até com obras de ficção, como a novela O Tchekista, de Vladímir Zazúbrin,
escrita em 1923 (trad. portuguesa, Antígona, 2012). No entanto, e apesar de em
1921 já existirem 84 campos em 43 províncias, destinados a «reabilitar» os «inimigos
do povo» (categoria indeterminada, cujo conteúdo foi variando ao longo do
tempo), a grande expansão inicia-se em 1929, quando Estaline decidiu usá-los
como fonte de mão-de-obra escrava e o arquipélago carcerário passou a ser directamente
controlado pela polícia secreta. É mais ou menos por essa altura que ocorre a
fixação nas Ilhas Solovetsky e a construção do Canal do Mar Branco, onde
morreram cerca de 25.000 prisioneiros para que aquela obra colossal estivesse
pronta no prazo-recorde de 20 meses imposto por Estaline. Mais tarde, houve uma
diminuição ligeira do número de internados com as amnistias da 2ª Guerra, mas
também uma degradação brutal das condições de vida, com o racionamento, a falta
de bens essenciais, as epidemias de disenteria e de tifo (no Inverno de 1941-1942,
um quarto da população do Gulag morreu de fome). Seguiu-se um recrudescimento muito
significativo de prisões a partir de 1948, quando a repressão se intensificou
nos últimos anos de vida de Estaline. Um dos piores anos da história do Gulag
foi 1952, nas vésperas da morte do Pai dos Povos.
Campos de trabalho
Os campos não eram campos de extermínio, mas
de trabalho – de trabalho escravo, segundo a tradição ancestral da katorga, feito nas piores condições e
lugares, como as terríveis minas de ouro de Kolymá, imortalizadas nos contos de
Varlam Chalamov, a quem Soljenítsin chama «um irmão entre os irmãos escondidos».
As jornadas laborais chegavam a durar dezasseis ou mais horas por dia, a
temperaturas abaixo dos 50 ou mesmo 60 graus negativos. Ia-se para o Gulag
pelas mais variadas razões, por motivos absolutamente triviais ou menores (por
exemplo, dez anos de prisão por furtar um carrinho de linhas ou por apanhar um
punhado de maçãs propriedade do Estado; por ter quatro vacas numa aldeia onde
os outros só tinham uma; por contar uma anedota sobre Estaline; por chegar
atrasado uns minutos ao trabalho), através de sentenças ditadas em processos
sumaríssimos. Coleccionar selos ou praticar esperanto eram duas actividades particularmente
suspeitas, entre tantas outras. Muitas vezes, não se era preso por praticar
algum acto em concreto mas por pertencer a uma categoria social ou grupo (ex.
judeus, polacos, religiosos, republicanos espanhóis, emigrantes) que, numa dada
conjuntura e por estratégias extremamente imprevisíveis e voláteis, era alvo de
perseguição: «as pessoas não eram presas pelo que tinham feito, mas por serem
quem eram», escreve Anne Applebaum. Em 1942, foram presos os quatro irmãos
Sarostin, todos eles conhecidos jogadores de futebol; sempre acreditaram que a
sua prisão se deveu ao facto de a sua equipa, o Spartak de Moscovo, ter
derrotado numa partida o Dínamo, clube favorito de Lavrenty Béria. O filho de
um antigo rival de Estaline teve de aguardar nove meses para que encontrassem
algo para o acusar; no final, consideraram-no culpado de ser um «esteta» (sic), e foi condenado a dez anos de
prisão. Em The Unquiet Ghost (1994),
uma reportagem magistral sobre a memória do estalinismo, Adam Hochschild conta
que entrevistou um sobrevivente que fora condenado a cinco anos de prisão num
julgamento que durou cinco minutos. A propaganda comparava os condenados a
vermes, ervas daninhas ou doenças infecciosas, recorrendo às mesmas fórmulas sanitárias
que os nazis aplicaram aos judeus no Holocausto ou que, muitos anos depois, os
hutus do Ruanda utilizaram para fomentar o ódio aos tutsis. As imundas «baratas»
que deviam ser dizimadas, nas exortações propagandísticas dos hutus, têm uma
afinidade evidente com o propósito anunciado por Lenine em 1918: «limpar a
terra russa de todos os insectos nocivos».
No
Gulag, como assinala Anne Applebaum, não houve uma «industrialização da morte»
semelhante à ocorrida no Holocausto, ideia seguida entre nós por Rui Bebiano no
ensaio «Combater pela dignidade da memória no Gulag» (LER, Novembro de 2009, pp. 70-73). «O Gulag não tinha campos de
morte de tipo nazi, como Belzec ou Sobibor (ainda que tivesse campos para
execuções). Mas, pela natureza das coisas, todos os campos eram campos de
morte», escreve Martin Amis em Koba, o
Terrível (trad. portuguesa, Teorema, 2003). Na verdade, o que mais
surpreende em todo o sistema carcerário soviético é a sua profunda
irracionalidade quanto aos fins visados. Geridos de uma forma absolutamente
caótica, os campos nunca foram rentáveis economicamente; pelo contrário, foram
um autêntico desastre desse ponto de vista, o que obrigou os administradores a
falsearem as estatísticas e a empolarem os resultados, sob pena de, como
aconteceu a muitos deles, serem executados sob a acusação de pertencerem à
mesma «organização de direita trotskista». Também as estatísticas dos óbitos eram
manipuladas: os médicos dos campos tinham instruções para esconder os cadáveres
dos inspectores ou de libertar os moribundos, para que não aparecessem nas
listas de mortos. «Era como se o sistema precisasse de uma explicação para o
seu mau funcionamento – como se precisasse de encontrar pessoas a quem culpar»,
escreve Applebaum. Daí que desde meados ou finais dos anos 1920 – mais
precisamente, a partir de 1927 – se acumulassem as condenações por «sabotagem»,
pois só assim se explicaria os desastres dos grandes projectos de obras
públicas concebidos por Estaline ou mesmo factos tão singelos como este, citado
por Soljenítsin: nos campos, o custo de produção de um divã chegava aos 800
rublos, mas o preço de venda era de 600… Uma auditoria às finanças do Gulag,
realizada no consulado de Khruschev, em Junho de 1954, comprovou o que já se
sabia há muito: os campos eram caóticos, eternamente deficitários e largamente
subsidiados.
A
irracionalidade do Gulag via-se nos mais ínfimos pormenores: por exemplo, não
era incomum uma família inteira, com mulheres e crianças, ser enviada para os confins
da Sibéria, o que implicava um fardo adicional e desnecessário para os já
apertados orçamentos dos campos. Como refere Soljenítsin no Arquipélago, acentuando que nada disso ocorria no tempo dos
czares, nas vagas repressivas comunistas «queimavam-se logo os ninhos
completos, levavam sempre famílias inteiras e até procuravam ciosamente que
nenhum dos filhos de catorze, dez ou seis anos se escapasse: todos deviam ir
para o mesmo lugar, para o mesmo extermínio comum». E mesmo que não houvesse um
desterro colectivo, a prisão e a deportação de um homem implicavam sempre a queda
em desgraça de toda a sua família, doravante ostracizada e caída na penúria. Um
depoimento extraído do Arquipélago:
«desde os seis anos fui a “filha de um traidor à pátria” – e não havia no mundo
coisa mais horrível». Aliás, Aleksandr Soljenítsin e a sua primeira mulher,
Natalia Rechetovskaia (e não Natasha, como erroneamente a identifica Anne Applebaum),
chegaram a ponderar divorciar-se para que ela pudesse ter uma vida normal e
decente, episódio que seria contado, em termos ficcionais, no livro O Primeiro Círculo. Nas suas memórias de
prisioneira de Estaline e de Hitler, Margarete Buber-Neumann recorda-se de uma
mulher, mãe de três crianças pequenas, que ao entrar na cela deu graças a Deus
por ter sido presa, dizendo: «agora, finalmente, os meus filhos vão ter algo
que comer. Desde que o meu marido foi detido, perdi o emprego e não tínhamos
nada para comer» (Under Two Dictators. Prisioner
of Stalin and Hitler, 2009, pp. 35-36). Nos anos vinte, uma mulher escreveu
a Dzerzhinsky, o chefe da polícia política, agradecendo-lhe o facto de a ter
prendido e ao seu filho de três anos de idade – caso assim não tivesse
sucedido, a criança seria entregue a um orfanato, que aquela mãe classificou
como «fábrica de fazer anjos», tais eram as taxas de mortalidade aí registadas.
