Cativações. Esta política
de controlo orçamental, tão presente no nosso quotidiano parlamentar e
mediático, foi, já há 18 anos e de acordo com os relatos do próprio, a causa
maior da demissão de Manuel Maria Carrilho do lugar de ministro da cultura.
Numa altura em que o orçamento do sector representava cerca de 0,7% do total da
despesa do Estado e em que o seu titular ambicionava uma aproximação ao mítico
1%, António Guterres, pressionado pela falta de dinheiro, congela-lhe parte das
verbas, levando-o a bater, de uma forma algo estrondosa, com a porta. Esse 1%,
um número como outro qualquer e que, por si só, não significa grande coisa, transformou-se
numa obsessão quase global desde que François Mitterrand, ainda na corrida ao
primeiro mandato presidencial, o invocou como “mínimo razoável”. Carrilho, um
assumido francófilo, ter-se-á cansado de esperar por ele.
Analisar este episódio à
luz dos nossos dias quase que dá, não fosse o caso sério, vontade de rir. O
orçamento actual da cultura, num governo socialista apoiado pelo Partido
Comunista e pelo Bloco de Esquerda, está nos 0,24% da despesa pública total e
nos 0,11% do PIB. Para que as intenções presentes nos programas eleitorais do
PCP e do BE (1% do PIB e não 1% do Orçamento do Estado) se transformassem em
realidade, o Estado teria de multiplicar por nove o investimento nesta área,
atingindo um valor próximo dos 2000 milhões de euros! A verba de 2018, cerca de
220 milhões, está, assim, em linha com o que tem sido a história do ministério
na última década: muita ambição, pouco dinheiro.
Nos anos 60, depois de um
período de grande sucesso, o treinador Béla Guttmann, também por causa de
dinheiros, foi-se embora do Benfica, deixando para trás, alegadamente, uma
maldição. Não sabemos se a história é verdadeira ou não, mas sabemos que, até
hoje, a realidade ainda não a conseguiu desmentir. Será que Manuel Maria
Carrilho, que não é propriamente conhecido pelo seu bom feitio, deixou na Ajuda
algo do género, uma espécie de “depois de mim, ninguém será feliz neste lugar”?
Para enquadrarmos melhor
a problemática, comecemos pelo princípio. O que é a cultura? Como é que ela se
relaciona com a política? Quem deve pagar?
A primeira pergunta é antiga,
difícil de responder (toda a gente dirá que sabe o que é, mas poucos
conseguirão encontrar as palavras para o traduzir), e já ocupou, ao longo dos
séculos, várias mentes brilhantes por esse mundo fora. Para não sairmos de
Portugal, e sem recuar demasiado no tempo, podemos invocar como exemplo o
Professor António José Saraiva e o livro a que deu exactamente o título “O que
é a cultura”.
A palavra é originária do
verbo latino “colere” e estava inicialmente ligada apenas à questão agrária, ou
seja, à acção modificadora do homem sobre os campos. Só posteriormente passou a
abranger também a acção modificadora do homem sobre si próprio, sobre o seu – e
segue-se uma palavra polémica devido à sua utilização pelo Estado Novo –
“espírito”.
Edward Burnett Tylor, o
britânico oitocentista a quem muitos atribuem a paternidade da antropologia
cultural, definiu-a como o conjunto que “inclui o conhecimento, as crenças, a
arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades
adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade". É um conceito
alargado, que abrangeria não só as grandes obras de arte de uma comunidade como
também os seus padrões comportamentais. Aplicando o pensamento de Tylor ao
nosso país, poderíamos dizer que a cultura portuguesa abarca desde as sonatas
para piano de Fernando Lopes-Graça até à contratação de um serviço de
pichelaria sem factura por forma a fugir ao IVA. As esculturas de Soares dos
Reis e a louça fálica das Caldas, Guilhermina Suggia e Quim Barreiros, o saudosismo
e cuspir para o chão, o filme Recordações da Casa Amarela e as Tardes da Júlia,
a poesia de Fernando Pessoa e as inscrições nas portas das casas de banho
públicas, o cozido à portuguesa e a pista de penitência do santuário de Fátima
seriam apenas alguns dos infinitos exemplos passíveis de inclusão e relevantes
para a análise antropológica.
