1.
INTROITO AO MEU APELIDO DE CIRURGIÃO
Através dos anos, ao tomarem conhecimento
do meu apelido – Cirurgião –, muitos dos meus interlocutores, nos Estados
Unidos, perguntam-me pelo significado dele. Ao responder-lhes que o apelido significa
surgeon em Inglês, a reacção dos meus
amigos americanos judeus é aventar que, muito provavelmente, eu sou de
ascendência judaica. E é então que eu, a fim de reforçar a opinião deles,
resolvo fazer um breve excurso por um dos capítulos mais significativos e
dramáticos da história de Portugal, dizendo-lhes, entre outras coisas, que,
proibidos de possuir bens imóveis, os judeus se defendiam economicamente por
meio do recurso às profissões liberais, tais como as de banqueiros,
comerciantes e médicos. Que a percentagem dos judeus que praticavam medicina
era de tal maneira avassaladora, em comparação com os outros grupos étnicos,
que, mesmo depois das perseguições e da expulsão de Portugal em 1497 e do
massacre em 1506, os reis portugueses faziam questão de não expulsarem os
médicos da família real e da alta nobreza.
Como
terá, portanto, aparecido a família Cirurgião em Portugal? Porque é que eu não
procurava reconstituir a minha árvore genealógica? – perguntavam-me com
frequência os meus amigos portugueses. E eu respondia perguntando-lhes, em tom
mais jocoso que sério, se por acaso não conheciam a tão decrépita e tão degenerada
árvore genealógica do Conde de Abranhos, o protagonista do romance do mesmo
nome de Eça de Queirós, ou a igualmente tão decrépita e tão degenerada árvore
genealógica do protagonista, Gonçalo Mendes Ramires, de outro romance do mesmo
autor: A Ilustre Casa de Ramires.
Mas uma
vez, por ocasião da minha última visita a Lamas de Podence, freguesia do
concelho de Macedo de Cavaleiros, em Trás-os-Montes, terra natal de meu pai,
fui com um primo meu ao Registo Civil de Bragança, capital do distrito, e aí
foi-me dada cópia da certidão de nascimento do meu pai – Francisco Joaquim
Cirurgião –, constando dessa mesma certidão o nome da mãe de meu pai (e,
portanto, minha avó paterna): Maria Augusta Cirurgião.
Não se
encontrando nesse Registo Civil de Bragança certidões de nascimento anteriores
a essa data, e tendo-me sido dito que elas poderiam encontrar-se no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, aí procurei eu, nesse mesmo Verão,
possíveis documentos referentes à família Cirurgião, mas sem qualquer êxito.
Para começar, verifiquei que o acervo do registo referente à freguesia de Lamas
de Podence não se encontrava lá, ao contrário do que acontecia com o acervo
referente a outras freguesias do Concelho de Macedo de Cavaleiros. Perante
essas discrepâncias ilógicas, perguntei aos funcionários respectivos pela
possível razão para esse facto. Responderam-me que o mais natural é que esse
acervo se tivesse extraviado ou desaparecido por incêndio ou por negligência
humana ou por outros fenómenos, causados pela natureza ou pelo homem.
Acontece,
porém, que, há bastantes anos, ao ler a biografia do Vice-Rei da Índia Dom João
de Castro, de Jacinto Freire de Andrada, deparei com um senhor cujo apelido é
Cirurgião. Para que conste, vou transcrever fielmente essa passagem:
Os grandes feitos que os Portugueses obraram
neste dia, o
Oriente os diga; eu cuido que da ilustre Diu
lhes será cada
pedra um epitáfio mudo. Porém, dos cinco cavaleiros que
havemos referido, não deixaremos com ingrata pena os nomes
em
silêncio. Estes foram Sebastião de Sá, António Pessanha,
Bento Barbosa, Bertolameu Correia,
mestre João Cirurgião
de
nome. [...] Dos cinco cavaleiros que defenderam o baluarte,
morreu só mestre João, despedaçado de muitas feridas, que
deixou bem vingadas, sem querer deixar a briga nem obedecer
aos amigos, que o retiraram como pessoa tão importante
pela arte, pelo valor não menos (Vida
de Dom João de Castro –
Quarto Vizo-Rei da Índia. Escrita por Jacinto Freire de
Andrada.
Em Lisboa: Agência-Geral do Ultramar. Ano 1968, pp. 165-166).
