sábado, 19 de janeiro de 2019

Elefantes no equinócio.

 
 

Mosteiro dos Jerónimos

 
Muito breve, brevemente, apenas um apontamento sobre os Jerónimos e os seus elefantes, que, numa excelente monografia dedicada ao Mosteiro, Paulo Pereira garantem terem sido inspirados no Templo Malatestiano, a catedral de Rimini (obrigado também, Nela San e José Liberato). Melhor dizendo, o que afirma Pereira é que na capela-mor dos Jerónimos:
 
os túmulos monumentais de D. Manuel e de D. Maria (do lado do Evangelho) e de D. João III e de D. Catarina (do lado da Epístola), fruto de uma composição classicizante, de pirâmide assente em dois mármore, [é] claramente inspirada nos mausoléus do Templo Malatestiano de Rimini
 (Paulo Pereira, Mosteiro dos Jerónimos, Scala Publishers, 2007, p. 88).
   
Templo Malatestiano



O Templo Maltestiano é uma obra arquitectónica de tal forma densa e complexa, com tantos laivos de paganismo e mística, que seria necessária uma vida inteira para a (tentar) compreender. Digamos apenas que foi construído às ordens de Sigismondo Pandolfo Malatesta (1417-1468), senhor que, além de não ser grande devoto cristão, foi sendo em vida um audaz condottiere, conhecido por «lobo de Rimini».
 
Piero della Francesca, retrato de Sigismondo Pandolfo Malatesta
  

Piero della Francesca, Sigismondo Malatesta a orar a São Sigismundo

      
Desenhado em 1450 pelo arquitecto Leon Battista Alberti, o Tempio é uma homenagem de Sigismondo à sua amante e terceira esposa, Isolla degli Atti. Malatesta quis que ambos fossem aí enterrados – e daí a tumulária elefantina. Abstemo-nos de falar de outros elefantes, sobretudo do que está na Biblioteca Malatestiana e não tem a ver com Sigismondo e, por isso, apenas o mostramos com a sua inscrição latina; Elephas indis culices non timet, que era o mote e refrão de Domenico Malatesta Novello (1417-1468), senhor de Cesena, que é onde está a Biblioteca (já agora, aqui). Já agora, o brasão Malatesta, e ficamos por aqui pois sabemos que estas coisas interessam a quem escreve, não a quem lê. Perdão, pois. Mas, já agora, quem quiser mergulhar na heráldica de Sigismondo, prenhe de elefantes, é aqui.
 
 



Armas dos Malatesta


 
Escultura italiana ou alemã em bronze, século XVI, aqui
 




Templo Malatestiano, Rimini
 

Biblioteca Malatestiana, Cesena

 
 
 
Sobra-nos tão-só a dúvida: existindo em vida de D. Manuel uma presença tão frequente de elefantes, terá mesmo sentido a necessidade de ir buscar inspiração à longínqua Rimini? É que, segundo a hipótese de Jorge Segurado, o autor dos sarcófagos dos Jerónimos terá sido Francisco de Holanda, que em matéria de elefantes teve inspiração directa de Hanno, ofertado por D. Manuel I ao Papa Leão, ou seja, não careceria, julgo eu, de se ir basear nos proboscídeos de Rimini, opina o presente ignaro. Matéria que merece estudo mas com a qual não enfadaremos mais a paciência dos leitores.

   
   A eles gostaria, isso sim, de convidar a uma visita aos Jerónimos, em datas precisas. Como diz Paulo Pereira, em períodos especiais do ano o Sol entra de uma forma muito especial adentro da capela-mor dos Jerónimos, lançando seus fulgentes raios sobre os túmulos de elefantes adornados. É verdade. Há ali um alinhamento equinocial que, durante vinte dias, antes do equinócio da Primavera, bem como entre 28 de Outubro e o trigésimo dia após o equinócio de Outono, produz estranhas luzes, que Paulo Pereira diz terem a ver com uma «mística solar» que resulta da peculiar orientação do dormitório, rosácea e igreja. E, afirma Pereira, tudo sugere que não foi fruto do acaso nem gesto involuntário: quem fez as coisas assim sabia o que o que fazia.


    Damos a palavra a outro erudito que estudou e conheceu o Mosteiro como poucos. Escreve o Padre Felicidade Alves na monografia que dedicou ao mosteiro:


 
          Mencionam os cronistas a claridade e luz que ilumina este templo em todo o tempo do ano. Mas comprazem-se, particularmente, no que acontece em duas épocas do ano, ou seja de 13 de Fevereiro até 20 dias antes do equinócio da Primavera, durante quase um mês; e de 28 de Outubro até ao 30º dia após o equinócio de Outono, durante mais de um mês. Então, desde a hora de véspera até ao pôr-do-sol, “seus raios de ouro, entrando pela parte ocidental, na distância de 450 passos, por linha direita de todo o côncavo do dormitório, coro e igreja, até ao sacrário, fazem mais vistos todo o pavimento, do que se um ourives o dourasse a fogo. Parece pede licença o Sol ao seu Criador para ausentar-se, nas breves horas nocturnas, de tão insigne convento, prometendo que que logo ao nascer o tornará a ilustrar…”  (Frei Diogo, p. 29; cf. Frei Diogo, p. 243; Frei Jacinto § 76; Frei M. B. castro, fl. 657). É curioso que eu próprio tantas vezes me maravilhei com a luz do Sol que, nas referidas épocas, entrando pela rosácea do coro-alto, ia incendiar a capela-mor e o sacrário com uma luz inolvidável…
(José da Felicidade Alves, O Mosteiro dos Jerónimos, vol. 1, Lisboa, Livros Horizonte, 1989)
 
Eis, portanto, uma boa razão para tentar iludir as intermináveis filas do turistame e, em chegando Fevereiro, rumar aos Jerónimos. Uma vez lá, admirai os elefantes, que aos ombros carregam cadáveres de reis e rainhas, por entre raios de oiro regurgitados pelo Sol, em solene espasmo equinocial.

  

 

 

2 comentários:

  1. Agradeço por ter mencionado o meu nome num post que, como sempre, mostra estudos exaustivos.
    Acho tratar-se d'um previlégio puder admirar os elefantes no equinocio, mas -sobretudo- sem turistame.
    PS Palavra "turistame" tem muita originalidade, trata-se duma libertade creativa do Malomil?

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  2. Obrigado, uma vez mais. Não, é uma palavra de gíria, em português…

    Muito cordialmente

    António Araújo

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