Não sei, juro que não sei, se Jean de
Brunhoff foi leitor de Plínio. Ou de Damião de Góis. Mas gosto de pensar que,
quando colocou o irritante rinoceronte Rataxés em confronto com o velho
elefante Cornélius, em A Viagem de Babar
(1932), o criador do celebérrimo paquiderme deu luz e cor a um mito
antiquíssimo, o da inimizade entre elefantes e rinocerontes, narrado por Plínio, o Velho. Foi essa história
romana que o nosso D. Manuel I pretendeu recriar em Lisboa, logo à chegada à
cidade, em 1515, da rinoceronte Ganda, vinda das Índias.
Antes disso, os elefantes (alguns com torrinha no dorso!) encheram os
bestiários medievais (uma boa selecção aqui) e não vou maçar os leitores com a história do karkaddan, uma
criatura da mitologia persa que é, sem tirar nem pôr, um rinoceronte das
Índias.
O karkaddan
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Só imploro um minuto de atenção para poder dizer – e, isso sim, já me
parece digno de interesse – que muitas miniaturas persas figuram lutas entre elefantes
e rinocerontes. Se houve tais lutas ou não, não sei. Mas sei que é espantosa coincidência que a inimizade
entre os dois mastodontes esteja presente a Ocidente, desde tempos romanos, e a
Oriente, em épocas persas e mongóis. Será que esta fake news foi de lá para cá, ou vice-versa? Terá existido, como
agora se diz, um «diálogo intercultural»? Não sei. Só registo a invulgar
afinidade, quanto a este específico tópico, das crenças vigentes em Roma e na
Pérsia.
Veja-se esta «Pugnae Ferarum», uma tapeçaria flamenga de c. 1575-1600 da lenda do karkadann, que o mostra à pugna com um elefante. A descrição do antiquário que a vendia (já foi comprada…) é muito, muito completa, vale a pena.
Tapeçaria flamenga, c. 1575-1600
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Mais curioso é pensar que a refrega
entre elefantes e rinocerontes, vinda de Roma, passando por Lisboa, tem actual
e anual prolongamento entre 2 de Julho e 16 de Agosto num lugar chamado Piazza
del Campo numa terra chamada Siena. Graças a Nela San e ao Miguel Seixas,
descobri o rinoceronte da Contrada della Selva, que lá está na heráldica do
bairro desde 1888, mas que fez parte do imaginário da cidade desde 1546, pelo
menos, e lá chegou – atenção – por via portuguesa directa, sendo o rinoceronte
de Siena uma reconfiguração da Ganda de Modofar, a bicha que D. Manuel enviou
ao Papa, que naufragou perto de La Spezia depois de ter sido vista por
Francisco I e após ter afugentado um jovem elefantinho, coitadinho, no centro
de Lisboa. Já falei aqui do rinoceronte da Contrada della Selva.
Catedral de Siena, pavimento
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Pois em Siena, como me informou Nela
San, há antiga tradição elefantina, que começa logo pelo chão. Espantoso chão,
assombroso pavimento, o da Catedral de Siena. Daquelas coisas que só mesmo em
Itália, como os mosaicos de Otranto, de que já falei aqui,
ou os mosaicos romanos da Villa del Casale, de que falei aqui,
sempre na maior e na mais atrevida das ignorâncias.
Nave central. A loba de Siena e o elefante de Roma
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O
pavimento da Catedral de Siena é uma coisa complexa demais para estarmos para
aqui a falar dela em profundidade. (ver aqui, uma descrição ou aqui) Tem tal riqueza que até já se fizeram
esquemas explicativos e aproximativos, como este que aqui publicamos. De
salientar tão-só que o pavimento da nave central, feito circa 1373 e refeito 1864-1865, tem a loba de Siena e os animais
das cidades aliadas, o cavalo de Arezzo, o leão marzocco de Florença (e o que haveria a dizer sobre este! Vide
aqui), a pantera de Lucca, a lebre de Pisa, o unicórnio de Viterbo, a cegonha
de Perugia, o ganso de Orvieto e… o elefante de Roma. Este nada tem a ver com
Portugal, atendendo desde logo à data de feitura – século XVI, autor
desconhecido.