Para que
não restem dúvidas sobre o facto de que “mestre João Cirurgião” era de facto
Cirurgião “de nome”, no Índice Onomástico da mesma obra lá está “Cirurgião
(João)”, de igual modo e na mesma página em que estão, por exemplo, “Coelho
(João)” e “Correia (Diogo)”.
E aqui está a única
pessoa portuguesa que, até à data, me foi dado conhecer com o apelido de
Cirurgião, para além da minha família, até à minha avó paterna: Maria Augusta
Cirurgião.
2. À MARGEM RAZÃO DE SER DO MEU APELIDO
CIRURGIÃO
As pessoas de algum saber
histórico e visivelmente interessadas pela patronímia com frequência se
interrogam (e me interrogam) sobre a razão de ser do meu apelido tão raro e tão
peculiar: “tão raro e tão peculiar”, que ele é exclusivo, em Portugal, da minha
família imediata, até à minha avó paterna, tal como fica dito acima.
Algumas dessas pessoas, ao tomarem conhecimento que meu pai era oriundo
de Macedo de Cavaleiros, perto, portanto, de Mirandela, terra de judeus e de
marranos e das alheiras (as quais têm de tudo um pouco, menos carne de porco, ao
contrário de todas as outras espécies de fumeiro), opinam logo que eu devo ser
de ascendência judaica, com o que eu não tenho qualquer dificuldade em concordar.
Porém, outras pessoas há que opinam o contrário, argumentando com o celebrado
filólogo, historiador de literatura peninsular e de ideias estéticas, o
eruditíssimo, espanholíssimo, facciosíssimo, super-patriota e super-chauvista
Don Marcelino Menéndez y Pelayo, o qual afirmava a pés juntos, em prosa
pomposa, que os autênticos ibéricos nada deviam nem aos judeus nem aos mouros.
Ao que eu respondo, apoiado no insuspeito e grande pensador, filólogo e crítico
literário Américo Castro (por sinal nascido no Brasil de pais espanhóis), que
nenhum ibérico pode blasonar-se de não carregar consigo uma costela judaica e
uma costela mourisca, dados os longos séculos de coexistência, já pacífica já
beligerante, de miscigenações, assimilações e caldeamentos dos diversos povos
que se fixaram na Península Ibérica, hoje constituída por duas nações, como
todos sabem: Espanha e Portugal.
3.
O TELEGRAMA DO CIRURGIÃO
Vivia eu nesse tempo em
Lisboa. Já aparentava a idade de quem podia estar formado em medicina, quando
uma tarde me dirigi aos correios, em Campo de Ourique, para enviar um telegrama
a minha mãe, por ocasião do aniversário dela.
Ditado o texto, a senhora
do guiché perguntou-me pelo nome com que eu desejava assinar o telegrama.
- Cirurgião - respondi eu, para economizar dinheiro.
- Ó senhor doutor, com tantos cirurgiões existentes em
Lisboa, como é que esta senhora vai saber de que cirurgião se trata? O nome,
por favor.
- Ponha Cirurgião - repeti eu novamente.
- Não sabe que assim vai perder o seu dinheiro? O nome,
por favor.
- Escreva Cirurgião – reiterei eu.
Enquanto a zelosa funcionária
dos correios olhava boquiaberta para mim, a senhora do guiché ao lado, que
acompanhava o diálogo, interveio e disse:
- Olha, filha: faz como ele manda. Ele é... (E fez um
gesto para indicar que eu tinha um parafuso a menos.)
E de facto a solícita senhora
que me estava a atender anuiu ao conselho da colega, fazendo como o Cirurgião
mandava, não sem lamentar mais uma vez que eu ia desperdiçar o meu dinheiro,
desnecessariamente.
4. QUESTÕES DE AMBIGUIDADE
Já eu tinha idade para estar
formado em medicina. Sempre que, numa repartição pública, me perguntavam pelo
nome, eu respondia, como tinha de responder: António Amaro Cirurgião.
E a reacção era
invariavelmente a mesma:
- Desculpe: eu perguntei pelo nome e não pela profissão. O
nome, por favor.
- António Amaro Cirurgião - respondia eu novamente.
E novamente a mesma reacção
por parte do funcionário (ou da funcionária, como se diria hoje, para se ser
politicamente correcto).
E depois da terceira ou
quarta pergunta, mais de uma vez ouvi este comentário:
- Agradeço que não goze comigo.
E era então, quando as coisas
chegavam a esse extremo, que eu dizia que o meu apelido era na verdade
Cirurgião.