O
Preço Certo: Fernando
Mendes, apresentador deste caso de sucesso, diz que o programa “é uma amostra
do que somos, da nossa cultura”. De acordo com a definição da UNESCO, o Gordo, como é carinhosamente tratado
pelos seus inúmeros fãs, está a dizer a verdade
No entanto, convém não
alimentar ilusões: na maioria dos casos a cultura que interessa,
verdadeiramente, ao poder político não é assim tão abrangente, e seria de uma
grande ingenuidade não ter isso em conta. Quando, em 1989, François Mitterrand
e o seu omnipresente ministro da cultura Jack Lang reuniram em Paris as mais
conhecidas personalidades francesas e alguns dos mais importantes líderes
mundiais, não o fizeram sob o pretexto de um concerto do Quim Barreiros francês
ou de um campeonato de petanca (que é, sem dúvida, um fortíssimo símbolo
cultural daquele país). O motivo foi a inauguração da colossal Ópera da
Bastilha, construída por ocasião do bicentenário da Revolução, e revestida da
grandiosidade necessária à glória da Gália e do seu vaidoso (não é pecado)
presidente.
François Mitterrand
e Jack Lang (ou o poder sedutor da cultura)
É por isso que, na
abordagem deste tema, é essencial distinguir as várias definições de cultura e
utilizar uma de âmbito mais restrito, que nos livre da fuga ao fisco e das
cuspidelas na via pública, e que deixe alguma autonomia para a área irmã do
ensino. Esta definição mais restrita estará, assim, ligada fundamentalmente à
sabedoria e aptidões intelectuais, literárias, estéticas e artísticas dos seres
humanos, individual ou colectivamente considerados. Ademais, deve “pegar-se” nessa
enunciação mais limitada da cultura e dividi-la, uma outra vez, em partes.
Duas, pelo menos: popular (ou “baixa cultura”, uma designação infeliz que tem o
mérito de dizer logo ao que vem) e erudita (ou “alta cultura”, ou “cultura de
elite”). É certo que existem artistas que se esforçam por baralhar esta
dicotomia através de influências cruzadas (lembremo-nos das populares rendas de
bilros e de croché que Joana Vasconcelos levou ao elitista Guggenheim de Bilbao),
mas julgo não ser possível ultrapassá-la quando falamos de políticas culturais.
O nobelizado T. S. Eliot,
conhecido principalmente pela sua poesia, publicou um ensaio dedicado à cultura
em que, considerando essa divisão como positiva, não se afasta dela. Pelo
contrário, os riscos que identifica, já nessa época, prendem-se precisamente
com a ideia bondosa de que se consegue, recorrendo à educação, espalhar a
cultura das elites pela totalidade da população. Para ele, essa democratização,
mostrando-se impossível de concretizar em níveis superlativos, acabará por se
fazer nivelando por baixo e empobrecendo a “alta cultura”. Na opinião do poeta,
a complementaridade e relativa estanquidade da cultura popular e erudita é que
garantiam, antes do declínio que já identificava em 1948, ano do ensaio, a
qualidade das realizações culturais. Mais de meio século depois um outro Nobel
da Literatura, Mario Vargas Llosa, reforçou a teoria da decadência. Para o
escritor peruano, as influências da antropologia e da sociologia na definição
do conceito de cultura, levaram a que seja impossível distinguir, nos dias que
correm, uma pessoa culta de uma pessoa inculta. Llosa, de uma forma bastante
directa e ultrapassando largamente os reparos de Eliot, chega mesmo a apelidar
a cultura popular de “incultura”, lamentando a sua miscigenação com a obra
erudita.
Contrariar as opiniões de
tão ilustres figuras é um exercício que não deve ser feito de ânimo leve, mas é
importante referir que estes dois mundos nunca foram estanques. A ópera, que é
actualmente considerada um espetáculo de elites, já passou, à falta de melhor
palavra, por várias “fases”. Nasceu para entreter os poderosos, transformou-se
depois num divertimento extremamente popular, e regressou, nas últimas décadas,
ao ponto de partida. Podemos ilustrar o interesse generalizado que existiu no
passado com a fama de Enrico Caruso, tenor napolitano que iniciou a carreira no
final do séc. XIX e que, em poucos anos, se transformou numa celebridade
mundial (talvez a maior da época) e num homem rico. A multidão amava Caruso e a
arte que ele representava. A ópera era de todos e, como é fácil de adivinhar,
nada impede que o povo, um dia, a faça sua novamente.
