A História está nos detalhes.
Apercebemo-nos da nossa condição periférica, paroquial, e compreendemos melhor
a eterna questão do «atraso português» quando tomamos consciência de termos
estado à margem e bem longe de movimentos culturais como a moda do «japonismo»
do século XIX, de que falei a propósito de A
Grande Onda, de Hokusai. Em Espanha ainda chegaram vestígios dessa moda que
inebriou o coração da Europa – e dos Estados Unidos. Houve japonismo na Rússia,
na Dinamarca, obviamente em França e em Itália, no Reino Unido. Por cá também
chegaram ecos, mas tímidos e esparsos. O certo é que ninguém estudou Hokusai ou
Hiroshige, ninguém se interessou a fundo pelas gravuras do «mundo flutuante»,
algumas das quais exibidas recentemente em Lisboa devido a um colecionador belga
radicado no nosso país.
Com os rinocerontes sucede o mesmo. É
sintomático que o primeiro rinoceronte a chegar à Europa em muitos séculos
tenha entrado por Lisboa, em 1515. Mas quem lhe fez o desenho (ou deu notícia
para o centro da Europa) foi Valentim Fernandes, que apesar do nome era alemão,
da Monróvia. E que o primeiro retrato do animal, muito tosco, fosse para um
poema de um italiano, cujo original está em Sevilha, sendo provavelmente da
autoria de um estrangeiro, que viveria em Itália e nunca o viu ao vivo. É
também sintomático que tenha sido um alemão, Albrecht Dürer, a imortalizá-lo
numa célebre gravura. Outro rinoceronte ilustra a evolução do tempo: aportou a
Lisboa mas foi levado para Madrid por Filipe II, numa altura em que vivíamos
sob domínio de Espanha. E é igualmente ilustrativo que outro rinoceronte que fez
furor na Europa, Clara (1738-1758), já não tenha sido sequer trazido pelos portugueses, num
revelador indício do progressivo domínio holandês das partes do Índico.
Clara chegou a Roterdão em 22 de Julho
de 1741, trazida de Calcutá pelo capitão Douwemout Van der Meer, que com ela
fez um grand tour pela Europa
civilizada. É elucidativo vermos o percurso de Clara, que andou por Inglaterra,
França, Itália e, obviamente, não passou por Portugal, geográfica e
culturalmente afastado do centro do mundo. Ao que parece, chegou a manifestar-se
algum interesse numa visita de Clara a Lisboa, mas Van der Meer hesitou e
acabou por rejeitar a proposta, temendo a viagem pelos incertos mares do golfo
da Biscaia (há um livro encantador sobre as suas andanças, de Glynis Ridley: Clara’s Grand Tour. Travels with a rhinoceros in eighteenth-century Europe. Há também livros para crianças sobre
as viagens de Clara, este, este e este, entre outros, mas adiante.)
Sobre a bicha correram mil e um
rumores, muitos dos quais propalados pelo seu dono e empresário numa hábil
estratégia de marketing. Antes de chegar a Veneza, por exemplo, dizia-se que
Clara e Van der Meer tinham morrido afogados, ou que a rinoceronte tinha morto
umas cinco ou seis pessoas em Lyon. Assim se adensava o suspense da chegada. Clara
navegou de Marselha para Nápoles em Novembro de 1749, e logo que ali aportou
fizeram-lhe o retrato a óleo junto ao Castelnuovo, tela agora conservada na
colecção do duque de Wellington, mas não consegui encontrá-la (deve estar aqui,
calculo). Passou três meses em Itália, causou sensação em Florença e Bolonha e
no início de Janeiro de 1751 chegava a Veneza, para o Carnaval, que então se
celebrava por vários meses.
Em Veneza, Clara foi amplamente retratada,
havendo inúmeros desenhos dela. No Rijskmuseum, Amesterdão, existe o caderno de desenhos de um autor veneziano anónimo com vários esboços de troços da bicha (disponível no Rhino Resource Center, aqui).
Mas o mais relevante são os quadros de pai e filho, Pietro e Alessandro Longhi. Quis falar deles pois um bom amigo e assíduo contribuidor do Malomil, José Liberato, que há tempos viu uma grandiosa exposição sobre Veneza (esta), chamou-me a atenção para um dos quadros de Longhi, numa mensagem em que me escrevia o seguinte: «O quadro tem uma coisa curiosa. O cartaz afixado do lado direito destina-se a identificar o autor e o mecenas que encomendou o quadro, Giovanni Grimani, que tinha um zoo privado com animais exóticos. É quem está na assistência acompanhado pela mulher Caterina Contarini, que morreria pouco depois, de parto.» Na obra de Longhi, encontrei um quadro que pode ser (mas é muito improvável!) um outro retrato de Giovanni e Caterina, de quem pouco ou nada consegui saber na Internet, malvada. Como disse, e atentas as respectivas datas, é muito improvável que os retratados por Longhi nesta tela sejam Giovanni e Caterina, mas Longhi, é preciso dizê-lo, não só pintou outros quadros com a rinoceronte Clara como também se ocupou de elefantes.