Mas mais de uma vez aconteceu
que o funcionário, ou a funcionária, não sei se por estupidez, se por teimosia,
se por não querer dar o braço a torcer, me exigia um documento para provar que
o meu apelido era na verdade Cirurgião.
5.
OS RECEPCIONISTAS E O CIRURGIÃO
Sabem o que aconteceu, por
mais de uma vez, quando me apresentava na recepção de uma organização ou
empresa para falar com determinada pessoa, já de mim conhecida e eu já
conhecido dela? Bom: é fácil de adivinhar. Ao perguntarem-me quem deviam anunciar,
eu dava - e dou - sempre a mesma resposta: Cirurgião.
O recepcionista olhava para
mim e perguntava-me mais uma vez quem é que devia anunciar. E eu dava a mesma
resposta: Cirurgião.
Resignado, o funcionário
pegava do telefone e dizia para a pessoa com quem eu desejava falar:
- Está aqui um (baixava a voz) cirurgião para falar
consigo, com o senhor Doutor, com V. Ex.ª, de acordo com o que mandavam as
regras de etiqueta e cortesia e urbanidade.
E como a pessoa com quem eu
desejava falar sabia na verdade de que cirurgião se tratava, lá lhe ia dizendo
ao funcionário que sim, que mandasse subir ou entrar ou que mandasse esperar o
Dr. António Cirurgião.
E só nesse momento recebia eu
uma espécie de sorriso da parte do funcionário. Mas nem sempre isso acontecia,
pois alguns funcionários havia que julgavam que eu os estava a gozar ou a
mangar deles, como se dizia na minha terra. Mas para mostrar que eu não tinha
essa intenção, era a minha vez de abrir o rosto num largo e franco sorriso para
levantar os espíritos e para mostrar que uma pequena dose de bom humor não faz
mal a ninguém: nem sequer aos recepcionistas.
6. OS CIRURGIÕES E A AMÁLIA
RODRIGUES
Foi nas férias de Natal de 1996. Indo passar essas férias a Portugal, como de costume, levava eu dessa vez comigo uma prenda para a Amália Rodrigues, da parte do cônsul honorário de Portugal no Estado de Connecticut, Dr. Adriano Seabra Veiga, meu grande amigo e primo do marido da Amália, o Eng. César Seabra.
Ao
telefonar, do meu condomínio do Estoril, para perguntar quando podia ir levar a
prenda a casa da Amália, apresentei-me como Cirurgião, como sempre costumo
fazer, para auto-recreação, e, por vezes, para irritação das pessoas que
atendem as minhas chamadas telefónicas. (A chamada telefónica para a casa da
Amália, na Rua de São Bento, idêntica a tantas outras, foi mais ou menos assim,
uma vez estabelecido o contacto: – Daqui
fala Cirurgião. Venho dos Estados Unidos e fui incumbido pelo Dr. Seabra Veiga
e pela Dona Rita, primos do Sr. Eng. César Seabra e amigos da Dona Amália, de
lhes entregar uma encomenda. De maneira que agradecia que me dissesse se hoje
lhes poderia levar essa encomenda a casa. Resposta e pergunta da Sra. que
atendeu o telefone: – Pode vir pelas
duas da tarde. E quem devo apresentar? – Resposta minha: – Cirurgião.
– Pergunta da Sra.: - Mas o nome, por favor? – Resposta minha: Cirurgião. – Pergunta da Sra.: – Desculpe, mas o nome, por
favor. – Resposta minha: – Cirurgião. –
Bom dia. – Bom dia. Fim da chamada telefónica.)
Ao
chegar nesse mesmo dia, pelas duas da tarde, a casa da Amália, a primeira coisa
que o César me contou foi o que tinha acontecido quando a senhora que me
atendeu ao telefone foi dar o recado à Amália. As gargalhadas que tinham dado!
E
que tinha acontecido? Como há relativamente pouco tempo, uns escassos meses
apenas, a Amália tinha feito mais uma operação, por sinal nos Estados Unidos, e
por sinal no mesmo hospital em que eu fora operado ao coração, anos antes (no
Yale New Haven Hospital), a senhora, ao chegar junto da Amália, a primeira
coisa que lhe disse foi esta:
–
Sinceramente, D. Amália! A senhora diz
que a operação lhe correu tão bem, e já anda novamente metida com cirurgiões!