(entretanto, claro, há um
problema: o financiamento. Manuel Maria Carrilho dizia que, a preços de
mercado, um bilhete para entrar no São Carlos teria de custar largas dezenas de
contos, querendo com isto explicar que, sem o apoio do Estado, esta forma de
arte desapareceria. É provável que tenha razão. No entanto, enquanto o povo não
regressa à ópera, as suas afirmações levantam uma questão importante: sendo o
São Carlos frequentado, quase em exclusivo, pela elite de Lisboa, será justo
que esta seja “sustentada” pelos impostos do povo de Bragança ou de Portalegre?
Mais à frente este ponto será retomado…)
Funeral de uma pop star chamada Enrico Caruso
Mas nem só no teatro
lírico se pode ver a fluidez entre a “alta” e a “baixa” cultura (ou, por outras
palavras, a forma como o cânone vai sofrendo alterações). Certos autores, com Shakespeare
à cabeça, começaram por ser heróis da plebe e alvos de desprezo dos eruditos, e
são agora venerados pelos eruditos e ignorados pela plebe. E no cinema, além dos
filmes que nascem e vivem sob o estigma da “palhaçada hollywoodesca para ganhar
dinheiro” e dos que nascem e vivem como obras de arte, há um grande número de
casos híbridos: obras-primas que são enormes sucessos comerciais; filmes que só
alcançam a respeitabilidade muito tempo depois de serem lançados; mediocridades
que são imediatamente baptizadas como “alta cultura” apenas por causa do nome
do realizador e dos seus trabalhos anteriores; etc.
Tubarão (1975), de Steven Spielberg:
a) “alta” cultura
b) “baixa” cultura
c) obra-prima
d) blockbuster
escapista
e) todas as anteriores ü
Em relação à segunda
pergunta, sobre as ligações da política com a cultura, que é íntima da
terceira, sobre o financiamento, podemos começar por abordar o significado de
“política cultural”, uma expressão relativamente recente, pelo menos quando
comparada com a idade das gravuras do Vale do Côa ou da gruta de Lascaux,
vetustas representantes da História da Arte. Conseguimos até identificar
situações no passado em que se desenvolveram políticas culturais sem lhes
aplicar esse nome, ainda inexistente. Práticas avant la lettre, por assim dizer, como a abertura de teatros,
museus e bibliotecas nacionais na Europa a partir do século XVII, a publicação
das primeiras leis de protecção do património durante o século XIX, e algumas
das estratégias de propaganda desenvolvidas pelos vários regimes autoritários e
totalitários do séc. XX. Este último exemplo, aliás, é um dos que é
permanentemente apontado pelos críticos da existência de ministérios da
cultura, comparando-os, no caso dos críticos portugueses, ao Secretariado de
Propaganda Nacional (SPN) de António Ferro. A “política cultural” não passaria,
pois, de uma reencarnação da “política do espírito” de Salazar disfarçada por
umas vestes democráticas. Numa rápida pesquisa é possível encontrar vários
nomes, da esquerda à direita, que subscreveram este ponto de vista. O já
referido António José Saraiva foi um deles; Eduardo Pitta e Pacheco Pereira,
para citar alguns exemplos mais recentes, dizem o mesmo.
Salazar discursando no Castelo de
Guimarães em 1940, durante as comemorações do VIII Centenário da Fundação da Nacionalidade. O Estado Novo, ciente
do papel do papel do património na promoção da identidade nacional, restaurou
profundamente o monumento vimaranense no final dos anos 30
Sublinhar as orientações
ideológicas dos opositores da ideia de um ministério é importante, pois
demasiadas vezes é feita uma simplificação abusiva que coloca todos os “prós” à
esquerda e todos os “contras” à direita. Como veremos mais à frente com a
análise do caso francês, a realidade é mais complexa.
