sábado, 12 de novembro de 2016

Lisboa, 1950.


 
 
 
 
 
Prossegue-se a transcrição parcial, iniciada aqui, de um brevíssimo trecho d’A Campanha do Argus, de Alan Villiers, o retrato da partida dos pescadores para os bancos da Terra Nova e da Gronelândia.
 
 
Bacalhoeiros fundeados no Tejo
1938



Uma centena de rapazes, graduados da Escola de Pescadores, de Lisboa, foi recrutada para a frota. Outros mais pequenos, da fragata-escola D. Fernando e de todas as escolas elementares de pesca, da costa ocidental e da Madeira e Açores, vieram ocupar os lugares de aqueles. Oficiais com o curso há pouco completado, a tinta dos diplomas ainda mal seca, apresentavam-se diariamente nos seus navios, onde lhes distribuíam imediatamente trabalho, às doze e quinze horas por dia, à maneira da pesca.
Como já vinha perto o começo da última semana de Março, tal actividade ainda aumentou. Entravam cada vez mais lugres e pequenos navios a motor: - a graciosa frota de Viana do Castelo, que inclui os dois navios-motores de 70 dóris, São Rui e Santa Maria Madalena, construídos experimentalmente em 1939, como uma resposta de Portugal à ameaça da pesca de arrasto, e ao mesmo tempo um marcado êxito, pois reuniam o melhor do sistema antigo ao melhor do moderno; o formoso lugre Hortense, que com o Santa Isabel eram talvez os mais bonitos de todos; lugres de quatro mastros dos famosos estaleiros dos Mónicas, na Gafanha, perto de Aveiro, em cujos cascos perfeitos se verificavam flagrantes reminiscências das caravelas; e, com todos estes, um ou dois navios da velha guarda, ainda robustos e aptos para se fazerem ao mar.
Sobressaindo entre esses veteranos, via-se o único navio redondo, o encantador Gazela. Era um lugre com uma proa de «clipper» e uma linha admirável desde a carranca esculpida do beque até ao painel da popa. Em 1950, realizava-se a quinquagésima campanha transatlântica de pesca. Ia aos bancos desde 1900 e à Gronelândia desde 1931; nos primeiros dezassete anos de vida, antes de 1900, fora um vulgar barco de carga de longo curso. Agora, comandava-o um rapaz de 24 anos, alegre e simpático, oriundo da vila de capitães, de Ílhavo, um produto do novo Portugal marinheiro, com altas classificações no liceu e na escola náutica, além de um cruzeiro no navio-escola Sagres. Fizera apenas quatro viagens aos bancos, mas descendia de uma velha família de lugres e patachos, do Grande Banco. Tivera ocasião de fazer valer as suas aptidões um ou dois anos antes, quando pudera substituir o capitão do seu navio, o Creoula, que adoecera gravemente.
Eu já ouvira falar daqueles capitães de Ílhavo e da sua longa tradição de viagens aos bancos. Ílhavo já mandava capitães e marinheiros para o Grande Banco, mesmo antes da ilha da Terra Nova receber o seu nome actual. Comandar um patacho ou um lugre, ou um desses navios-motores da pesca à linha, para uma viagem de seis meses aos bancos e à Groenlândia, era coisa que qualquer dos seus homens do mar podia fazer naturalmente.
Na manhã de domingo, 26 de Março, a frota de Lisboa encontrava-se reunida. Uns trinta barcos, dos quarenta e cinco navios de pesca à linha que tomavam parte na campanha de 1950, viam-se no Tejo, todos alegremente embandeirados em arco e com os convés repletos de pescadores. Estes tinham chegado nos comboios da noite da Fuzeta e da Póvoa, Porto e Figueira da Foz, e, também em autocarros, vindos de umas cinquenta aldeolas costeiras. As mulheres, sabendo próximo o dia da partida, tinham consigo os filhos, e estes, sentindo a tensão nervosa ligada a todas as partidas, mostravam-se desinquietos, embora lhes agradasse correr pelo convés dos navios e brincar no aparelho.
Naquele domingo, já com a frota no devido fundeadouro, junto de Belém, celebrou-se a cerimónia especial da bênção no templo dos Jerónimos onde jazem os restos do ilustre Gama e do poeta Camões, em túmulos de pedra marcados com os seus nomes, em frente um do outro, no extremo ocidental do mosteiro. Neste monumental recinto comprimiam-se os pescadores – os pescadores, os capitães, imediatos, pilotos, mestres, os cozinheiros, as esposas e os filhos; com eles, dignitários da Igreja e do Estado, ministros, almirantes, directores do Grémio dos Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau e os organismos a eles ligados; o comandante Henrique Tenreiro, o delegado do Governo junto do Grémio; o comandante Tavares de Almeida, da armada portuguesa, que exerce as funções de capitão do porto, no Estreito de Davis e nos bancos, para os barcos portugueses; o capitão do Gil Eanes, o navio-hospital e de assistência, com os seus oficiais e médicos; os rapazinhos da fragata D. Fernando e Glória (cujo majestoso casco de velha teca avultava à testa da linha dos navios, no rio, como um enorme cisne negro conduzindo um bando de graciosos gansos) e a Escola de Pescadores; contingentes, em grande uniforme, da armada, exército e marinha mercante; o capitão, oficiais e tripulação da fragata francesa L’Aventure, que vieram numa visita de cortesia a Lisboa, antes de largar para os bancos a fim de apoiar os arrastões franceses ali pescando, e, com todos estes, diversas agremiações e muitos civis e estrangeiros. Lisboa quis que os seus pescadores soubessem que os votos da cidade iam com eles, juntos com a bênção da Igreja.