Mas,
passados os primeiros momentos de espanto e de confusão, a Amália e o César
tranquilizaram a boa e zelosa senhora, dizendo-lhe que o Cirurgião que lhes ia
entregar a prenda mandada pelo primo Adriano e pela Rita só era cirurgião de
nome.
7.
CARÊNCIA DE CIRURGIÕES EM LISBOA
Era eu professor numa escola
particular em Lisboa, as Oficinas de São José, quando, quase pelo final do ano
lectivo, tive de ser operado de urgência no Hospital de Jesus.
Alguns dos meus alunos, ao
chegarem a casa no dia da minha hospitalização, disseram aos pais que havia
tantos doentes em Lisboa, necessitados de operações, que o professor deles
tivera que ser substituído por outro, por ter que ir ajudar a fazer operações
num dos hospitais de Lisboa. É que, para alguns dos meus alunos, eu não era
cirurgião de apelido, mas cirurgião de profissão.
8. OS CIRURGIÕES E A PRÁTICA
DA HUMILDADE
A operação referida no
episódio n.º 8 obrigou-me a umas três semanas de hospitalização. O médico
operador tinha sido o célebre Dr. Neto Rebelo, o qual me dizia que se fizera
cirurgião sobretudo a operar noite e dia na base militar dos Aliados nos
Açores, durante a Segunda Guerra Mundial. Achando graça ao meu apelido, como
tem acontecido com tantas outras pessoas, a começar pelos médicos, ao aparecer
junto do meu leito de doente, para a visita diária, o Dr. Neto Rebelo
dirigia-se sempre a mim nestes termos: "Então como se sente hoje o meu
colega?"
Esse tratamento intrigou de
tal maneira um dos doentes da sala, por acaso um seminarista da Congregação do
Espírito Santo, que um dia se aproximou da minha cama e me disse, de uma forma
muito respeitosa, com muita timidez e com sotaque vizeense, que achava estranho
que, sendo eu cirurgião, não tivesse as honras de um quarto particular no
hospital.
Gostando de brincar com o meu
apelido, como de costume, e precisando de levantar o espírito, não lhe disse
que eu era cirurgião apenas de nome. Mas, sabendo que ele era membro de uma
ordem religiosa, apressei-me a dizer-lhe, com certo ar de compunção, que um
pouco de humildade ficava bem a toda a gente, inclusive a um cirurgião.
Visivelmente edificado, o meu
colega de sala, e de religião, concordou comigo e desejou-me as melhoras
rápidas (eu tinha sido operado às varises e as dores eram de fazer desmaiar).
9. EM BUSCA DE MELHOR MÉDICO
Foi por ocasião de um
banquete organizado num restaurante português de Hartford, no Estado de Connecticut, para comemorar uma efeméride, cujo nome não
recordo.
Durante os momentos que
precederam o banquete, enquanto os participantes iam circulando pelo bar,
contíguo à sala de jantar, tomando os aperitivos e conversando, aproximou-se de
mim um jovem imigrante português e perguntou-me se me podia dizer uma
palavrinha em particular.
- Com certeza - apressei-me eu a responder.
E em voz baixa, e com o maior
respeito, o jovem imigrante português profere estas palavras:
- Sr. doutor, há-de desculpar, mas eu queria pedir-lhe um
favor muito especial.
E quando eu pensava que me ia
pedir uma recomendação para emprego ou para admissão na minha universidade ou
coisa parecida, como tantas vezes acontecia, eis que me fala assim:
- Sr. doutor, sabe, a minha mãe anda tão insatisfeita com
o médico que tem (e disse-me o nome desse médico luso-americano), que eu queria
perguntar se o Sr. doutor poderia passar a tratá-la.
E eu, com toda a seriedade,
respondi-lhe assim:
- Olhe, meu bom amigo, lamento muito,
mas tenho tantos doentes, que não me é possível aceitar doentes novos.
E o jovem pediu-me desculpa pelo incómodo e retirou-se,
visivelmente triste. E, perante essa
atitude dele, a traduzir um genuíno e exemplar amor filial, pela primeira vez
na vida fiquei pesaroso de ter feito espírito com o meu apelido.
10. UM JORNALISTA PRESUNÇOSO
Desde novo que me deu para
escrever de longe em longe um artigozinho para jornais e cartas aos editores.