Durante séculos a criação
artística esteve dependente do mecenato. Caio Mecenas, um riquíssimo cidadão
romano do círculo próximo do Imperador Augusto, emprestou o seu nome a essa
“desinteressada” actividade de financiar as artes. Coloco “desinteressada” entre
aspas uma vez que a ausência de interesse comercial nesse apoio nunca implicou
a inexistência de outro tipo de interesses, nomeadamente os relacionados com prestígio,
entretenimento, influência e poder. É neste sentido que podemos afirmar que,
independentemente da teorização sobre o assunto, as ligações da política com a
cultura são, para o bem e para o mal, imemoriais. O mecenas Mecenas (uma
estranha mas correcta sequência de palavras) patrocinou sobretudo homens de
letras, entre os quais o famosíssimo Virgílio, autor da Eneida, mas o conceito
alargou-se a muitas outras áreas, não só culturais como também sociais,
desportivas e científicas.
Em toda essa longa época,
o critério de escolha era o gosto e a disposição do detentor do capital. Von Colloredo,
arcebispo de Salzburgo, foi patrono de Mozart, de quem apreciava a música, até
ao dia em que, desagradado com o comportamento do compositor, lhe deu um “pontapé
no rabo” (palavras do dono do rabo em carta para Leopold Mozart, seu pai). Quem
pagava, mandava, e ninguém punha em causa que assim fosse. Actualmente, tenta-se,
não sem alguns riscos (veja-se a polémica Sousa Lara / José Saramago ou as
posições de Graça Fonseca sobre as touradas), que não se resuma tudo a uma
questão de gosto.
Há quem atribua a
invenção da política cultural, já com este nome, aos franceses e ao seu Ministério
da Cultura institucionalizado em 1959. Sublinhe-se que estamos já a analisar o
assunto no domínio das democracias e não das anteriores experiências fascistas
e comunistas, que nunca dispensaram a ingerência radical nas artes e na
cultura. Dada a grande relação que todos estabelecem entre o Hexágono e o
estatismo/dirigismo, é uma atribuição confortável, o que não significa que seja
totalmente correcta. É certo que André Malraux, escritor e pensador parisiense
de reconhecido talento, foi o primeiro ministro da cultura propriamente dito,
cargo que exerceu, com extraordinário vigor, sob a presidência de Charles de Gaulle.
É também verdade que esta originalidade do velho general é muitas vezes
sublinhada com orgulho por personalidades de direita quando confrontadas com o
suposto desprezo desse quadrante ideológico pelo tema. Porém, manda a justiça
que não nos esqueçamos de John Maynard Keynes (sim, o famosíssimo economista) e
do seu contributo, logo no início dos anos 40, para o aparecimento do Arts
Council britânico. Movido por um grande interesse pessoal em variadas formas de
arte (“a luta de classes vai encontrar-me do lado da burguesia culta”,
sentenciou), bateu-se, à semelhança do que fez em relação à economia em geral,
por uma interferência e participação activa do Estado na área cultural, transformando-o
num agente de divulgação e num promotor da criação. Esta posição foi bastante
coerente, pois não representou mais do que alargar o investimento público,
pedra basilar do keynesianismo, ao
mercado cultural, tentando compensar, dessa forma, as suas falhas, limitações e
insuficiências.
Cambridge Arts Theatre. John Maynard
Keynes financiou, do seu próprio bolso, mais de 80% da construção deste teatro
inaugurado em 1936. Uns anos depois defendeu que os privados, sozinhos, não
conseguiam sustentar as artes: o Estado também tinha que entrar na equação
Keynes não foi, ao
contrário de Malraux, ministro, e o Arts Council não é, definitivamente, o
típico departamento governamental responsável pela cultura. No entanto,
partilhavam, o notável escritor francês e o cultíssimo economista inglês, a
opinião de que a população em geral devia ter acesso aos espectáculos ditos de
elite (ópera, bailado, etc.) e ambos trabalharam afincadamente para que parte
dos dinheiros públicos fosse alocada a uma política cultural. Não há pois
motivos para que as pessoas de direita que se incomodam com os apoios do Estado
aos criadores artísticos fiquem envergonhadas com o “pecado original”: é só
desviar as atenções de Malraux para Keynes – que nunca tendo sido esquerdista
se transformou em herói da esquerda –, e logo a vergonha se dissipa.
