“Vamos fazer nove horas de carro
para ir a um cemitério, tens noção.” Vamos, mas de passagem temos 2
cidades, 2 castelos, 1 salina e 8 igrejas. “Não dá para tudo. Temos de
escolher.”
De Bucareste ao Merry Cemetery (já
lá chegamos, daqui a 9 horas e 24 minutos ou 583km), quase ali na fronteira com
a Ucrânia, há um cemitério que é um "feito humano incrível". De
caminho há realmente muito para ver, e o programa revela-se "tens
razão", demasiado optimista, apesar de os dias serem mais do que o
habitual. Ao todo, 11 dias. Para dedicar ao norte da Roménia e voltar, 6. No
caminho, em Constanța, o Mar Negro está azul, na cidade Brasov, o mítico
Castelo de Bran, do séc. XIII, o “do Drácula”, aguardará pelo nosso regresso,
também o Castelo de Pelles, bem como Sighişoara, uma das cidades mais medievais
da medievalidade (ou medi-evil-idade), pensando no “aqui nasceu” Vlad
Tepes, mais conhecido pelo Empalador, filho de Vlad II Dracul (parêntesis
aberto para dizer que Vlad era chamado de Draculea, que significa “filho
do Dragão”, ordem a que pertencia o pai. Dracul, do latim draco,
significa diabo em romeno, mais do que justificadamente se analisadas as
formas de tortura inventadas por Vlad Tepes ao longo da sua vida: foram 45
anos, sendo que aos 17 já tinha domínio sobre terras da Valáquia).
Entre a Transilvânia e a região mais
a norte, de Maramures, um rewind aos anos 80 do interior de Portugal,
sem tantas rotundas e quase nenhum multibanco, casas à beira da estrada mas com
porta sempre na lateral, mulheres de lenço à cabeça, igrejas pontiagudas aos
pares, muitas passagens de nível e cavalos vestidos com muito nível também (com
mantas bordadas, que belos casacos dariam ou não me chamasse Graça Maria).
A expectativa estava posta em
Bârsana, Budești, Desești, Ieud, Plopiș, Poienile Izei, Rogoz e Șurdești,
igrejas património da Unesco. E não, quem vê uma não vê todas. De madeira por
fora, altas, elegantes, entramos em Bârsana como quem visita uma igreja pela
primeira vez. Por fora, de cor e materiais quase estranhos para a região
(pareciam colmo ao longe).
Por dentro, um rés-do-chão onde o
dourado ortodoxo não teve mãos artísticas a medir; uma surpresa no segundo
andar, onde as portas são mantidas fechadas para protecção das cores. Aqui, os
ocres-terra substituem os dourados, e é muito difícil manter a visão sossegada,
tal é a incredulidade do traço, da profusão quase em estilo banda desenhada,
das histórias que avançam e recuam. Esta data de 1720 e a Unesco escreve o
seguinte "Estas oito igrejas são exemplos notáveis de uma variedade de
soluções arquitectónicas de diferentes períodos e áreas. Mostram a variedade de
“design and craftsmanship” adoptados nestas construções de madeira estreitas e
altas, com as suas torres de relógio finas, simples ou duplas, e cobertas de
telha, na extremidade ocidental da construção. Como tal, elas são uma expressão
particular da paisagem cultural desta região montanhosa do norte da Roménia.” Soa-me
a arrepio de ridículo tudo o que possa dizer sobre isto.
Temos hora e meia antes do sol se
pôr. O Cimitirului Vesel (Cemitério Alegre) era ainda uma descrição meio
surreal acompanhada por algumas fotos tripadviserianas vistas com pouca rede.
Porém, mesmo ao longe e com miopia, indesmentível o “Merry”. Vou passar aos
factos para não tornar a história num Centrum de adjectivos. Săpânţa é
uma terra com cerca de 3500 almas, 10 das quais morrem por ano. Neste cemitério
onde quem partiu "fala" na primeira pessoa, as
lápides representam a vida, contam a história através de imagens coloridas e
frases poéticas, francas ou bem- humoradas, que quem canta, seus males
Săpânţa. Tudo começou assim: morre alguém e
comenta-se o falecido nas suas virtudes ou excessos. Em 1935, o senhor Stan
Ioan Patras lembrou-se de “passar a limpo” o que ouvia, unindo a arte de
esculpir e pintar madeira ao talento de versejar, fazendo perdurar uma imagem
do falecido (e ao mesmo tempo, a madeira era uma forma alternativa à
fotografia, para quem não tinha possibilidades de a ela recorrer). Ao longo de
sua vida, fez o “happytáfio” de muitas centenas de habitantes de
Săpânţa, com pedidos das famílias para que descrevesse o que o parente querido
fazia em vida ou quais as circunstâncias da sua morte. O Sr. Patras não
recebeu, li, queixas dos familiares sobre uma papada mais acentuada ou um olho
mais olheirento, mas havia que caprichar, isso sim, nos versos, que a vida
do meu ente não pode ser igual à do teu.
Patras morreu em 1977 (não sem ter
feito antes a sua própria cruz). O testemunho passou para Dumitru Pop que, pelo
menos até ontem, continua a tradição. Digo “até ontem” porque ainda ontem
entrei em contacto com ele.
Esta homenagem
prestada a cada habitante concretiza-se apenas aqui (não passou para o resto do
país). Tudo é, aparentemente, até onde fui capaz de perceber, encomendado: das
cores, o fundo azul brilhante, o “Săpânţa bleu” quer dizer a esperança e a liberdade que se funde com o céu; o
preto indicia uma morte inesperada; uma cruz com maior predominância de
vermelho diz-nos que aquela pessoa tinha paixão pela vida; amarelo indica que
há muita descendência. Ainda estou a apurar estes significados e quando tiver
novidades coloridas, actualizo (aguardo três livros sobre o tema). A parte dos
versos estava igualmente a causar grande curiosidade. O que se dirá sobre
aquele pastor, aquela professora, o homem que morreu com tiros de espingarda, o
mecânico (ou talvez um acidente de carro?), a padeira e a tecelã?
Há palavras que são
primas afastadas da nossa língua, outras do italiano e do francês. O sol
põe-se, e o cemitério de Săpânţa, tal como as
estradas que nos conduziram até lá, não tem luz artificial, mas venho radiante,
sensação estranha para quem sai de um cemitério.
A própria igreja é
azul, azul que vai sendo retocado para não deixar nunca de se fundir com o céu.
Para que não deixemos nunca de olhar o céu.
Graça Maria Martins
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