Noutro testemunho citado no Arquipélago, um jovem de catorze anos
dizia: «toda a pessoa honesta deve ir parar à prisão. Agora está lá o meu pai,
e quando eu crescer prendem-me também a mim». A profecia cumpriu-se: foi preso
aos vinte e três anos. Uma lei de 1935 permitia que menores a partir dos doze
anos fossem julgados como adultos e eram numerosos os casos de crianças
condenadas pelo famigerado artigo 58º do Código Penal, ainda que seja
certamente excepcional – e ilegal – a situação que Soljenítsin refere no Arquipélago, de um menino que cumpria
pena aos seis anos de idade. Nos campos, havia amnistias frequentes de velhos,
doentes ou grávidas, logo acompanhadas de novas vagas de detenções. A todo o
sistema repressivo, desde os mais altos dirigentes aos guardas dos campos mais
remotos, interessava um elevado número de prisões: num país marcado pela fome e
a miséria, o trabalho na polícia política ou na vigilância das prisões era não
só bem remunerado como conferia algum estatuto social, um status decerto ditado pelo medo às autoridades mas também pela
assimilação da «normalidade» do terror e da repressão. Como refere Applebaum,
«muitos viam simplesmente o Gulag como a menos má das opções». Por isso, quanto
mais presos houvesse mais garantia existia de segurança no emprego – se se
fizessem poucas detenções, o sistema seria obrigado a reduzir os seus zelosos
funcionários. Por outro lado, a corrupção e a incompetência faziam com que
fossem colocados em serviços administrativos, mais suaves, criminosos de delito
comum semianalfabetos, enquanto presos com elevadas qualificações eram
relegados para o trabalho braçal e para as tarefas mais duras. Um sobrevivente
ainda hoje se recorda que a sua brigada de trabalho era integrada por 36
homens, todos doutorados, cuja missão consistia em assentar tijolos. Outro diz
que, no campo onde esteve internado, um médico polaco altamente qualificado foi
mandado cortar árvores para a floresta, enquanto um antigo proxeneta foi
trabalhar como contabilista, ainda que não soubesse sequer o que era
contabilidade e fosse praticamente analfabeto. Do ponto de vista económico, não
fazia o mínimo sentido pretender explorar uma força de trabalho subnutrida e
exausta, com rações miseráveis de 400 gramas de pão por dia. A menos que existisse
a convicção de que, massacrada uma vaga de prisioneiros, outra se lhe seguiria,
numa sucessão infindável («uns iam para debaixo da terra, a Máquina trazia
outros», lê-se no Arquipélago). Na
verdade, não é possível descartar a hipótese de, na concepção e administração
dos campos, terem existido dois objectivos distintos – a rentabilização
económica e a criminalização política – nem sempre compatíveis e até, com mais
frequência, perfeitamente inconciliáveis. Umas vezes prevalecia o aspecto
laboral; noutras, a liquidação, lenta mas inexorável, dos prisioneiros
políticos, quase sempre sujeitos a um tratamento mais árduo do que o reservado
aos criminosos de delito comum. Houve excepções a esta regra, sobretudo quando Béria
se apercebeu de que poderia aproveitar o saber técnico de certos reclusos,
bastando dizer que entre eles se encontravam o engenheiro aeronáutico Andrei Tupolev
ou Serguei Korolev, futuro pai do Sputnik e de todo o programa espacial
soviético. Para investigadores como eles, Béria começou a organizar, em
Setembro de 1938, oficinas e laboratórios especiais, as sharashki, com condições de vida e trabalho substancialmente
melhores. Aleksandr Soljenítsin esteve internado numa sharashka no Cazaquistão, experiência que servirá de matéria-prima
ao seu livro O Primeiro Círculo (1968),
e Lev Mishenko, a personagem central da emocionante história verídica narrada
por Orlando Figes em Just Send Me Word
(2012) beneficiou, e muito, do facto de ter sido libertado do trabalho braçal
para aplicar a sua formação em Física no laboratório que outro preso, Georgii
Strelkov, dirigia no campo de Pechora. A partir de certa altura, foi criado
nesse campo um posto de correio e aberta uma pequena loja onde os internados
podiam comprar pão, manteiga, salsichas, açúcar ou mesmo quantidades limitadas
de vodca. Em Solovetsky existia um restaurante que podia (ilegalmente) servir
os presos e, a dada altura, a administração do campo abriu lojas na ilha, onde
os presos podiam comprar vestuário, ainda que ao dobro dos preços praticados
nos estabelecimentos comerciais das grandes cidades.
Nada
disto tem semelhança com os campos nazis, onde era impensável captar imagens ou
comprar roupas e géneros alimentícios. Mas, de igual modo, nada disto é
comparável às condições de muitas das ilhas do Gulag, como Kolymá, onde
anualmente morriam 20% dos reclusos, ou de campos onde os presos nem edifícios
tinham para viver, dormindo em abrigos ou buracos que eles próprios escavavam
na terra, os zelyanki. Outros campos
estavam atrozmente sobrelotados: um centro de detenção construído para 250 a
300 pessoas, em Siblag, na Sibéria, albergava em 1935 mais de 17.000 presos, amontoados
de forma inimaginável, surreal. Na prisão de Ivanovo, segundo se conta em O Arquipélago, numa cela edificada para
20 homens estavam encarcerados 323 indivíduos.
Como
se disse, há imagens dos campos, diversas fotografias. Durante quinze anos, o jornalista
polaco Tomasz Kizny reuniu-as pacientemente, dando-as à estampa num livro de
grande formato, um álbum volumoso e maciço com o singelo título Goulag, editado por Dominique Roynette
com textos de Norman Davies, Jorge Semprun e Sergueï Kovalev (Acropole/Éditions
Balland, 2003). Ao folhearmos o livro, além da dimensão ciclópica das grandes
obras públicas ou da alvura das imensidões geladas, o que mais impressiona é o
facto de as fotografias serem inexpressivas ou, melhor dito, não mostrarem uma
realidade terrível, longe disso. O que vemos são homens a trabalhar na neve ou
na estepe, camaratas cheias de presos, mulheres a subir a bordo de um navio.
Nada do que ali se vê é particularmente chocante, pois as fotografias não
mostram tudo – as execuções sumárias ou as violações em grupo, a fome e a
pelagra, a agonia ao frio, os cadáveres congelados.
Um dia no campo
No
sistema dos campos – a que os prisioneiros chamavam, não por acaso, «Picadora
de Carne» –, o quotidiano dos detidos políticos era marcado de forma dramática pela
presença de criminosos de delito comum, condenados por actos hediondos ou
membros de gangues educados desde crianças no culto da violência extrema, os urki.
O tormento começava logo na viagem de
comboio ou de navio. Além de violarem brutalmente as mulheres, os jovens
criminosos de delito comum não hesitavam em insultar e urinar sobre os presos
políticos mais velhos. Na entrada dos campos, placas com dísticos em tudo
semelhantes aos usados pelos nazis: «Pelo Trabalho – Liberdade!», afirmava um
cartaz em Solovetsky, proclamação com uma inequívoca parecença com «O Trabalho
Liberta», colocado em Auschwitz e noutros campos de concentração alemães. A
música era outro dos pontos em comum entre os campos soviéticos e nazis. Em
muitas das ilhas do Gulag, o dia começava de forma bizarra, ao som de uma banda
musical composta por prisioneiros, amadores e profissionais. Depois seguia-se
uma jornada de trabalho de doze, catorze ou dezasseis horas, com cinco minutos
de intervalo a meio da manhã e a meio da tarde e uma hora para almoço por volta
do meio-dia. Os presos com regimes mais severos tinham uma folga de dois dias por
mês, sendo a regra geral um dia de descanso por semana. Daí que fosse
absolutamente vital evitar as tarefas mais duras, poupar forças, fingir que se
trabalhava (a tufta, traduzível como
«enganar o chefe»), como fica patente na novela de Soljenítsin Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch. À
noite tinha de se descansar o melhor possível, sendo implacáveis as lutas para
dormir nos lugares mais espaçosos e confortáveis, junto às fontes de calor. Em
muitos campos, e já depois da morte de Estaline, havia presos a dormir em
tendas, ao relento, enfrentando temperaturas negativas e tempestades geladas. A
balanda, a sopa dada aos prisioneiros
uma ou duas vezes por dia, chegava a ser feita de carne de cão. A comida, já de
si escassa, era frequentemente roubada: desde logo, desviada pelos responsáveis
dos campos, começando nos directores e terminando nos escalões mais baixos dos
chefes dos armazéns; depois, roubada entre os presos, com clara desvantagem,
obviamente, dos mais fracos perante os mais fortes, ou seja, dos presos
políticos face aos criminosos de delito comum. Havia apenas uma regra
inviolável, segundo a descrição de Anne Applebaum: o pão sagrado. A ninguém,
nem sequer ao mais fraco ou ao moribundo agonizante (a quem chamavam fitili, «pavio», ou gavnoedy, «come-merdas»), era legítimo roubar o seu pedaço de pão.