Os sinuosos caminhos das políticas
culturais: André Malraux em Washington a internacionalizar a cultura francesa
através de um quadro pintado por um artista florentino
Actualmente, e mantendo
como âncoras os dois países separados pelo Canal da Mancha, podemos identificar
duas formas distintas de abordar a política cultural: o modelo francês, mais
dirigista e estatizado e o modelo anglo-saxónico, menos intervencionista e mais
aberto ao mercado. Diria a lógica que, em cada realidade nacional, os partidos
de direita defenderiam o modelo anglo-saxónico e os partidos de esquerda o
francês, o que bate certo com a ênfase normalmente dada pelos primeiros à
preservação do património e com a defesa, pelos segundos, da importância do papel
do Estado no apoio à criação artística e literária. Vasco Pulido Valente, já
depois de ter sido secretário de Estado da Cultura no governo da AD, propôs,
numa crónica, aquela que passa por ser a “solução” da direita para a cultura: a
criação de um Ministério do Património Cultural e o afastamento do poder
político do financiamento directo das artes. Este afastamento seria materializado
na formação de um Conselho das Artes, uma instituição independente que beneficiaria
de uma verba anual atribuída pelo governo, a ser distribuída pelos artistas de
acordo com as conclusões do debate entre os próprios. A filosofia subjacente a
este financiamento indirecto é o horror à possibilidade de propaganda e
instrumentalização, e as considerações sobre a ilegitimidade dos políticos para
desempenharem, à maneira de Caio Mecenas, o papel de árbitros do gosto.
No entanto, apesar do
discurso, a inércia costuma impor-se confortavelmente às mudanças de ciclo
político. Em Portugal, por exemplo, independentemente das “transições rosa –
laranja”, o modelo em vigor tem sido o francês. E na hora de identificar o
maior admirador luso de Jack Lang, fica-se sempre na dúvida entre Manuel Maria
Carrilho e Pedro Santana Lopes.
Os governos de Cavaco
Silva são, aliás, excelentes casos de estudo sobre a impossibilidade de
encontrar um fio condutor coerente nesta matéria. Teresa Patrício Gouveia, a
primeira responsável pela pasta, dá mostras de uma certa tendência liberal promovendo
o financiamento privado (através de novas leis de mecenato cultural) e lançando
aquela que será, provavelmente, a primeira PPP do país – a Fundação de
Serralves (o Estado entrou com a Quinta e os parceiros privados, cerca de
cinquenta, entraram com 10 mil contos cada um). A seguir, de acordo com a
cândida confissão de Cavaco Silva na sua Autobiografia
Política, entra Pedro Santana Lopes, o segundo titular, com o objectivo de
dar mais visibilidade política à área e de facilitar ao próprio
primeiro-ministro “melhores condições para contactos com homens e mulheres das
letras, das artes e do espectáculo, que são positivos para a imagem”. Entusiasmado
pelos resultados alcançados, e talvez sem se aperceber do seu sentido
francamente problemático, Cavaco Silva acaba a elogiar a acção de Santana
Lopes, afirmando que ela contribuiu para a aproximação de vários artistas ao
universo social-democrata. Dificilmente alguém conseguirá explicar tão bem os
riscos da “política cultural” como o ex-primeiro-ministro o fez, talvez
inadvertidamente, nas suas memórias escritas.
O primeiro-ministro Cavaco Silva presta
homenagem à dramaturga Luzia Maria Martins no Teatro D. Maria II. Pedro Santana
Lopes, secretário de Estado da Cultura, aplaude
Em 1995, com a entrada em
funções de António Guterres, a cultura, com Carrilho à cabeça, ganha uma nova
visibilidade. Não foi a primeira vez que teve estatuto de ministério (Adérito
Sedas Nunes, no final dos anos 70, Francisco Lucas Pires, no início dos anos 80
e António Coimbra Martins, no governo do “bloco central”, foram ministros da
cultura), mas a verdade é que a personalidade de Manuel Maria Carrilho trazia
algo de diferente ao sector. A sua ambição, à semelhança de Malraux e Lang, era
colocar-se no centro da acção política, e embora não tivesse orçamento
suficiente para imitar a grandeur
francesa de De Gaulle e dos grands travaux
de Mitterrand, nunca deixou de o conseguir “esticar”, ano após ano, até atingir
verbas bastante acima da “normalidade” portuguesa.