Embora muitas dessas prosas fossem assinadas com pseudónimo - Tonico Amargo (Tonico, sem acento, não acinte para
intrigar o leitor, mas para obedecer às leis da gramática) era o meu pseudónimo
favorito, por ser ao mesmo tempo o nome por que era conhecido entre os membros
da família e os amigos da velha aldeia, desde o dia em que a minha professora
de instrução primária, a D. Marquinhas, na primeira aula da primeira classe, me
passou a chamar Antonico - para me distinguir de outros
Antónios da mesma classe -, lá ia, de longe em longe, um ou
outro desses artigozinhos ou cartas aos editores assinados com o meu nome
completo: António Amaro Cirurgião.
Entretanto, como alguns dos
responsáveis pela redacção dos respectivos jornais ou revistas ainda não me
conheciam, apunham ao artigo ou à carta apenas António Amaro. Outros, pensando
que eu de facto queria que a minha profissão constasse também, deixavam ir o
Cirurgião, mas dentro de parêntesis, e às vezes com letra minúscula, para
melhor elucidação do leitor.
11. O CIRURGIÃO E A LISTA
TELEFÓNICA
Chegou porém um dia em que
uma pessoa amiga me disse que tinha procurado o meu número na lista telefónica
e que o não tinha encontrado.
Que não podia ser - esclareci
eu -, pois o telefone já tinha sido instalado há vários meses e o meu número
devia forçosamente constar da nova lista, entretanto publicada.
Mas como essa pessoa amiga
insistia que o meu nome não constava da lista telefónica em questão, eu vim a
verificar que afinal tinha razão. E, sendo assim, apressei-me a telefonar para
os serviços administrativos da companhia telefónica, a fim de perguntar por que
é que o meu nome não constava da lista telefónica. E, dito isso, dei à senhora
que me atendia o meu nome completo: António Amaro Cirurgião. Ouvido o nome, a
senhora pediu-me que lhe dissesse especificamente sob que nome devia estar. Ao
que eu respondi que, naturalmente, devia estar sob o nome Cirurgião. - Oh! - essa era boa. Que, por favor, não
brincasse com ela, pois que eu devia saber muito bem que as listas telefónicas
eram feitas à base dos apelidos e não das profissões, pelo que não era de
estranhar que as pessoas não conseguissem descobrir o meu número de telefone.
Como tive a impressão que a
senhora não aparentava ter grande sentido de humor, decidi esclarecer
imediatamente que o meu apelido era Cirurgião.
Mas as impressões tinham-me
enganado, pois a senhora replicou assim ao meu esclarecimento:
- Olhe, meu senhor, sempre seria mais interessante ter por
apelido Cirurgião que Sinsim.
E sem me dar tempo para eu
reagir à piada dela, informou-me que precisamente nesse mesmo dia ela tinha
falado com um senhor cujo apelido era Sinsim.
Foi então que repliquei que
ela tinha muito bom gosto por preferir o apelido de Cirurgião ao apelido de
Sinsim e que eu tinha mais uma razão para ter orgulho do meu apelido.
Feito esse esclarecimento,
ela perguntou:
- Não me diga que o apelido do senhor é mesmo Cirurgião.
- É sim, minha senhora.
Convencida finalmente que a
companhia telefónica se tinha equivocado, ao registar o meu nome na lista
telefónica, sob Amaro e não Cirurgião, a boa funcionária lá me foi dizendo que
ia imediatamente fazer as devidas diligências para que na próxima edição da
lista telefónica o meu nome aparecesse como devia ser. Mas que de facto - acrescentou ela - eu tinha um apelido muito estranho
e um pouco bizarro e que devia compreender e desculpar o equívoco da companhia.
E como, ao contrário do que
chegara a suspeitar, a funcionária da companhia telefónica tinha sentido de
humor, ficámos a conversar quase dez minutos sobre o carácter estranho e
bizarro de alguns apelidos, a começar pelo meu.
12. UMA OPERAÇÃO BENVINDA
O caso que se segue aconteceu
nos Estados Unidos.
No meu primeiro ano de
professor nos Estados Unidos, ensinava eu Latim e Francês em Chester High
School, na vila de Chester, no Estado de Massachusetts, quando o médico de
família me descobriu um quisto nas costas e me aconselhou a operá-lo
imediatamente.
Na manhã do dia seguinte,
chegado ao hospital de Westfield, dirigi-me à recepção para me informar sobre a
localidade do gabinete do médico que ia operar-me e para preencher os devidos
formulários.
A primeira coisa que a
recepcionista fez foi perguntar-me pelo nome, como é natural.
- António Cirurgião - respondi eu.
- Soletre o apelido, por favor - pediu-me a recepcionista.