Quem desrespeitasse esse mandamento, vigente em todos os campos, era espancado
até à morte.
Também se espancavam até à morte os
que, nas brigadas de trabalho, não conseguiam manter o ritmo dos seus
companheiros. O trabalho processava-se ora em invernos terríveis, a
temperaturas abaixo dos 50 graus negativos, ora em verões insuportáveis, sob
nuvens de mosquitos. Nas saídas para a estepe gelada, era frequente perderem-se
elementos, gente que ficava para trás ou se perdia nas tempestades, gente cujos
corpos estavam ali por perto, a poucos metros de distância, mas só eram
encontrados meses depois, no despontar da Primavera. O frio era tão intenso
que, por vezes, tinha que se espancar os prisioneiros para que estes fossem
lavar-se aos balneários. Cada um protegia-se como podia, fazendo sapatos e
botas com cascas de árvores, pedaços de tecido, trapos, pneus velhos. Imperavam
a desorganização e o caos, sucediam-se os acidentes de trabalho fatais, as
máquinas avariavam-se a toda a hora, trabalhava-se com as mãos, pás e picaretas
na edificação de projectos megalómanos. Ergueu-se uma ponte 600 quilómetros a
norte de Magadan, projectada por um preso que, apesar de formado em engenharia,
nunca desenhara uma ponte; foi levada pela primeira cheia. Em 1947, o governo
decidiu construir uma gigantesca linha férrea entre a região de Vorkuta e a foz
do rio Ob. No auge dos trabalhos, entre 80 a 120 mil presos tentaram edificar essa
linha, que ficou conhecida por «Estrada da Morte», tantos foram os que aí
perderam a vida. Poucas semanas após a morte de Estaline (festejada em todo o
Gulag, naturalmente), o projecto, que já custara 40 biliões de rublos e dezenas
de milhares de vidas, foi abandonado para sempre.
Pior do que o trabalho era o convívio
com os urki. Roubavam os outros
presos, humilhavam-nos com as piores obscenidades, masturbavam-se e praticavam
sexo à frente de todos, andavam nus pelas camaratas, exibindo os seus corpos
tatuados. Soljenítsin fala disso no
Arquipélago: «têm tatuagens na pele bronzeada, e assim satisfazem
permanentemente as suas necessidades artísticas, eróticas e até morais». Num
livro recente, Educação Siberiana (trad.
portuguesa, Alfaguara, 2010), de Nicolai Lilin – ele próprio, tatuador
profissional –, refere-se igualmente os «códigos das tatuagens» e a sua
importância: «nas comunidades criminais russas existe uma forte cultura da
tatuagem, e cada uma delas tem um significado. A tatuagem é uma espécie de
Bilhete de Identidade que serve para comunicar a própria posição no interior da
comunidade criminal: o género de “informação” criminal, vários esclarecimentos
sobre a vida pessoal e sobre as experiências de encarceramento». Entre as tatuagens
mencionadas por Soljenítsin, destacavam-se os rostos de Lenine ou de Estaline
no peito – acreditava-se ingenuamente que nenhum guarda ou pelotão de
fuzilamento ousaria disparar sobre a efígie dos fundadores da União Soviética… Ao
produzir muitos milhares de órfãos, a revolução, a guerra e a colectivização
fizeram crescer exponencialmente a marginalidade e o submundo criminal russo.
De acordo com as estatísticas da própria polícia política, o NKVD, os «centros
de recepção» infanto-juvenis recolheram mais de 842 mil crianças entre 1943 e
1945, ou seja, quase um milhão de órfãos ou fugitivos de casa dos pais ou das
fábricas onde trabalhavam. Não admira, pois, o número assombroso de jovens que
engrossaram as fileiras da criminalidade. Vivendo em bandos dominados por
hierarquias tirânicas e códigos de conduta implacáveis, falando um calão próprio
e animalesco, a «língua de ladrão» (blatnoe
slovo), inacessível aos não-iniciados, os presos de delito comum,
especialmente os condenados a penas mais prolongadas, sabiam que dificilmente
sairiam com vida do Gulag ou das prisões soviéticas. Estavam ali para sempre,
entregando-se à barbárie pura, abusando das reclusas – que nos campos de
trabalho sempre estiveram em menor número do que os homens, sendo 13% da
população prisional em 1942 e 17% dez anos depois, em 1952 –, recorrendo a
mulheres que se prostituíam ou, na falta delas, tendo como servos jovens
rapazes que recebiam comida extra em troca de favores sexuais. Uma das
principais distracções dos urki eram
os jogos de cartas, em que os que ganhavam podiam conquistar o pavilhão das
mulheres, para si e para os seus comparsas, e os que perdiam tinham de esticar
o braço para que lhes fossem cortados dois ou três dedos da mão. Um jogador
infortunado tornou-se «surdo-mudo», sendo impedido de usar a voz e proferir qualquer
palavra durante três anos; se acaso desrespeitasse a pena, seria imediatamente
morto. Outro sofreu a humilhação suprema de ver o seu rosto tatuado com um
enorme pénis, apontado à boca. Com o tempo, as coisas melhoraram, pois a proporção
entre presos de delito comum e presos políticos foi-se alterando: nos anos
1937-1938, os políticos eram uns meros 12 ou 18%; durante a guerra, passaram
para 30 a 40% da população prisional; em 1946, eram já a maioria, com quase
60%. Para comemorar a vitória sobre a Alemanha nazi, Estaline concedera uma
amnistia generosa, a qual, no entanto, abrangia sobretudo os presos de delito
comum, facto que suscitou a repulsa de Soljenítsin, que, indignado, escreve no Arquipélago: «foram pura e simplesmente
libertados todos aqueles que assaltaram apartamentos, despiram os transeuntes,
violaram raparigas, corromperam menores, enganaram clientes, vigarizaram,
estropiaram pessoas indefesas, praticaram caça e pesca furtivas, praticaram a
poligamia, a extorsão, a chantagem, a corrupção, a fraude, a calúnia, a
denúncia falsa (esses nem sequer foram presos), traficaram narcóticos, os
alcoviteiros, os proxenetas, os que causaram vítimas humanas por ignorância ou
negligência (isto não é nenhuma figura retórica, estou simplesmente a enumerar
os artigos do Código que figuravam na amnistia)».
Da convivência com os urki não existem, evidentemente,
registos fotográficos. Resta-nos um caderno de desenhos da autoria de Danzig
Baldaev, um ex-prisioneiro dos campos. Publicado em inglês em 2010, pela
editora Fuel, Drawnings from the Gulag
é uma obra indescritível. Em vinhetas carregadas de riscos e sombreados, que
pela sua expressividade fazem lembrar o estilo de Robert Crumb, vemos mulheres
a serem torturadas, nuas, para aumentar a humilhação e a pressão psicológicas;
homens pendurados do tecto, com as mãos atrás das costas; outros, crucificados,
com as partes genitais a serem queimadas com um maçarico; mulheres sodomizadas com
garrafas de champanhe, ou esvaídas em sangue, flageladas por bastões e paus.
