A pianista portuguesa Maria João Pires
Foi durante o ano lectivo de 1952-53. Era eu estudante de
Filosofia no Instituto Filosófico Salesiano do Estoril quando se realizou uma
das várias festas anuais. Se bem me recordo, foi no dia 8 de Dezembro, por
ocasião da celebração da festa de Nossa Senhora da Conceição, Padroeira do
Reino de Portugal, desde que o Rei Dom João IV, em 1646, em plena Guerra da
Restauração, assim a jurou e proclamou, colocando-lhe sobre a cabeça a coroa
real portuguesa. Como sempre acontecia em efemérides desta natureza, o acontecimento,
albo signando lapillo, foi celebrado com pompa e circunstância, primeiro na
igreja, com missa cantada pelo orfeão, a quatro vozes, depois no refeitório,
com um banquete requintado e, por fim, no palco.
Deixando
subentendido, à imaginação do leitor, o que se passou na igreja e no
refeitório, vou narrar sucintamente o que se passou no palco.
Pelo
cair da tarde desse dia, realizou-se, no salão de actos do instituto e do
colégio, um solene sarau, o qual consistiu numa breve palestra sobre
Aquela que, sempre virgem, teve o altíssimo privilégio de ser concebida sem
mácula original e de ser Filha, Esposa e Mãe de Deus; num recital de
poesias de cariz religioso, respigadas nas obras de poetas renascentistas, tais
como Camões, os irmãos Diogo Bernardes e Frei Agostinho da Cruz, e em
colectâneas de poetas barrocos, tais como Sóror Violante do Céu e Jerónimo
Baía, e nas obras de dois poetas românticos: João de Deus e Antero de Quental;
na representação de um breve coro falado, de carácter sacramental, encomendado
a um padre vocacionado para coisas dessa natureza; na execução, pelo orfeão, de
alguns motetes a quatro vozes, compostos por Palestrina e por Tomás Luis de
Victoria; e na interpretação ao piano, por modestos amadores, de algumas peças
programáticas, alusivas ao evento.
Quando toda a audiência se preparava para sair da sala de
teatro, depois de uma justa ovação em homenagem à Imaculada Conceição da SS.
Virgem, Padroeira de Portugal, e a todos os protagonistas do sarau, eis que,
inesperadamente, surge de entre as cortinas, que começavam a descer, uma
senhora idosa, vestida e penteada à moda antiga, trazendo pela mão, para junto
do piano, uma menina de uns sete anos de idade, com um vestido cor de rosa e
com o cabelo a cair-lhe pelos ombros, em duas lindas tranças, se bem me recordo
do traje e do penteado.
Perante a mágica aparição, toda a assistência retoma os
seus assentos e espera pelo milagre. A menina, com uma serenidade e uma
desenvoltura fora do vulgar, senta-se ao piano e brinda os ouvintes com umas
breves e belas peças de Mozart e de Schumann, interpretadas com uma maestria
impressionante. Era a menina-prodígio Maria João Pires, que se havia estreado
com recitais de piano aos cinco anos de idade.
Dizer que Maria João Pires foi a vedeta do memorável sarau
em homenagem a Nossa Senhora da Conceição é desnecessário.
A propósito da evocação da pianista portuguesa mais célebre
do século XX, parece-me oportuno traduzir do Inglês para o Português uma
entrada do meu Diário em que memorializo pequenos episódios referentes aos meus
dois netos: Camille e Calvin.
“Manchester, 6 de Outubro de 2009
CAMILLE E O NOCTURNO N.º 1 DE CHOPIN
Quando a minha neta Camille tinha cinco anos de idade,
decidi levar comigo a minha computadora, por ocasião de uma das minhas visitas
semanais a Boston, num domingo. Enquanto Calvin estava a dormir a sesta,
ocorreu-me ir ao You Tube e procurar a celebrada pianista portuguesa Maria João
Pires para a ver tocar Chopin. E lá estava ela a tocar o Nocturno n.º 1.
