impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e
vencer os cépticos !
# 1 - LOUIS ARMSTRONG
Poucos dias
depois de ter chegado, na primeira carta despachada para casa, Louis Armstrong,
que nunca medira cidade tão grande e tão a norte como Chicago, escreve a
tranquilizar e embevecer a mãe: por cá tudo bem, até tenho uma casa de banho
dentro do apartamento.
Desde
logo ficava para trás o rapazito pé descalço que de fliscorne de latão em punho
calcorreava as ruas de Nova Orleães disposto a qualquer serviço, fosse animar
missa ou funeral, excitar baile ou bordel. Em boa verdade, a contar de 1917
Louis Armstrong já era mais do que um músico de rua a ver se escapava à extrema
má-sorte em que nascera e fora criado. Apadrinhado por King Oliver e por Kid
Ory, as prominências musicais de Nova Orleães, o púbere Armstrong tinha emprego
regular e nessa data tomou a cadeira de Oliver na banda de Ory, quando aquele
abalou para Chicago.
Pouco
antes da meia-noite do dia 8 de Julho de 1922, Louis Armstrong desembarca de
armas e bagagens Na Illinois Central Station de Chicago. Era sábado e a essa
hora já King Oliver, que o havia instigado a vir, rugia com a sua Creole Jazz
Band nos Lincoln Gardens açulando o frenesi dos pares dançantes.
Do jovem nessa
noite desamparado, atarantado e ofuscado com as luzes da cidade, ao númen que
viria a fundar na trompete, no jazz, provavelmente na música do séc. XX em
geral, mas de certeza na americana em particular, uma transfiguração
fundamental e definitiva, equivalente à Revolução Coperniciana, foi o lapso de
um triénio. Algum tempo se manteve Armstrong a tirocinar com Oliver, resistindo
à tentação de rescindir com o mestre a quem era fiel, apesar de se tornar óbvio
que o superara. O ano de 1924 despendeu-o na orquestra de Fletcher Henderson em
Nova Iorque. Se tivessem sido menos pedantes, em vez de zombarem das poucas
letras – é certo que lia as partituras por alto – e da singeleza daquele
pacóvio, os aperaltados colegas da banda teriam aprendido com Louis Armstrong a
desenvencilharem-se da frivolidade e das habilidades ornamentais que entravavam
a sua música. Só Coleman Hawkins entendeu a reformulação preconizada pelo
trompetista e, assimilando-a, com ela preludiou a era do swing.
De
regresso a penates, entre 1925 e 1928 ora com os Hot Five ora com os Hot Seven,
Louis Armstrong confia-se a uma pura exultação musical sem a sisudez ou a
reserva mental do experimentalista. E neste jeito de recreio, além de ter
arrebatado do trompete uma miríade de acordes inusitados que remodelaram a morfologia
e a semântica do jazz, revolucionou-lhe a sintaxe, com um fraseado estonteante
em fantasia e fenomenal em fecundidade.
Ainda
que então já se denominasse de jazz ao género musical nativo, idiossincrático e
pitoresco de Nova Orleães – cuja primeva autenticidade os puristas de hoje
preservariam escandalizadamente de qualquer contaminação – doravante o jazz
passaria a ser a música que Armstrong recriou sobre esse material orgânico
donde proviera e em que crescera. Dele dispôs do trepidante ritmo sincopado e
do alacre contraponto entre clarinete, trombone e trompete para lhe modificar
toda a dinâmica, sobretudo com a introdução do solo, momento épico em que o
protagonista joga a sua reputação, lançando no compasso de uns minutos os dados
do seu engenho e da sua originalidade. Se as gravações deste período são, uma
por uma, deslumbrantes, temas como “Potato Head Blues”, “Struttin’ With Some
Barbecue”, “Hotter Than That” ou “Muskrat Ramble”, nos quais Armstrong exibe
inventividade mais brilhante e veloz do que a luz, hão-se de ser tomados como
expoentes do modernismo, equiparáveis aos coevos filmes de Dziga Vertov, ao
surrealismo de Breton ou às telas de Picasso.
The
Complete Hot Fives and Hot Sevens Recordings
1925-1929 (2000)
Columbia Records
Louis Armstrong (fliscorne, trompete), Kid Ory, Henry
Clark (trombone), Johnny Dodds (clarinete), Pete Briggs (Tuba), Joe Walker, Albert
Washington (saxofones), Lil Hardin Armstrong, Earl Hines, Hersal Thomas (piano),
Johnny St. Cyr (banjo), Lonnie Johnson (guitarra), Baby Dodds (bateria)
Mas
se o solo e a nova ordem harmónica que ele acarreta são um génesis, não menos o
será a desconcertante forma de canto que Armstrong concebeu. Reza a lenda – tão
plausível que deve ser falsa – que durante a gravação de “Heebies Jeebies”
escorregou do escaparate a folha com a letra da canção e Armstrong, em vez de
interromper, deu em debitar sílabas e ditongos sem qualquer significado
coerente que não o de acompanhar a melodia – e assim nasceu o scat. Esta voz
roufenha, agreste e áspera, sem temor ao grotesco e ao bárbaro, nos antípodas
do bel canto lírico bastante meloso que à época predominava – Caruso era o
modelo –, uns acharam-na horripilante, mas a falange de vanguardistas adoptou-a
sem rebuço como o cântico dos novos tempos. Corria a anedota que putativos
cantores expunham o pescoço aos ventos gélidos do Inverno de Chicago para
conseguirem a rouquidão de Armstrong.
Se
mérito não faltou a Louis Armstrong também a sorte se atravessou por ele. Os
seus progressos e explorações deflagraram no epicentro de um vórtice revolteado
pela coincidência de três irresistíveis fenómenos sociais: as emissões de rádio
e a indústria fonográfica (ver radiofonia e fonografia) invadiam e conquistavam
os lares americanos desde 1924, enquanto, a partir de 1920, a Lei Seca trazia
as pessoas para fora deles, sequiosa de animação que sacudisse o puritanismo
vigente. Neste big bang que deu origem à indústria do entretenimento, a música
foi a matéria e o jazz o seu átomo. E jazz era sinónimo de Louis Armstrong.
De
repente, um negro provindo das berças, alcandorava-se ao status de vedeta
nacional desde Chicago. O que é uma revolução se não for isto uma revolução?
José Navarro de Andrade
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