Acompanhamos a jornada até aos campos, em navios apinhados, as violações em
massa, brutais. No campo, os urki a
jogar às cartas: o tronco nu, coberto de tatuagens. Crianças levadas em bandos,
para longe dos pais; outras baleadas a sangue frio nas estações ferroviárias de
Tomsk, Mariinsk e Shimanovskaya, em 1938 e 1939, devido à sobrelotação dos
orfanatos. A violência dos criminosos de delito comum: homens empalados pelo
ânus, outros cortados ao meio com uma serra de lenhador; presos sodomizados com
ferros em brasa ou por outros reclusos, nas camaratas, à vista de todos. O pior
do Gulag está ali, nos desenhos de Baldaev, a ponto de desconfiarmos da
verosimilhança de tantos horrores: os homens queimados vivos, cobertos de gasolina
ou querosene; as mulheres que se recusavam a ser concubinas dos guardas e que eram
atadas a árvores, despidas e de pernas abertas, besuntadas de óleo ou margarina
como chamariz para as formigas. Depois, o jargão selvagem do Gulag: bantik-krantik (o estrangulamento de uma
vítima com uma toalha, à noite); vylozhenny
(um preso que foi castrado nas camaratas pelos outros reclusos); Zapodolit poblyadushku (a introdução de
objectos na vagina e no ânus das mulheres); Mena
poveselit podzharokj (queimaduras infligidas por um ferro eléctrico).
Assim se passavam os dias nos campos. Henry
Wallace, vice-presidente dos Estados Unidos, fez uma visita a Kolymá em Maio de
1944 – e nunca chegou a saber sequer que estava a visitar uma prisão.
Um livro, um homem
Ao
contrário do que por vezes se julga, O Arquipélago
Gulag, agora objecto de uma nova edição portuguesa, com tradução de António
Pescada (Sextante Editora, 2017), não foi a primeira denúncia do sistema
carcerário soviético feita no Ocidente. Sobre os horrores das Ilhas Solovetsky
já existiam relatos pormenorizados desde os anos vinte, como o do francês
Raymond Duguet, Un Bagne en Russie Rouge,
de 1927, e o do georgiano S. A. Malsagov, An
Island Hell, de 1926. Em 1928 é impresso em Paris o texto da antiga professora
e activista P. E. Melgunova-Stepanova, traduzido em inglês com o título «Where
Laughter is Never Heard», provavelmente o primeiro testemunho de um
ex-prisioneiro do regime comunista. No mesmo ano, e também editado em França, Mes 26 prisons et mon évasion des Solovki,
de Youri Bessónov, livro que «assombrou a Europa», nas palavras de Soljenítsin.
Em 1931, o londrino The Times publicou
uma série de artigos que descreviam pormenorizadamente as condições de trabalho
forçado na União Soviética e, por causa disso, os sindicatos ingleses e
norte-americanos advogaram um boicote às mercadorias vindas da Rússia.
Curiosamente, o Partido Trabalhista britânico opôs-se a tal boicote,
argumentando que suspeitava das reais intenções dos seus promotores. Graças à
colaboração de intelectuais de renome como o romancista Máximo Gorky e de destacados
compagnons de route estrangeiros,
como H. G. Wells, George Bernard Shaw, Julian Huxley ou Sidney e Beatrice Webb,
e devido aos milhões de mortos do Exército Vermelho na 2ª Guerra, a propaganda
soviética conseguiu debelar as denúncias, fazendo-as passar por panfletos
anticomunistas. Muitos outros livros veriam a luz do dia, como Forced Labor in Soviet Russia (1947), de
David Dallin e Boris Nicolaevsky, ou Forced
Labor and Economic Development (1965), de S. Swaniewicz, a par de
depoimentos como Eleven Years in Soviet
Prison Camps (1951), de Elinor Lipper, e Tell the West. An Account of His Experiences as a Slave Laborer in
the Union of Soviet Socialist Republics (1948), de Jerzy Gliksman. Em
1980, numa polémica com Soljenítsin nas páginas da revista Foreign Affairs, Robert C. Tucker, professor em Princeton, lembrará
ao autor de O Arquipélago Gulag que
não tinha sido propriamente um pioneiro nas suas revelações sobre os campos
estalinistas. Em todo o caso, a observação de Tucker era incapaz de explicar o
clamor mundial suscitado pela publicação da opus
magnum de Soljenítsin. Na verdade, e para dar apenas alguns exemplos, pouco
relevo teve a publicação entre nós, em 1964, pela Editorial Aster, de Passaporte para a Sibéria, de Marcel
Giuglaris. E mesmo noutras paragens, como Itália, não mereceu grande destaque a
publicação, em 1967, pela Mondadori, de Viaggio
nella Vertigine (trad. portuguesa, Moraes, 1969), testemunho autobiográfico
de Evgeniia Ginzburg, citado por Soljenítsin no Arquipélago e considerado actualmente uma obra maior da literatura
do Gulag, em que a autora relata a sua experiência prisional de 17 anos, dois
dos quais passados na solitária, em absoluto isolamento. Em Inglaterra, as
obras de Robert Conquest, como The Great
Terror (1968), foram recebidas com um misto de incredulidade, desconfiança
e desdém. Martin Amis recorda, em Koba, o
Terrível, a forma como o seu pai, o escritor Kingsley Amis, e Robert
Conquest eram tidos por «fascistas» e, aliás, assumiam jocosamente esse rótulo.
Em parte, a invasão da Checoslováquia e o
anti-sovietismo do Maio de 1968 iriam alterar este panorama. Mesmo assim, o
livro, saído em 1971, Une nouvelle
maladie mentale en URSS: l'opposition (trad. portuguesa, Afrodite, 1977),
de Vladimir Boukovski, não despertou uma comoção comparável à publicação em
França, dois anos mais tarde, da obra de Soljenítsin, responsável por «uma
pequena revolução intelectual», nas palavras de Anne Applebaum. Na época,
vários editores chegaram a envolver-se em disputas judiciais para obterem os
direitos de tradução de O Arquipélago
Gulag. Para este alvoroço concorreram diversos factores, com destaque para
a distinção do autor com o Nobel da Literatura em 1970, recebido quando se
encontrava refugiado na casa – o «asilo bendito» – do violoncelista Mstislav
Rostropovitch, em Moscovo: «o prémio caiu-me sobre a cabeça como neve
jubilosa!», dirá na narrativa autobiográfica O Carvalho e o Bezerro (trad. portuguesa, Bertrand, 1976), onde
conta também que, após longas negociações, e com receio de ser impedido de
reentrar no seu país, optou por não se deslocar a Estocolmo para receber o
galardão. Em França, os 600.000 exemplares da primeira edição de O Arquipélago Gulag esgotam-se num ápice
e as Éditions du Seuil dedicam a Soljenítsin um álbum fotobiográfico onde é
patente o fascínio por aquela encarnação viva da pureza da alma russa, dotada
de uma força interior indomável, capaz de resistir a todas as privações e
ameaças, entregando-se ao dolorosíssimo exílio interno dos que se recusavam a
abandonar a sua terra-mãe e optavam por lutar contra o sistema a partir de lá («Durante todos esses
anos, houve um ponto do qual não desisti – assim fora eu forjado no campo de
concentração, assim pensava eu com os meus amigos nos campos de concentração: a
posição mais forte consistia em fustigar o inimigo baseado na nossa experiência
das galés, mas atacando de lá»,
escreveu em O Carvalho e o Bezerro,
perguntando: «seremos realmente tão fracos que não possamos combater um pouco aqui?»). Pouco depois da publicação de O Arquipélago – mais precisamente, em
1975 –, o sistema concentracionário soviético foi novamente abordado num ensaio
de grande impacto, A Cozinheira e o
Devorador de Homens (trad. portuguesa, Afrontamento, 1978), do soixante-huitard André Glucksmann, que
logo nas primeiras páginas evoca o nome de Aleksandr Soljenítsin.
