terça-feira, 9 de janeiro de 2018






 
impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !



 

# 1 - LOUIS ARMSTRONG

 

 

Poucos dias depois de ter chegado, na primeira carta despachada para casa, Louis Armstrong, que nunca medira cidade tão grande e tão a norte como Chicago, escreve a tranquilizar e embevecer a mãe: por cá tudo bem, até tenho uma casa de banho dentro do apartamento.
Desde logo ficava para trás o rapazito pé descalço que de fliscorne de latão em punho calcorreava as ruas de Nova Orleães disposto a qualquer serviço, fosse animar missa ou funeral, excitar baile ou bordel. Em boa verdade, a contar de 1917 Louis Armstrong já era mais do que um músico de rua a ver se escapava à extrema má-sorte em que nascera e fora criado. Apadrinhado por King Oliver e por Kid Ory, as prominências musicais de Nova Orleães, o púbere Armstrong tinha emprego regular e nessa data tomou a cadeira de Oliver na banda de Ory, quando aquele abalou para Chicago.
Pouco antes da meia-noite do dia 8 de Julho de 1922, Louis Armstrong desembarca de armas e bagagens Na Illinois Central Station de Chicago. Era sábado e a essa hora já King Oliver, que o havia instigado a vir, rugia com a sua Creole Jazz Band nos Lincoln Gardens açulando o frenesi dos pares dançantes.
          Do jovem nessa noite desamparado, atarantado e ofuscado com as luzes da cidade, ao númen que viria a fundar na trompete, no jazz, provavelmente na música do séc. XX em geral, mas de certeza na americana em particular, uma transfiguração fundamental e definitiva, equivalente à Revolução Coperniciana, foi o lapso de um triénio. Algum tempo se manteve Armstrong a tirocinar com Oliver, resistindo à tentação de rescindir com o mestre a quem era fiel, apesar de se tornar óbvio que o superara. O ano de 1924 despendeu-o na orquestra de Fletcher Henderson em Nova Iorque. Se tivessem sido menos pedantes, em vez de zombarem das poucas letras – é certo que lia as partituras por alto – e da singeleza daquele pacóvio, os aperaltados colegas da banda teriam aprendido com Louis Armstrong a desenvencilharem-se da frivolidade e das habilidades ornamentais que entravavam a sua música. Só Coleman Hawkins entendeu a reformulação preconizada pelo trompetista e, assimilando-a, com ela preludiou a era do swing.
De regresso a penates, entre 1925 e 1928 ora com os Hot Five ora com os Hot Seven, Louis Armstrong confia-se a uma pura exultação musical sem a sisudez ou a reserva mental do experimentalista. E neste jeito de recreio, além de ter arrebatado do trompete uma miríade de acordes inusitados que remodelaram a morfologia e a semântica do jazz, revolucionou-lhe a sintaxe, com um fraseado estonteante em fantasia e fenomenal em fecundidade.
Ainda que então já se denominasse de jazz ao género musical nativo, idiossincrático e pitoresco de Nova Orleães – cuja primeva autenticidade os puristas de hoje preservariam escandalizadamente de qualquer contaminação – doravante o jazz passaria a ser a música que Armstrong recriou sobre esse material orgânico donde proviera e em que crescera. Dele dispôs do trepidante ritmo sincopado e do alacre contraponto entre clarinete, trombone e trompete para lhe modificar toda a dinâmica, sobretudo com a introdução do solo, momento épico em que o protagonista joga a sua reputação, lançando no compasso de uns minutos os dados do seu engenho e da sua originalidade. Se as gravações deste período são, uma por uma, deslumbrantes, temas como “Potato Head Blues”, “Struttin’ With Some Barbecue”, “Hotter Than That” ou “Muskrat Ramble”, nos quais Armstrong exibe inventividade mais brilhante e veloz do que a luz, hão-se de ser tomados como expoentes do modernismo, equiparáveis aos coevos filmes de Dziga Vertov, ao surrealismo de Breton ou às telas de Picasso.
 
 



The Complete Hot Fives and Hot Sevens Recordings
1925-1929 (2000)
Columbia Records
Louis Armstrong (fliscorne, trompete), Kid Ory, Henry Clark (trombone), Johnny Dodds (clarinete), Pete Briggs (Tuba), Joe Walker, Albert Washington (saxofones), Lil Hardin Armstrong, Earl Hines, Hersal Thomas (piano), Johnny St. Cyr (banjo), Lonnie Johnson (guitarra), Baby Dodds (bateria)
 
Mas se o solo e a nova ordem harmónica que ele acarreta são um génesis, não menos o será a desconcertante forma de canto que Armstrong concebeu. Reza a lenda – tão plausível que deve ser falsa – que durante a gravação de “Heebies Jeebies” escorregou do escaparate a folha com a letra da canção e Armstrong, em vez de interromper, deu em debitar sílabas e ditongos sem qualquer significado coerente que não o de acompanhar a melodia – e assim nasceu o scat. Esta voz roufenha, agreste e áspera, sem temor ao grotesco e ao bárbaro, nos antípodas do bel canto lírico bastante meloso que à época predominava – Caruso era o modelo –, uns acharam-na horripilante, mas a falange de vanguardistas adoptou-a sem rebuço como o cântico dos novos tempos. Corria a anedota que putativos cantores expunham o pescoço aos ventos gélidos do Inverno de Chicago para conseguirem a rouquidão de Armstrong.
Se mérito não faltou a Louis Armstrong também a sorte se atravessou por ele. Os seus progressos e explorações deflagraram no epicentro de um vórtice revolteado pela coincidência de três irresistíveis fenómenos sociais: as emissões de rádio e a indústria fonográfica (ver radiofonia e fonografia) invadiam e conquistavam os lares americanos desde 1924, enquanto, a partir de 1920, a Lei Seca trazia as pessoas para fora deles, sequiosa de animação que sacudisse o puritanismo vigente. Neste big bang que deu origem à indústria do entretenimento, a música foi a matéria e o jazz o seu átomo. E jazz era sinónimo de Louis Armstrong.
De repente, um negro provindo das berças, alcandorava-se ao status de vedeta nacional desde Chicago. O que é uma revolução se não for isto uma revolução?
 

 
José Navarro de Andrade
 
 

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