E eu soletrei o apelido uma vez.
E, como ela o não apreendesse bem, pediu-me que o soletrasse novamente. E eu
soletrei-o uma segunda vez, provavelmente demasiado rápido, por causa do
nervosismo e da pressa em ir ter com o cirurgião que me ia operar, pelo que ela
não conseguiu apreendê-lo devidamente.
Então eu, para simplificar as
coisas, rematei dizendo-lhe:
- Well, just put
surgeon.
Ao que ela prontamente
replicou:
- OK, doctor, come
again.
13.
O CIRURGIÃO NOS SERVIÇOS DE IMIGRAÇÃO E NATURALIZAÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS
Perante a dificuldade em pronunciar
o meu último apelido - Cirurgião - a senhora que me atendeu pediu-me que lho pronunciasse.
E eu pronunciei-o e ela tentou imitar-me, mas, como é óbvio, e como sempre
acontece, sem qualquer êxito. E, sendo assim, pediu-me que lho pronunciasse uma
segunda vez e uma terceira vez e uma quarta vez, e a dificuldade dela persistia,
o que é a coisa mais natural deste mundo para quem tem o Inglês como língua
materna.
Perante esse facto,
perguntou-me o significado do apelido em Inglês.
- Surgeon - disse-lhe eu.
- Nesse caso, porque é que não muda o apelido de Cirurgião
para Surgeon?
- Porque eu gosto do meu apelido assim.
- Pense bem nisso - insistiu a boa senhora.
- Já está pensado, minha senhora: o meu apelido é
Cirurgião e assim deve continuar.
- Bom - apressou-se ela a dizer: vá-se
acostumando a ver o seu apelido mal pronunciado e mal escrito, pois ele não só
é difícil de pronunciar mas também de escrever.
- Isso sei eu, por longa experiência, e a isso já estou
acostumado, minha senhora. Aliás, pelo que se refere à escrita, isso até
acontecia com muita frequência em Portugal, meu país de origem - expliquei eu
com um leve sorriso.
- Well: good luck
then, Mr. Surgeon - disse-me ela, em tom de graça.
E assim optei eu, contra o
conselho da diligente e pragmática funcionária dos Serviços de Imigração e
Naturalização de Boston, por ser o fundador de uma dinastia de Cirurgiões nos
Estados Unidos da América, de preferência a ver-me assimilado pelas famílias de
Surgeons americanos.
14. PARA UM CIRURGIÃO NÃO HÁ RESTRIÇÕES PLAUSÍVEIS
Sempre que vou a Portugal,
nunca deixo de visitar a família do Porto, como é natural. Umas vezes vou de
comboio e outras vou de carro. Quando vou de comboio, aviso de antemão,
indicando o dia e a hora da chegada. Quando vou de carro, normalmente opto por
aparecer de surpresa, o que sucedeu dessa vez. E, naturalmente, a casa a que
sempre me dirijo é a do meu irmão Artur e da minha cunhada Matilde, na Rua de
São Tomé. Mal tinha acabado de tocar a campainha, quando, vinda do lado oposto
da rua, me apareceu a Matilde, toda aflita e com os olhos marejados de
lágrimas. É que ela regressava nesse preciso momento do Hospital de São João,
onde se encontrava o Artur para exames médicos, pois umas duas horas antes,
quando dava o seu passeio matinal, se sentiu de repente quase impossibilitado
de respirar.
Ao ouvir essas palavras,
limitei-me a dizer à Matilde que eu ia imediatamente ao hospital visitar o meu
irmão. Que não valia a pena: que os médicos tinham dado ordens terminantes para
não permitir qualquer visita, fosse de quem fosse, até novas ordens.
Perante essa informação da
Matilde, apenas retorqui que eu ia tentar obter autorização para visitar o meu irmão.
Ao fim e ao cabo, tinha vindo expressamente dos Estados Unidos para visitar a
família. Que os médicos certamente compreenderiam o meu caso.
E, ditas estas palavras,
dirigi-me para o Hospital de São João, a uns dez minutos a pé da casa do meu
irmão e da minha cunhada. Aí chegado, dou imediatamente com os olhos nas minhas
duas sobrinhas – a Maria Isabel e a Maria Fernanda – e os respectivos maridos:
o Zé Manuel e o Francisco. Ao perguntar onde se encontrava o meu irmão Artur,
fui informado que tinha sido levado para a secção de cardiologia, a fim de ser
devidamente examinado.