Não
seria esta, evidentemente, a posição do PCP (nem, de resto, do Partido
Comunista Francês, numa primeira fase), para quem a popularidade de Soljenítsin
se devia a uma encenação anticomunista: «não se trata já apenas de um
instrumento do anti-sovietismo. Trata-se de um seu agente», nas palavras do Avante!, nº 463, de Março de 1973, na
esteira do que diziam o L'Humanité
(«uma campanha anti-soviética») ou Témoignage
chrétien («eles são livres de proferir todas as asneiras reaccionárias que
quiserem»). A dado passo, o Le Monde
escreveria mesmo que Soljenítsin se preparava para visitar o Chile de Pinochet,
tendo sido obrigado, dois dias depois, a desmentir aquela falsidade grosseira,
tão grosseira como outras tentativas de difamação feitas anos antes (como a que
dizia que o escritor trabalhara para a Gestapo durante a 2ª Guerra…). Nos anos
anteriores à deportação, quando já tinha sido galardoado com o Nobel, intensificam-se
as manobras intimidatórias. Cartas anónimas, telefonemas insultuosos, acções de
vigilância ostensiva por parte do KGB, ameaças a si e à sua família, tentativas
de intercepção dos manuscritos, as autoridades soviéticas urdiram uma
gigantesca campanha contra Soljenítsin, indo ao ponto de mobilizar a sua
primeira mulher, Natalia Rechetovskaia, que em vão tenta demovê-lo de
prosseguir os seus intentos de denúncia do regime comunista. No decurso deste processo,
o escritor parece sentir perder as forças, confessando: «somos todos feitos de
carne quente, não existem homens de aço». Após a publicação de O Arquipélago em Paris, no final de
1973, faz prognósticos sobre o que lhe poderia suceder, tal como refere em O Carvalho e o Bezerro: assassínio; prisão
e condenação; exílio sem prisão; banimento para o estrangeiro; campanha de
imprensa para abalar o crédito do livro; difamação do autor através da sua
primeira mulher; negociações; concessões mútuas, admitindo o regime que os
factos relatados no livro eram anteriores a 1956. «O Caminho da Traição», era o
título com que o Pravda noticiava a
publicação de O Arquipelago, e a
partir daí os acontecimentos precipitam-se: novo vendaval de ameaças e cartas
anónimas, a edição alemã do livro sai a 22 de Janeiro de 1974 esgotando em
poucas horas, e, quando é publicado pela Harper and Row o primeiro tomo de Arquipélago em língua inglesa, em
Setembro daquele ano, já há sete meses que o escritor fora expulso do seu país.
«A
esquerda bem-pensante não o lia. Nem eu», confessou Zita Seabra; «fazia afirmações
que eu não apreciava», referiu Carlos Brito aquando da morte do escritor, em
Agosto de 2008. Num texto saído no PÚBLICO em 5/8/2008, Jorge Almeida Fernandes
recorda as pressões que o escritor e os seus próximos sofreram. Em 1973, o KGB
interrogou a sua dactilógrafa – que pouco depois se enforcará –, apoderando-se
de uma cópia do original de O Arquipélago
Gulag, que, no entanto, já havia sido enviado em microfilme para o
Ocidente. Alguns percebem o que estava em causa: usando palavras semelhantes às
do Frankfurter Allgemeine («talvez
venhamos um dia a considerar o aparecimento do Arquipélago como o ponto de referência que marca o início da
decomposição do sistema comunista»), o The
Times escreveu que «virá o tempo em que situaremos o princípio do colapso
do sistema soviético na data de publicação do Gulag». Estas afirmações talvez
sejam exageradas, mas o facto é que, não muito depois, e para além do já citado
livro de Glucksmann, Hélène Carrère d’Encausse publicará em 1978 uma obra
premonitória, L’Empire Éclaté. Nesse
mesmo ano de 1978, Conquest dará à estampa um livro marcante na historiografia
do Gulag, Kolyma. The Arctic Death Camps,
que a partir de obras memorialísticas, documentação de arquivo e entrevistas
directas a 18 ex-prisioneiros, conta histórias tremendas da vida nos campos,
como a das violações de mulheres perpetradas pelos urkas, em Magadan e noutros lugares. Uma das fontes de Conquest foi,
naturalmente, O Arquipelago Gulag.
Não
admira, pois, a reacção das autoridades soviéticas e a campanha movida contra Soljenítsin,
retratado como um louco, um furioso anti-semita e até um alcoólico (cf. D. M.
Thomas, Alexander Solzhenitsin: A century
in his life, 1998; Michael Scammel, Soljenitsine.
A biography, 1984, pp. 664-665). Muitas das tentativas de difamação eram
escandalosamente desastradas (o escritor não gostava de álcool e era abstémio…)
e os dirigentes da URSS trataram o «caso Soljenítsin» da pior maneira, levando-o
para a prisão de Lefortovo e colocando-o às pressas num avião, em Fevereiro de
1974. Sob a acusação de «traição à pátria», foi deportado para a Alemanha
ocidental, onde seria calorosamente recebido por Heinrich Böll, tendo o escritor
alemão classificado os Läger nazis e
os campos do Gulag como «a experiência do século».
Ao
agir desse modo – e como bem observa Jorge Almeida Fernandes –, os líderes
comunistas deram-lhe uma tribuna e contribuíram para a projecção mundial do seu
nome, adensando em redor de Aleksandr Issaévich Soljenítsin a aura trágica de
sacrifício e martírio que o acompanhava desde há muito: nascido em Lislovodosk,
no Cáucaso, em 1918, filho de uma família de camponeses abastados, o seu pai
morreu pouco depois de regressar da frente de batalha na Grande Guerra. Como
referiu numa entrevista de 1972, o avô materno «era muito rico» e a sua mãe,
conhecedora de francês e inglês, de dactilografia e estenografia, enfrentou
grandes dificuldades para encontrar emprego após a Revolução de Outubro – em
lugar algum a aceitavam por causa da sua «origem de classe». Durante quinze dos
dezanove anos que passaram em Rostov, e apesar de a sua mãe ser viúva (o pai
morrera quando ela estava grávida de seis meses de Aleksandr), não tiveram sequer
direito a um quarto do Estado, sendo obrigados a alugar casas a particulares,
por preços exorbitantes. Soljenítsin seria mobilizado para a guerra em 1941,
onde como capitão de artilharia foi condecorado duas vezes. Por troçar de
Estaline na correspondência privada com um amigo, chamando-lhe «Cabecilha», é detido
em 1945 e interrogado na Lubianka (numa frase célebre, chamaria «desgraçado» ao
pedaço de céu que se via do pátio interior da prisão moscovita e sede da
polícia política), sendo condenado a oito anos de trabalhos forçados. No último
ano que cumpria pena, foi-lhe detectado um tumor maligno: «eu tive de viver com
um tumor do tamanho do punho de um homem», escreve em O Arquipélago. Acaba por vencer a doença, experiência que lhe
serviu para a escrita de O Pavilhão dos
Cancerosos, de 1968, sendo frequentes as metáforas oncológicas em O Arquipélago Gulag, onde se fala de metástases,
do «cancro de Solovki» ou do «tumor canceroso do Arquipélago». Reabilitado no
tempo de Khruschev, proposto para o Prémio Lenine, o mais alto galardão
literário da União Soviética, seria posteriormente expulso da União dos
Escritores e todas as suas obras retiradas das bibliotecas e proibidas de
circular, processo que culminaria na expulsão de Soljenítsin do seu país. Além
de ameaçar também os que o auxiliaram, com destaque para Rostropovich, a
expulsão foi um sinal para todos os intelectuais e criadores culturais
soviéticos, o aviso implacável de que na era Brejnev os tempos haviam mudado –
para pior. Três dias depois da partida de Soljenítsin, o artista plástico Oskar
Rabin, conhecido como «Soljenítsin da pintura», disse: «agora que têm as mãos
livres, vão virá-las contra nós». O filho de Rabin seria chamado à polícia, sob
a acusação de ter furtado um relógio numa igreja, e receberia várias chamadas
telefónicas anónimas, pedindo-lhe emprestado um exemplar de O Arquipélago Gulag (cf. David Caute, The Dancer Defects. The
struggle for cultural supremacy during the Cold War, 2003, p. 603). A repressão não começara
aí. Antes disso, além de ter sido impedido de dirigir a orquestra do Bolshoi e
de ver cancelados vários concertos na URSS, já Rostropovich vira revogada a
autorização para fazer uma digressão pela Finlândia e por França, o que lhe trouxe
graves prejuízos financeiros e não só, a ponto de o violoncelista ter dito: «a
partir de agora, a minha carreira pode ser dividida em duas partes; antes e depois de ter escrito a carta a favor de Soljenítsin». O nome do
escritor, antes proposto para o Prémio Lenine, era agora proscrito em toda a
União Soviética. Quando, em Outubro de 1971, por ocasião de um congresso do
Conselho Internacional da Música, Yehudi Menuhin se dirige à plateia e, entre
outros, evoca Soljenítsin como exemplo da profundidade da alma russa, fez-se um
silêncio glacial na sala. Este temor não desapareceu sequer com a perestroika. Num dos testemunhos
publicados por Svetlana Aleksievitch em O
Fim do Homem Soviético (trad. portuguesa, Porto Editora, 2015), uma jovem mulher,
ao chegar a casa dos pais trazendo consigo um exemplar de O Arquipélago Gulag, é severamente reprimida pela mãe: «Se não sais
imediatamente daqui com esse livro, ponho-te fora de casa!»