Era durante a noite, em casa dela: estava vestida de camisa
de dormir branca; e estava a tocar à luz das velas. Depois de haver tocado os
primeiros compassos (toda a sessão dura 5 minutos e 43 segundos), vemos a sua
filha na cama, vestida também de camisa de dormir branca, a despertar em câmara
lenta, a dirigir-se descalça para a sala e começar a dançar em passos de balé,
ao som noturno, vaporoso e acariciante das notas do piano. Ao dar-se conta da
presença da filha, a mãe volta-se para ela e sorri de uma forma aprovativa, a
rescender a amor e a ternura maternal. E lá estamos nós a ouvir a música e a
observar alternadamente a mãe a tocar e a filha a rodopiar e dançar embebecida
pela sala, irradiando doçura e alegria. Por um momento, enquanto a música continua,
dá-se uma mudança de cena: a mãe e a filha, vestidas de roupa normal,
encontram-se no campo, em pleno dia, a colher flores silvestres e a sorrir
felizes, em companhia de um lindo cachorrinho e de uma galinha branca. Em menos
de um minuto, vemo-las, a ambas, novamente dentro da sala, iluminada com velas,
fazendo o que haviam feito antes de as vermos no campo. Depois, cerca de um
minuto antes do final, observamos a pequenina a abrandar o passo, a bocejar
ligeiramente com o sono, a voltar para a cama, a cerrar os olhos sonolentos e
serenos, a adormecer em paz etérea e a sonhar com anjos. Maria João Pires toca
as últimas notas, apaga as velas e o espectador presume que a prodigiosa
pianista e mãe doce e carinhosa vai disfrutar de um bem merecido repouso noturno.
Cem por cento ciente de que a minha princesinha Camille,
que há mais de um ano vinha a estudar balé, na escola da Companhia de Boston
Ballet, adoraria ver o vídeo, pedi-lhe que pegasse num banco alto e que se
sentasse ao meu lado, no balcão que separa a cozinha da sala de estar. Ela
aceitou a minha sugestão e eu surpreendi-a com a cena que acabo de descrever.
Quando o vídeo chega ao fim, a Camille pede-me que espere
um minuto. Vai ao seu quarto e, passados uns instantes, aí volta ela, vestida
de camisa de dormir branca e descalça, com o seu longo cabelo castanho-claro e
cacheado a cair-lhe pelas espaldas. Pede-me que torne a tocar o vídeo e começa
a imitar a filha de Maria João Pires. Quando o vídeo chega ao fim, Camille,
quase em indescritível estado de êxtase, pede-me que o repita mais uma vez e eu
faço-lhe a vontade com a maior satisfação. E ela pede-me que o repita vezes sem
conta, imitando cada movimento da pequena bailarina, incluindo o fechar os
olhos sonolentos, deitar-se no sofá, cobrir-se com um cobertor, levantar-se em
câmara lenta, dançar em rodopio, em estado de levitação, voltar a deitar-se no
sofá e voltar a adormecer, em etérea e santa paz. Mas chegou o momento em que
Camille, provavelmente um pouco mais familiarizada com o balé que a adorável e
encantadora filha de Maria João Pires, me disse que ela podia ir para além de
um mero rodopio e dançar em passos de balé. E, dizendo isto, Camille deu uma
breve demonstração.
Durante quanto tempo rodopiou e dançou, em passos de balé,
ao som do Nocturno n.º 1 de Chopin, tocado magistralmente por Maria João Pires?
Eu apenas sei dizer que foi durante longo tempo, e sei também que esta foi uma
das muitas ocasiões em que a minha pequena bailarina Camille tomou um autêntico
banho de imersão na arte divina da música clássica, superiormente interpretada
pela minha compatriota Maria João Pires e miraculosamente criada por Frederico
Chopin, compatriota dos avós maternos e da mãe de Camille, todos, como Chopin,
nascidos em Varsóvia.
António Cirurgião
...curiosamente hoje de manhã (porque falaram em incendios em Castelo Branco) pensei na Artista Maria João Pires e no quanto eu anseio que se volte a realizar estas noites de sonho :-)
ResponderEliminarhttps://gatoaurelio.blogspot.com/2019/08/beethoven-e-o-silencio-interior.html