De posse dessa informação,
disse-lhes que ia tentar visitá-lo. Inútil sequer tentar – disseram-me eles em
coro: a proibição dada pelos médicos estendia-se a toda a gente, inclusive à
família mais chegada. Por isso a Matilde tinha ido para casa e eles – as filhas
e os genros – estavam ali na portaria. Eu, sem mais delongas, deixei-os aos
quatro e dirigi-me para os elevadores. Vou para puxar o botão, quando um
senhor, devidamente uniformizado, me perguntou para onde pretendia ir. Perante
a minha resposta – que queria ir visitar o doente Artur Pires –, o dito senhor
informou-me que esse doente não podia receber visitas de ninguém. Isso sabia-o
eu muito bem – disse eu ao diligente e responsável porteiro. Acontecia, porém,
que eu era cirurgião e necessitava ver o doente com a maior urgência.
- Com certeza, senhor Doutor. Faz favor de entrar no
elevador, que eu levo-o à secção onde esse senhor se encontra, para exames
médicos.
E ao aparecer junto de meu
irmão, rodeado de enfermeiras, a primeira coisa que ele me perguntou foi como é
que eu tinha conseguido autorização para ir ter com ele.
- De uma maneira muito simples. Apenas disse a quem de
direito que eu era cirurgião e necessitava ver o doente com a maior urgência.
E esta saída, tão
apropriada e tão importante, naquele dramático momento, contribuiu obviamente
para ajudar a levantar o espírito do Cirurgião mais velho e do Cirurgião mais
novo.
15. O CIRURGIÃO SEM
ALTERNATIVA PLAUSÍVEL
Em Julho de 2007, por ocasião
de uma visita à minha família de Boston, a Paulina, a determinado momento,
falou-me assim:
- António, o Anthony e eu temos vindo a pensar se não
seria aconselhável adoptar outro apelido para os seus netos (a Camille Janine e
o Calvin Alexander), pois, como sabe, ninguém consegue pronunciar devidamente o
apelido Cirurgião. Perguntamo-nos se não seria preferível mudar o apelido
Cirurgião para outro apelido. Tanto mais que o Anthony me disse que ele tem a
impressão que o segundo nome do António também é um apelido.
- De facto assim é. Como a Paulina sabe, o meu nome
completo é António Amaro Cirurgião. Como é da praxe em Portugal, o Cirurgião
era o apelido de meu pai e o Amaro, o apelido de minha mãe.
- E qual é o significado de Amaro em Inglês? –
perguntou-me a Paulina.
- É bitter, de
amargo (do Latim amarus – amara – amarum).
- Ora bolas – apressou-se a exclamar a Paulina. – Nesse
caso, é melhor deixar as coisas como estão. Ao fim e ao cabo, Cirurgião não é o
único apelido na América de pronúncia difícil. O meu, por exemplo – Zgorzelska
–, também é de pronúncia difícil.
De maneira que, de momento, a
Paulina e o Anthony concordam em que a Camille e o Calvin continuem a
apedidar-se de Cirurgião, uma vez que a alternativa confirmaria o velho ditado
que diz que, às vezes, é pior a emenda que o soneto.
António
Cirurgião
Há um equívoco na ideia de que os judeus portugueses não podiam ter bens imóveis. Existem incontáveis escrituras de transacções de propriedades entre e com judeus em todo o país, antes do édito de expulsão, consultáveis na Torres do Tombo e . Depois disso, os cristãos-novos continuaram a poder ser proprietários e a transaccionar bens imóveis.
ResponderEliminarPrezada Senhora,
EliminarMuito obrigado pela correcção do erro a que, amável e diplomaticamente, chama "equívoco".
Cordiais saudações do
Cirurgião
Sempre uma delícia ler os seus textos, caro António Cirurgião!
ResponderEliminarCaro(a) Leitor(a),
EliminarMuito sensibilizado, agradeço a sua amabilidade.
Abraço amigo
do
Cirurgião
existe um excelente site onde é possível fazer genealogias através de arquivos existentes. Necessário registar e pagar. Eis o que se encontra sobre Cirurgião, alguns com ligações a Afonso Henriques: https://geneall.net/pt/pesquisa/?s=Cirurgi%C3%A3o&t=p
ResponderEliminaro apelido é raro tal como as qualidades da pessoa: inteligente, sensível, perspicaz e verdadeiro...abraço amigo
ResponderEliminarConsideravelmente a despropósito - muito ao lado da substância do texto -, uma pequena nota gastronómica:
ResponderEliminar"... e das alheiras (as quais têm de tudo um pouco, menos carne de porco, ao contrário de todas as outras espécies de fumeiro)..."