Acompanhando
a estratégia definida no Kremlin de Brejnev, no Portugal pós-revolucionário foram
publicadas obras que procuraram, sem sucesso, infirmar as denúncias feitas por
Soljenítsin e outros dissidentes, como o livro Assim não, Soljenitsine!, de Alain Bousquet (Portugália Editora, 1974), ou A
Fraude Sakarov-Soljenitsine, de Gus Hall (Editorial Estampa, 1975). José
Augusto Seabra, um dos responsáveis pela primeira tradução portuguesa de Arquipélago de Gulag (Bertrand, 1975), recordaria
anos depois as dificuldades que enfrentou para conseguir levar a cabo aquela empresa.
Com Francisco Ferreira («Chico da CUF»), Seabra havia já traduzido, em 1970 e
1971, outro livro de Soljenítsin, Agosto
de 1914. Ainda antes do 25 de Abril, quando se encontrava exilado em Paris,
começara a rever a tradução que Francisco Ferreira e a mulher deste, Maria
Llistó, haviam feito do primeiro volume de Arquipélago
de Gulag (o segundo volume seria publicado em 1977, com outros tradutores).
Feita a tradução, o volume é entregue ao editor, dizendo José Augusto Seabra
que aquele foi objecto de «pressões múltiplas, que visavam impedir a saída do
livro ou pelo menos retardá-la o mais possível, sobretudo depois da instauração
do “gonçalvismo”». A publicação de Arquipélago
de Gulag apenas foi conseguida porque, segundo o próprio, Seabra era na
altura deputado constituinte, tendo alertado os meios políticos e a opinião
pública para o acto de censura que estava prestes a ser cometido. O livro só
foi acabado de imprimir em Setembro de 1975, quase no epílogo do «gonçalvismo»
(cf. J. A. Seabra, «O caso Soljenitsine e a tradução portuguesa do “Arquipélago
de Gulag”», Nova Renascença, 45-27,
1992, pp. 347-348).
Em
lugar da difamação e do silenciamento, outros optaram por uma estratégia mais
subtil, a da busca de uma «equivalência de culpas» entre os Estados Unidos – ou
o Ocidente, em geral – e a União Soviética. Esse expediente, usado desde os
alvores da Guerra Fria, como nota Robert Conquest (The Dragons of Expectation, 2005, pp. 138ss), foi flagrantemente
mobilizado em torno de O Arquipélago
Gulag. Em 1975, as Edições Ática dão à estampa a tradução portuguesa do
livro Arquipélago de Sangue, com um
subtítulo esclarecedor: As atrocidades
cometidas pelo Ocidente em nome da Democracia e da Liberdade. Obra da autoria
de Noam Chomsky e de Edward Herman, o prefácio de Jean-Pierre Faye não
dissimulava sequer a tentativa de equiparação à de Soljenítsin: «Este livro é
de importância igual à do imenso Arquipélago
de Gulag»; «vasto é o Arquipélago de Gulag. Mais vasto ainda, disseminado
desta vez à escala planetária, é o Arquipélago do Bloodbath».
Será
precisamente no «Arquipélago de Sangue» que Aleksandr Soljenítsin fixa
residência, só regressando à sua pátria em 1994. Após uma breve passagem pela
Suíça, vai morar numa casa de campo em Cavendish, no Estado de Vermont, nos
Estados Unidos. Na Rússia pós-soviética alguns ainda falaram dele, em tom
depreciativo, como «o grande velho de Vermont», segundo um depoimento recolhido
por Svetlana Aleksievitch em O Fim do
Homem Soviético. Além da sua trajectória biográfica e da sua obra
literária, a imagem de Soljenítsin é a de um ancião de longas barbas, marcado
pela tragédia e pela dor, misto de sábio e de profeta, uma referência moral e
espiritual de projecção planetária, insusceptível de se deixar seduzir pelo
apelo do materialismo e, menos ainda, pelas ilusões do comunismo ateu ou do
consumismo ocidental. Cedo desiludiu quer os que procuraram apresentá-lo como
um agente literário dos norte-americanos e da CIA, quer os que tentaram figurá-lo
como um defensor das virtudes da economia de mercado e do liberalismo político.
O seu célebre discurso em Harvard sobre o declínio do Ocidente, de 1978, a par
dos escritos cáusticos que vai publicando em revistas como a Time ou a Foreign Affairs (e que se encontram parcialmente reunidos em O Erro do Ocidente, trad. portuguesa,
Publicações Europa-América, 1981), não deixam margem para dúvidas. Do mesmo
passo que diz que «do comunismo nada se pode esperar, nenhum compromisso é
possível com a doutrina comunista», observa, cortante e ácido: «não posso ter
na conta das virtudes da democracia a sua impotência perante os pequenos grupos
de terroristas, ou o aumento do banditismo, ou os lucros desenfreados que os capitalistas
acumulam sem se preocuparem, minimamente, com a saúde moral da população».
Critica historiadores como Richard Pipes por nas suas obras não darem o devido
relevo às perseguições religiosas e ao ateísmo enquanto elementos essenciais
dos regimes comunistas. Mas, acima de tudo, questiona a cegueira e a cobardia
do Ocidente ao ter pactuado com Estaline e ao manter uma atitude passiva, de
ilusória détente, em face do
expansionismo soviético que se manifestava por toda a parte: na ocupação de
Berlim Leste, na repressão dos levantamentos de Budapeste e de Praga, na
emergência da Coreia do Norte, nos regimes ditatoriais da África austral, na invasão
do Afeganistão. «Se um dia conquistarmos a liberdade, devê-la-emos
exclusivamente a nós mesmos. Se o século XX comportar alguma lição para a
humanidade, nós tê-la-emos dado ao
Ocidente, e não o Ocidente a nós: o excesso de um bem-estar perfeito atrofiou
nele a vontade e a razão», escreve em O
Carvalho e o Bezerro, uma observação não inteiramente justa, sobretudo se
tivermos em conta que passou duas décadas em segurança e liberdade na sua casa
de Vermont.
Regressado
à Rússia em 1994, após vinte anos de exílio, manteve o estilo abrasivo e
impetuoso das suas intervenções e manifestou um apreço nostálgico pela grandeza
pretérita da Mãe-Rússia que lhe valeu diversas críticas. Na Ucrânia, passou a
ser odiado por muitos, já que lamentou, de certa maneira, a perda daquele
território e da Bielorrússia. No Cazaquistão chegaram a existir movimentações
para que uma fatwa fosse lançada
contra ele. E a sua apologia de um «Estado forte» fê-lo simpatizar com Putin,
de quem aceitou em 2007 o Prémio do Estado. Trabalhador incansável, morreria de
insuficiência cardíaca em 3 de Agosto de 2008, tendo passado a manhã desse dia
sentado à secretária, a escrever. Conhecem-se-lhe trabalhos literários desde os
dez anos de idade, histórias de piratas e de ficção científica. Aleksandr
Soljenítsin assumia a escrita como uma vocação do destino, que as agruras da sua
vida converteram em missão patriótica e imperativo moral, quase religioso.
Quando morreu, foi sepultado no velho Mosteiro de Donskoi, em Moscovo, sendo as
referências à religião e a Deus uma constante das suas obras. Atribuiu o facto
de se ter curado de um cancro a «um milagre de Deus» e, como referiu em O Carvalho e o Bezerro, recusou
firmemente a sugestão feita por um colaborador de Khruschev para que do texto
de Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch fosse
suprimida uma passagem com uma forte carga religiosa. Em O Carvalho e o Bezerro relata igualmente as horas de maior
angústia, quando se refugiou na fé perante os que o ameaçavam: «Como é gostoso
aninhar-nos no adro de Deus quando nos sentimos fracos e tudo vai mal! Quebrar
alguns ramos no tenro bosque de bétulas para enfeitar com eles a minha querida dacha de madeira. Que acontecerá daqui a
alguns dias – a prisão ou o alegre trabalho do meu romance. Só Deus sabe. Eu
rezo», escreveu pouco depois de O
Pavilhão dos Cancerosos e de O
Primeiro Círculo terem sido publicados no Ocidente («Abrira-se a brecha na
Cortina de Ferro!», exclamou o escritor).