Caderno de desenhos, autor anónimo, Veneza, 1751
Rijksmuseum, Amesterdão
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Mas o mais relevante são os quadros de pai e filho, Pietro e Alessandro Longhi. Quis falar deles pois um bom amigo e assíduo contribuidor do Malomil, José Liberato, que há tempos viu uma grandiosa exposição sobre Veneza (esta), chamou-me a atenção para um dos quadros de Longhi, numa mensagem em que me escrevia o seguinte: «O quadro tem uma coisa curiosa. O cartaz afixado do lado direito destina-se a identificar o autor e o mecenas que encomendou o quadro, Giovanni Grimani, que tinha um zoo privado com animais exóticos. É quem está na assistência acompanhado pela mulher Caterina Contarini, que morreria pouco depois, de parto.» Na obra de Longhi, encontrei um quadro que pode ser (mas é muito improvável!) um outro retrato de Giovanni e Caterina, de quem pouco ou nada consegui saber na Internet, malvada. Como disse, e atentas as respectivas datas, é muito improvável que os retratados por Longhi nesta tela sejam Giovanni e Caterina, mas Longhi, é preciso dizê-lo, não só pintou outros quadros com a rinoceronte Clara como também se ocupou de elefantes.
Pietro Longhi, Lo studio del pittore, 1741-1746
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Pintor veneziano (atribuído a Pietro Longhi), O Rinoceronte, 1751
Colecção Banca Cattolica del Veneto, Vicenza
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Pietro Longhi, O Elefante, com a inscrição: «Retrato verdadeiro do Elefante trazido a Veneza no ano de 1774, pintado à mão por Pietro Longhi»
Colecção Banca Intesa, Vicenza |
Na realidade, Pietro Longhi
(1701-1785) pintou não um mas dois quadros, muito parecidos à superfície. Um
deles está em Veneza, no Ca’Rezzonico e chama-se O Rinoceronte em Veneza (1751) (ver uma descrição da Sala Longhi,
aqui).
O outro está na National Gallery em Londres e, sendo também de 1751, tem o
título Exibição de um Rinoceronte em
Veneza e é descrito aqui.
Em ambos Clara é exibida sem o corno, que perdera no decurso das suas caminhadas
comerciais pela Europa culta. E, como refere Glynis Ridley no
livro atrás citado, julgava-se que a figura masculina na tela, de tricórnio e
com o corno de Clara na mão, seria o próprio Van der Meer mas tudo indicia que
fosse o jovem tratador que o capitão holandês contratara para lhe cuidar do
animal.
Pietro Longhi, O Rinoceronte em Veneza, 1751
Ca'Rezzonico, Veneza
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No quadro do Ca’Rezzonico (que chamaremos
quadro 1) há uma inscrição afixada do lado direito que diz: «Retrato verdadeiro
do rinoceronte trazido a Veneza em 1751 feito à mão por Pietro Longhi em
comissão do nobre Giovanni Grimani dei Servi: patrício veneziano». O patrono e a sua mulher aparecem em lugar de destaque. Por outro lado,
nesse quadro só há duas figuras com máscara, enquanto no quadro da National
Gallery (quadro 2) todas as figuras masculinas têm máscara, à excepção do
assistente de Van der Meer. Tudo sugere que o quadro da National Gallery tenha
sido pintado depois do óleo do Ca’Rezzonico.
Pietro Longhi, Exibição de um Rinoceronte em Veneza, 1751
National Gallery, Londres
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descubra as diferenças
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Se o patrono do quadro de
Londres quis manter-se no anonimato, sabemos que foi um nobre veneziano,
Girolamo Mocenigo, sendo esta uma tela muito mais elusiva e fugidia, com as
personagens cobertas com máscaras e Clara assumindo totalmente o papel central,
ao contrário do que sucedia no quadro 1, do Ca’Rezzonico, em que o rinoceronte
parece ser não mais do que um pretexto para um retrato de casal. No quadro de
Londres, as três personagens da primeira fila usam a bauta, a máscara branca de Carnaval que podia ser usada por homens
ou mulheres. Na segunda fila, uma das mulheres enverga o domino (a outra senhora, mais idosa, tem-no na mão), uma máscara
que tapava a cara e que se prende com um botão colocado entre os dentes, o que
significa que, enquanto a usa, o seu portador não pode falar. Como Clara, a
rinoceronte, despojada do dom da fala. Ambos os quadros, todavia, não são
silenciosos ou mudos, já que os dois, em especial no quadro 2, o tratador de
Clara fala para o público, para os espectadores que somos nós, e a quem se
dirige de boca aberta e, sobretudo, com o indicador a apontar para o animal em
exibição. Na verdade, todos se exibem neste quadro carregado de ironia, a
começar pela decadente nobreza veneziana que Longhi retratou em inúmeras obras.
Também seu filho, Alessandro Longhi (1733-1813), iria retratar Clara nesse mesmo ano. Il Gran Rinoceronte, assim se chama o seu desenho, no qual a inspiração do pai Pietro é por demais evidente. A Alessandro é também atribuída uma outra tela, cuja imagem só foi possível no Rhino Resource Center, aqui.
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