A ideia de que a alheira é coisa marrana é muito popular mas fantasiosa. As alheiras - que nunca foram de Mirandela senão agora em indústria, mas das terras frias e apenas de Mirandela expedidas para as cidades por caminho-de-ferro -, têm realmente de tudo e quase as ninguém fazia sem pelo menos a dita em gordura do reco. Assegurou-me sempre a minha avó (que faleceu já em noventas e as havia aprendido de bisa), que isso só podia ser fantasia teológica do abade de Priscos. Além disso e do pão, levava o alho que lhe dá o nome e de que se esqueceram alguns salsicheiros.
Com isto, esqueci-me do mais importante: fartei-me de rir ao ler o que agora nos oferece. E não creio que seja possível fazer maior encómio a qualquer texto.
EliminarPrezado Sr. dutilieul,
EliminarMuito obrigado pela lição e pelas palavras tão elogiosas.
A propósito, esqueci-me de informar que a alheira de porco também tem a tripa. E outrossim informo que, quanto à propalada exclusividade de Mirandela, na minha terra natal, Soutelinho da Raia, concelho de Chaves, a minha avó materna e a minha mãe faziam alheiras tão boas e em tal quantidade, que, para podermos saboreá-las através de todo o ano, de matança a matança de porco, as conservavam com excelente azeite da Terra Quente em enormes talhas. E mais informo que, quanto aos ingredientes que constavam da feitura da alheira, entrava o peru, o qual, antes de ser sujeito ao sacrifício, era emborrachado com o nosso gostoso e capitoso vinho do Ozo, cultivado no termo da frequesia do Couto de Erevededo, para refinar o sabor das alheiras.
Tomei a liberdade de referir o último pormenor sobre a confecção das alheiras da minha terra natal, por saber que estou a salvo da jurisdição dos zelozíssimos familiares e confrades do PAN de Portugal e que os confrades americanos do PETA, não lêem esta minha prosa bárbara.
Prosit e cordiais saudações do
Cirurgião
Cirurgião, meu caro amigo,
ResponderEliminarAinda bem que pôs tudo isto cá para fora. Há tanto tempo que insisto consigo para que o faça. Só tenho pena de que seja tudo de uma vez. Hoje na minha idade não aguento tão lauto jantar. Tenho de ir lendo aos poucos, muito embora já conheça algumas. Ou porque me contou, ou porque li graças à sua amizade.
Escreva mais. E/ou mande mais.
Um abraço amigo.
Afinal, li tudo sem parar. Quer dizer, parei no fim.
ResponderEliminarTenho muitas estórias sobre o meu nome Onésimo Teotónio, mas o meu amigo bate-me de longe com as suas.
Mais um abraço.
Exmo senhor professor António Amaro Cirurgião,
ResponderEliminarSeremos ambos oriundos da mesma família ?
Hoje, resolvi pesquisar sobre o apelido da família materna do meu falecido pai (que é em grande parte natural de Atilhó, concelho de Boticas, distrito de Vila Real, Trás-os-Montes) e fiquei agradavelmente surpreendida ao ler os seus textos.
O meu nome é Anne-Marie Surgião e posso confirmar que é raro um (a) recepcionista telefônico (a) , "decifrar" o meu nome (de modo auditivo) à primeira.
Nasci em França, onde, no meu caso, o meu apelido (também Cirurgião) foi erradamente alterado por parte dos serviços administrativos franceses (provavelmente dificuldades linguísticas, uma vez que o meu pai era um recente imigrante aquando o meu nascimento).
Bem haja
Senhora Anne-Marie Surgião,
Eliminarsó hoje, ao passar os olhos pelos comentários aos meus textos sobre o meu apelido Cirurgião, deparei com o seu, que achei curiosíssimo.
Como pode imaginar, adoraria saber mais sobre a sua genealogia, mas não sei como entrar em contacto com a Senhora. Eu teria o maior prazer em dar-lhe os meus números de telefone e o email, se tivesse a bondade de me dizer por que meio.
Muito obrigado e saudações.
António Cirurgião
Exmo senhor professor António Amaro Cirurgião,
ResponderEliminarÉ com bastante agrado que lhe envio o meu email (annemarie.surgiao@gmail.com).
Bem haja