Nos
últimos tempos de vida, estava a trabalhar intensamente numa nova edição das
suas obras escolhidas, em trinta volumes, destinada a substituir uma anterior
edição, em vinte volumes, lançada no exílio, em 1978. À data da sua morte
haviam já sido publicados onze volumes da reedição moscovita dos seus
trabalhos, numa época em que o interesse pelo escritor tivera um súbito
recrudescimento, em larga medida graças ao labor de duas das suas colaboradoras
de longa data, cujos nomes haviam sido cautelosamente mantidos na penumbra. Uma
delas, Nadezhda Levitskaya, iniciou a organização de uma bibliografia activa e
passiva do escritor, que, contemplando apenas os textos em língua russa, tem
mais de 8.000 entradas, o que é um sinal ilustrativo da atenção que Soljenítsin
desperta no seu país. Outra das suas colaboradoras, Mira Petrova, dedicou-se ao
insano trabalho de produzir uma edição crítica de O Primeiro Círculo, com centenas de anotações. A par disso, a
escritora Lyudmila Saraskina lançou em 2008 uma extensa biografia de
Soljenítsin; traduzida para francês em 2010, pela Fayard, é considerada uma
obra inultrapassável, dado o acesso privilegiado que a autora teve à família e
aos arquivos do biografado (cf. Michael Nicholson, «Solzhentsyn reclaimed», TLS, de 28/11/2008).
Vida e destino
Se
a denúncia dos campos do Gulag desferiu um golpe profundo na imagem da União
Soviética, contribuindo decisivamente para a derrocada a prazo do comunismo,
Aleksandr Soljenítsin não pode considerar-se um absoluto vencedor da História.
Tendo escrito uma obra monumental sobre o Gulag, onde se reúnem 227 testemunhos
cujas identidades só foram reveladas em 2007, e que na edição completa em russo
tem mais de 1.700 páginas, Soljenítsin viu-se obrigado, digamos assim, a um
duro confronto com uma contemporaneidade em que no Ocidente, mas também na sua
Rússia natal, os leitores, nomeadamente os estudantes, só se dispõem a ler uma
versão abreviada de O Arquipélago Gulag,
tal como explica a filha do escritor, Natália Soljenítsina, no prefácio à
edição portuguesa daquele livro. Resta saber como será tratada aquela que
Soljenítsin chamava «a principal obra da minha vida», o fresco histórico A Roda Vermelha, colossal empreendimento
de 6.600 páginas, concluído em 1990. Por outro lado – e mesmo que Soljenítsin
tenha dito que não quis, de modo algum, elaborar um requisitório com o seu O Arquipélago Gulag –, causar-lhe-ia
espanto, ou furiosa indignação, a persistência e até o emergir de uma corrente
revisionista na historiografia ocidental, protagonizada por autores como os
norte-americanos J. Arch Getty, que assinou, entre outros, Origins of the Great Purges (1985), o qual, em lugar de milhões,
fala apenas em «milhares» de detenções durante o estalinismo; ou Lester Thurston,
que em Life and Terror in Stalin’s Russia
(1996) sustenta que as teorias do totalitarismo são «irrelevantes» para
explicar as grandes purgas dos anos trinta e que estas purgas tiveram o efeito
virtuoso de promover a ascensão de elementos que mais tarde iriam desencadear a
perestroika (!). Conhecedor dos
meandros do sistema prisional, onde a todo o instante se viam as falhas de
carácter e as misérias da alma humana, a Soljenítsin decerto não
impressionariam as tentativas, feitas por guardas e por antigos responsáveis
pelos campos, para, na sequência da glasnost,
branquearem o seu passado, procurando obter, inclusivamente, testemunhos
abonatórios de ex-prisioneiros em que estes confirmassem que não haviam sofrido
maus-tratos às suas mãos, tal como refere Orlando Figes em Sussurros. A vida privada na Rússia no tempo de Estaline (trad.
portuguesa, Alêtheia, 2010, pp. 654ss). Mais problemática seria, na perspectiva
de Soljenítsin (que no pórtico de O Arquipélago
afirma «tudo se passou exactamente assim»), a ideia avançada por Figes, segundo
a qual nas décadas de 1970 e 1980 os sobreviventes dos campos se identificaram
de tal modo com a narrativa de O
Arquipélago Gulag, lida sob a forma de samizdat,
«que suspendiam as suas memórias pessoais». Era através da obra de Soljenítsin
e de outros livros que as vítimas da repressão conseguiam obter um quadro geral
de entendimento e compreensão do que lhes acontecera, o que frequentemente
fazia que substituíssem as suas recordações, confusas e fragmentárias, pelas
memórias claras e coerentes dos escritores. Daí que, em síntese – e ao
contrário de Anne Applebaum, por exemplo –, Orlando Figes conclua que «os
testemunhos orais são, de uma maneira geral, mais fiáveis do que as memórias
literárias, embora estas sejam normalmente considerados registos mais autênticos
do passado».
Há
quem considere, no entanto, que os testemunhos orais apresentam igualmente
problemas de fiabilidade, lembrando Adam Hochshild o estudo de Lawrence Langer
sobre as memórias dos sobreviventes do Holocausto, em que estes tendem a apresentar
versões das suas histórias de vida muito mais dramáticas do que aquelas que os
entrevistadores pretendem ouvir. Há pois, uma infinidade de questões que se
colocam à historiografia de acontecimentos como o Gulag ou o Holocausto, do
mesmo passo que até as libertações verificadas na época de Khruschev – e de que
Soljenítsin foi um dos beneficiários – são objecto de visões distintas, umas
mais complacentes para o sucessor de Estaline (como a de Stephen Cohen em Soviet Fates and Lost Alternatives,
2009), outras menos benévolas (como a de Miriam Dobson em Khrushcev’s Cold Summer. Gulag returnees, crime, and the fate of reform after
Stalin, 2011).
Como
seria de esperar, o Gulag e os crimes dos tempos soviéticos ainda são um
território de confronto e polémica, bastando lembrar que Vladimir Putin
solicitou ao Supremo Tribunal da Rússia que ilegalizasse a Associação Memorial
ou que em 2013 se abriu em Moscovo uma batalha campal entre os nostálgicos do
estalinismo e as organizações não-governamentais de defesa das vítimas, com os
primeiros a defenderem a reintrodução de estátuas ou placas comemorativas removidas
depois de 1989 (como a que se via na casa de Brejnev ou a estátua de
Dzerzhinsky na praça da Lubianka). Mesmo noutras paragens, como em Espanha, o
PSOE, que tanto militou pela Lei da Memória e pela denúncia dos crimes do franquismo,
rejeitou uma proposta feita no Congresso dos Deputados para que dos currículos
escolares constasse o ensino das grandes fomes desencadeadas por Estaline na
Ucrânia, nos alvores da década de 1930 (cf. El
País, 11/3/2010). Entre nós, o BE, o PCP, os «Verdes» e alguns deputados
socialistas votaram recentemente contra uma proposta, apresentada pelo PSD, de
condenação como «genocídio» de Holodomor, a Grande Fome que devastou a Ucrânia,
o Cazaquistão e outros países em 1932-1933, causando entre 7 a 8 milhões de
mortos. No hemiciclo, o deputado comunista António Filipe afirmou que «o PSD
apresenta um voto que procede à exumação do cadáver de uma campanha lançada há
vários anos pela extrema-direita ucraniana, assente numa grosseira violação da
verdade histórica». Citando José Pacheco Pereira no prefácio a O Livro Negro do Comunismo, «o PCP é um
exemplo vivo da duplicidade do comunismo face aos crimes do comunismo».