 Mas aquele era, antes de mais nada, o dia do pescador. Uma centena deles, envergando as vistosas camisas aos quadrados, as calças listradas e as grandes botas de borracha, conservava-se de pé, em duas filas compactas, que atravessavam a rua, esperando a chegada dos dignitários. Olhavam a pompa, os ornamentos e os galões doirados e o incidental encanto feminino, mas viam também já as águas distantes, eternamente agitadas, torturadas pelos ventos, acossadas pelos gelos flutuantes, onde todos, muito em breve, se juntariam para ganhar arduamente a vida nos seus minúsculos dóris. Podiam avistar dali os mastros e as bandeiras dos seus navios, além no rio, em frente da porta do templo, e já de leste soprava o vento, que os levaria para o mar. A própria igreja lhes fazia lembrar os navios, porque fora construída como o casco invertido de uma grande nau, tendo por motivos muitos sinais da sua profissão de mareantes.
Dentro, a igreja, repleta de gente, estava toda enfeitada de flores, que também graciosamente enchiam o altar-mor, onde ardiam velas. A bênção era dada por Sua Exª o arcebispo de Mitilene, D. Manuel Trindade Salgueiro, ele próprio filho de um pescador de Ílhavo, morto no mar e cuja família era bem conhecida de muitos capitães e pescadores ali presentes. Depois da missa, falou aos pescadores, para os quais pediu em palavras simples a protecção de Deus. Não necessitava de lembrar-lhes que poderia estar a falar a homens, que sabiam o verdadeiro significado do dever, para com Deus, para com a nação, para com a família e para com o seu navio. Seguiriam viagem sob os olhos do Senhor e a Ele os confiava, bem como as suas famílias: a todos desejava uma viagem próspera e segura, e um pronto regresso. Falou em tom sereno, mas as palavras ouviam-se nitidamente por todo o vasto templo, onde se apinhavam alguns milhares de pessoas. Terminado o sermão e a cerimónia, o prelado seguiu, em solene procissão, até à porta principal, abrindo o majestoso cortejo um pescador com uma cruz de flores. Na avenida para lá da porta, o bispo deu a bênção aos navios. De manhã, chovera um pouco, mas agora o sol brilhava numa luminosidade primaveril e as vetustas pedras acinzentadas dos Jerónimos pareciam tocadas duma quente emoção, enquanto o vento de leste suspirava brandamente no aparelho dos navios.
Dessa forma, findou a cerimónia e dispersou-se a multidão. Dois pescadores foram levar um lindo ramo de flores ao Presidente do Conselho, Dr. Salazar, apresentando-lhe os cumprimentos dos seus camaradas de todos os lugres. E, naquela tarde, o espectáculo, no cais de Belém, foi animado por um contínuo vaivém de dóris, entre os navios brancos e embandeirados e o cais de Belém, e por uma regata de barquitos dos clubes náuticos, de velas coloridas, singrando por entre a frota e lutando com a corrente rápida do Tejo. Nos dóris, distinguiam-se mulheres e crianças, algumas transportando para terra pequenos volumes de mão. Pelos degraus de pedra, junto da estação dos vapores, de onde os dóris partiam e chegavam, passava uma corrente constante de pescadores. Muitos deles levavam, numa mão, um garrafão de bom tamanho e, na outra, um búzio. O garrafão, percebi logo que, segundo o costume, representava um presente da família e continha uma boa pinga para os dias de festa e para as ocasiões especiais. Como também levava, às vezes, óleo fervido para untar as roupas de oleado. Mas os búzios – para que seriam?
 
Alan Villiers

 

3 comentários:

  1. Talvez conheça, são dois documentarios sobre a pesca do bacalhau na terra nova
    https://www.youtube.com/watch?v=-zpMPmhPdWI
    https://www.youtube.com/watch?v=R4ivTjzhM5Q

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    1. Andava à procura disso (lembrava-me de ter visto um documentário a preto e branco sobre este assunto que me tinha impressionado muito).
      Obrigado pela partilha.

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    2. Obrigado, também andava à procura deles!

      Cordialmente

      António Araújo

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