Bibliothèque
nationale de France - site François-Mitterrand. Ao lado da remodelação do
Louvre (e respectiva pirâmide), da Ópera da Bastilha ou do Instituto do Mundo Árabe,
este é um dos grands travaux de
Mitterrand na área da cultura
De certa forma, vivemos
hoje, embora sem culpas do próprio, a ressaca desse período. É que o talentoso ministro-filósofo
“afrancesou” de tal forma a Ajuda até à viragem do milénio, que esta, com a
dieta orçamental a que foi sujeita desde então, mal consegue funcionar. O que
tem acontecido nos últimos anos em muito do património e equipamentos culturais
espalhados pelo país faz lembrar a anedota do homem que, por não ter dinheiro
para meter gasolina, nunca tira da garagem o carro de luxo que comprou (e, não
fora a explosão do turismo estrangeiro, a situação seria ainda pior!).
De acordo com uma das
frases mais partilhadas de sempre nas redes sociais, daquelas que são
atribuídas, erradamente, a uma dúzia de pessoas diferentes, um louco é aquele
indivíduo que espera resultados diferentes fazendo sempre tudo exatamente igual.
Em certo sentido, e sem querer ofender ninguém, a loucura tem caracterizado a
Ajuda do século XXI. Presos num modelo que não conseguem financiar, os sucessivos
responsáveis políticos da área vivem a angústia permanente de ver o Porsche na
garagem, incapazes, por um lado, de obter das Finanças mais dinheiro para a
gasolina e impedidos, por outro, de o trocar por um modelo mais barato e que
gaste menos. Por muitas manobras de distracção que António Costa faça, seja
concedendo dignidade ministerial ao sector (o secretário de Estado Jorge
Barreto Xavier, em 2015, teve direito a mais recursos financeiros do que o
ministro João Soares em 2016), seja incluindo o orçamento da RTP nas contas
para baralhar as comparações, seja invocando a “transversalidade” da cultura
para tentar inflacionar a soma com verbas de outros ministérios (verbas do
ensino artístico, por exemplo, que pertencem à Educação), a verdade é que a
arquitectura institucional projectada por Carrilho, para funcionar minimamente,
precisa de muito mais dinheiro, daí decorrendo que ou esse dinheiro existe ou então
talvez seja preferível alterar a arquitectura.
Por esta altura, muito
provavelmente, vários leitores estarão intrigados. Se nenhum dos titulares da pasta
era louco (muitos deles são, pelo contrário, brilhantes cabeças) e se o
dinheiro, de facto, não chegava à Ajuda, o que explica esta loucura de, ano
após ano, terem tentado fazer omeletas sem ovos? A resposta estará, certamente,
na dificuldade de alterar o modelo e nas inevitáveis “dores” que qualquer
mudança deste tipo implica. A filosofia anglo-saxónica, mais assente em
investimento privado e no mercado, exige públicos e mecenas, algo que uma boa “educação
para as artes” pode criar (diferente de educação artística, que pretende formar
artistas), mas não de um dia para o outro. Isso significaria que, durante a
transição, com o Estado a concentrar os seus poucos recursos na supracitada
“educação para as artes”, no património e nas instituições nacionais (Museus, Biblioteca
e Arquivos Nacionais, Cinemateca, C.N. de Bailado, Teatros Nacionais, etc.),
muitos agentes do sector se sentiriam abandonados e não deixariam de fazer
ouvir a sua voz. Não admira pois que os sucessivos governos, temendo a
confusão, optem por espalhar “migalhas” por muitos em vez de financiar
decentemente uns poucos. Só que essa opção acarreta, inevitavelmente, problemas
de qualidade e o definhamento de possíveis focos de excelência. E, sem eles, a
felicidade não regressará à cadeira do ministro da Cultura.
Sérgio
Barreto Costa
(texto
originalmente publicado no jornal Observador)
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