Porém,
mais do que essas controvérsias, o que teria naturalmente abalado Soljenítsin –
que de certo modo se arvora em porta-voz dos milhões de vítimas do Gulag,
proclamando-se «cronista do Arquipélago» – é a manutenção na Mordóvia, uma pequena
república da Federação russa notabilizada por ter oferecido o cargo de ministro
da Cultura ao actor francês Gérard Depardieu, de cerca de duas dezenas de
campos de trabalho da era estalinista; ou, noutro registo, a transformação, em
vários lugares da Rússia, desses campos de trabalho escravo em locais de
atracção turística. Trata-se, porventura, do sinal mais evidente de apropriação
da memória colectiva por uma lógica de mercado e lucro que o autor de O Arquipélago sempre verberou. Outros
escritores acompanham-no nessa crítica, podendo recordar-se a alusão irónica de
Svetlana Aleksievitch, no já citado O Fim
do Homem Soviético, ao facto de actualmente se poder visitar os campos
estalinistas em Solovka, em Magadan: «o anúncio promete que para mais completa
sensação fornecem um fato do campo e uma picareta. Mostram os barracões
restaurados. E no final organizam uma pescaria…». Na mesma linha, a escritora
Monika Zgustova publicou um texto indignado com o título «Pasa tus vacaciones
en el “gulag”!» (El País, 16/4/2010),
onde cita Soljenítsin e escreve que «o turismo organizado aos lugares do mal
trivializa o sofrimento humano e converte-o em espectáculo». No seu périplo
siberiano, outro escritor, Olivier Rolin, desloca-se a Kolymá, onde depara,
surpreendido, com «uma barraca Hot-Dog Pizza encimada por um hambúrguer de
plástico gigante» (Sibéria, trad.
portuguesa, Tinta-da-china, 2016, p. 99). A presença de restaurantes fast food em Magadan não significa
necessariamente uma derrota do projecto cívico e literário de Aleksandr
Soljenítsin, mas por certo teria perturbado um homem que sempre se caracterizou
pela frugalidade e pelo ascetismo. Lembre-se que, desde que foi libertado, o
autor de O Arquipélago cumpria todos
os anos um ritual de memória: no aniversário da data da sua prisão,
alimentava-se apenas da ração dos campos, 650 gramas de pão e dois ou três
cubos de açúcar dissolvidos em água quente.
Uma
obra inclassificável
O Arquipélago Gulag é
uma obra inclassificável. «Ensaio de investigação literária», assim lhe chama o
autor em subtítulo, para dizer, mais adiante, que se trata de «um estudo», não
de um «romance» como O Primeiro Círculo.
Misto de narrativa autobiográfica, obra literária e recolha de testemunhos, tem
pretensões de absoluta veracidade histórica, abrindo com as já citadas palavras:
«tudo se passou exactamente assim». Mesmo quem lhe aponta algumas imprecisões
factuais, como sucede com Anne Applebaum, mostra-se espantado por Soljenítsin,
com meios reduzidíssimos, ter conseguido produzir uma obra com uma imensidão de
referências e histórias que investigações subsequentes mostraram estar
absolutamente correctas. Mas tão ou mais espantosa do que a fidedignidade das
informações contidas em O Arquipélago
é a velocidade com que Soljenítsin o escreveu. O essencial da obra foi redigido
num lugar secreto, o Esconderijo, como lhe chamava, e cuja localização só seria
revelada em 1991. Trata-se de uma quinta nas proximidades de Tartu, na Estónia,
e Soljenítsin trabalhou aí dois invernos seguidos – em 1965-1966 e em 1966-1967
–, redigindo uma primeira versão do livro em apenas 146 dias. Depois, ainda
muito trabalho foi feito, sozinho ou com a ajuda de colaboradores, mas sempre
sob a ameaça de o manuscrito ser apreendido, os arquivos destruídos, o escritor
preso ou até morto antes de concluir a sua obra.
É
certo que, ao apreciá-la, alguns são ferozmente críticos, como é o caso de
Nabokov, para quem o livro não passava de «a kind of juicy journalese,
formless, wordy and repetitious», um juízo cuja severidade já foi atribuída ao
facto de Soljenítsin ter conquistado o Nobel, ao contrário do autor de Lolita (cf. Orlando Figes, Natasha’s Dance. A cultural history of
Russia, 2002, pp. 555-556).
Numa
entrevista concedida em 1966 a um jornal japonês, transcrita em O Carvalho e o Bezerro, Soljenítsin
disse: «a forma literária que mais me atrai é o romance polifónico». Num certo
sentido, é possível ler O Arquipélago
Gulag como um romance polifónico, ainda que o mesmo não se assuma, de modo
algum, como uma obra ficcional. Pelo contrário, e como já vimos, Soljenítsin
sustentará a absoluta veracidade de tudo quanto escreveu. Numa declaração de
Setembro de 1973, designa o seu trabalho, à maneira académica, como um «estudo
em vários tomos dos campos de concentração soviéticos durante o período
compreendido entre os anos de 1918 e 1956, que só contém factos autênticos».
Situa a motivação para o escrever no quadro de um imperativo de memória para
com as vítimas do Gulag, tal como dirá numa entrevista à Time em Janeiro de 1974: «cumpri o meu dever para com os que
pereceram» (em O Arquipélago fala de
um «dever perante os mortos»). Pouco depois, em Fevereiro desse mesmo ano de
1974, amplia a pretensão do seu livro, dizendo tratar-se «não de um panfleto,
mas uma chamada ao arrependimento». E acrescenta: «Nunca duvidei de que a
verdade voltaria ao meu povo. Creio no nosso arrependimento, na nossa
purificação espiritual, no renascimento nacional da Rússia». Também por essa
altura, dirigindo-se às autoridades soviéticas, proclama em tom desafiador:
«matem-me no mais breve prazo, porque escrevo a verdade sobre a história da
Rússia».
O
autor de O Arquipélago procurou
definir o que entende por «investigação literária», a caracterização que usa no
subtítulo do seu livro: «uma investigação literária é a utilização do material
factual, vivo (não transformado), para que dos factos isolados, dos fragmentos,
reunidos, no entanto, segundo as
capacidades literárias do autor, se extraia com toda a evidência uma ideia
geral, que de modo nenhum seja inferior a uma investigação científica». Porém,
na abertura do livro dirá: «Não tenho a pretensão de escrever a história do
Arquipélago». Na verdade, não o fez. O
Arquipélago Gulag não é um levantamento sistemático do historial do Gulag e
a organização interna do livro obedece a um modelo de «investigação literária» (ou
de «ensaio», como também Soljenítsin lhe chama) que confere ao seu autor uma
ampla liberdade criativa, mantendo-se, todavia, uma escrupulosa adesão aos
factos e à verdade que deles irradia. Além da arquitectura da obra e da
composição dos testemunhos polifónicos, ao narrador caberá a escolha das
palavras e o recorte das frases, a busca do estilo mais adequado a cada situação
descrita, a inserção do seu testemunho pessoal de ex-prisioneiro do Gulag e,
enfim, a opção por destacar aspectos que considera terem sido menosprezados,
nomeadamente as perseguições por motivos religiosos («os cristãos foram uma
multidão, levas e ossários, levas e ossários, quem contará esses milhões?») ou
o contraste absoluto entre o sistema penal czarista e os campos dos sovietes, a
par do esclarecimento de que a repressão não terminou com a morte de Estaline
nem começou com ele, datando dos primórdios da Revolução de Outubro e, muito em
particular, da acção de Lenine e de Trotsky.
Num
trecho de O Arquipélago Gulag,
Soljenítsin aconselha os seus companheiros de infortúnio, dizendo-lhes: «Possui
só aquilo que possas trazer sempre contigo. Conhece as línguas, conhece os
países, conhece os homens. Que o teu saco de viagem seja a tua memória.
Memoriza! Memoriza! Só essas sementes amargas terão talvez a possibilidade de
crescer».
Compreende-se
assim o motivo que o levava a encarar a publicação do seu livro como uma
necessidade vital, uma questão de vida ou de morte. Com O Arquipélago Gulag, Aleksandr Soljenístin lançou à
terra a semente amarga da memória dos campos soviéticos. Em homenagem às vítimas,
uma lição para toda a Humanidade.
António Araújo
(texto originalmente saído no jornal Público)
(texto originalmente saído no jornal Público)
Como foi possível tanta atrocidade entre humanos....Como foi possível tanta maldade e crueldade. Arrepiante só de pensar quanto mais de ler e ver...
ResponderEliminar.
Deixando cumprimentos
O mais preocupante, é pensar como é possível ainda haver tanta gente a apoiar este tipo de mentalidade..., agora disfarçada de democrata com a pele do marxismo cultural.
EliminarComunismo, o maior crime contra a Humanidade.
ResponderEliminarBrilhante!
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