O
mesmo se não dirá do elefante da Contrada della Torre, em Siena, cuja
simbologia é explicada aqui em douto pormenor. E, como aí se diz, para escolha
do elefante com a torrinha às costas pesaram alguns factores, entre os quais o
elefante Hanno, que D. Manuel enviara ao Papa. Mas também a ligação entre San Giacomo e os elefantes, patente na igreja românica de San Giacomo, em Trani (aqui), cujo portal tem um casal de olifantes do século XII. Como a igreja de Trana tem sido tão maltratada, vandalizada, incendiada, vamos mostrá-la a benefício de inventário:
A representação mais antiga está num sino no oratório de San Giacomo, da autoria de Antonio da Siena, sino que foi feito a partir do ferro fundido dos canhões tomados aos florentinos em 1526. Aliás, esse elefante foi desenhado por Sigimsondo Tizio (1458-1528) na sua Historiarum Senensium, com o castelinho no dorso.
O mais espantoso? Há poucos anos, na Biblioteca Vaticana (Chigi C-II-38-fol. 14), Ingrid D. Rowland, da Columbia University, Nova Iorque, descobriu o original de um desenho de autor anónimo, feito à pena, inserido por Sigismondo na Historiarum Senensium, na parte em que, em 1516, conta a história do rinoceronte de Lisboa, do seu naufrágio ao largo de Porto Venere e da história natural do rinoceronte em geral, como refere aqui Hermann Walter.
A representação mais antiga está num sino no oratório de San Giacomo, da autoria de Antonio da Siena, sino que foi feito a partir do ferro fundido dos canhões tomados aos florentinos em 1526. Aliás, esse elefante foi desenhado por Sigimsondo Tizio (1458-1528) na sua Historiarum Senensium, com o castelinho no dorso.
Os emblemas visuais da Contrada della Torre
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O mais espantoso? Há poucos anos, na Biblioteca Vaticana (Chigi C-II-38-fol. 14), Ingrid D. Rowland, da Columbia University, Nova Iorque, descobriu o original de um desenho de autor anónimo, feito à pena, inserido por Sigismondo na Historiarum Senensium, na parte em que, em 1516, conta a história do rinoceronte de Lisboa, do seu naufrágio ao largo de Porto Venere e da história natural do rinoceronte em geral, como refere aqui Hermann Walter.
Desenho de autor anónimo, 1516, na Historiarum senensium
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Quanto
ao elefante, em The Pope's Elephant, Silvio Bedini, como me chamou a atenção Nela San, refere que
clérigos de Siena foram a Roma, ver a portentosa embaixada de D. Manuel: cf. ob. cit., pág. 44, falando dos cardeais de Siena e Aragão. E
haverá ainda a explorar a pista deixada por um leitor do Malomil, a presença em
Siena de D. Miguel da Silva (1480-1556), bispo de Viseu, nosso embaixador em Roma de 1514 a
1525. E, com tempo e vagara, ainda darei uma vista de olhos ao livro de Paulo Lopes, Um Agente Português na Roma do Renascimento (Lisboa, 2013). Fica a promessa, ou ameaça.
Portanto,
não parece haver dúvidas que dois animais de origem portuguesa marcam presença
anual no Pálio de Siena: o rinoceronte, da Contrada della Selva, e o elefante,
da Contrada della Torre.
Ao
competirem anualmente na Piazza del Campo, o elefante della Torre e o rinoceronte della Selva
recriam uma disputa antiquíssima de que já falava Plínio, disputa que também está em miniaturas
persas e mongóis, disputa que foi reconstituída por D. Manuel no coração de Lisboa e
disputa que até as aventuras de Babar acabam por retratar. Dois animais de origem portuguesa, dois, no Pálio de Siena! Já agora, em 1775 apareceu outro elefante em Siena, durante 16 dias, história que podeis acompanhar aqui.
" ainda darei uma vista de olhos ao livro de Paulo Lopes, Um Agente Português na Roma do Renascimento (Lisboa, 2013). Fica a promessa, ou ameaça".
ResponderEliminarPrefire-se como promessa (sendo que o Senhor George Soros vende o livro por 97 Us$)
Eu tenho aqui o livro, 97 dólares?
ResponderEliminarObrigado!
António Araújo
https://www.amazon.com/Agente-Portugu%C3%AAs-Roma-Renascimento-Portuguese/dp/9896442347
ResponderEliminarCusta 10 euros em Portugal…
ResponderEliminarhttps://www.wook.pt/livro/um-agente-portugues-na-roma-do-renascimento-paulo-catarino-lopes/15020379