La
Volta Pinta é… um descarado copianço do livrinho-guia La Volta Pinta, de Ezio Genovesi, que passo a transcrever: La Volta
Pinta é uma arcada situada em Assis, tendo por cima dela o antigo Palácio do
Governador (portanto, de Assis) e tendo por defronte o antigo Templo de
Minerva, que agora é uma igreja, como quase tudo quanto há em Assis, com
algumas excepções. Entre essas algumas excepções, La Volta Pinta, que é uma
obra laica – e até lasciva, fazei atenção. O interesse deste túnel são os graffiti quinhentistas ou, como diz o
guia, la decorazione pittorica a
grottesche eseguita nel 1556. Quem terá eseguitado essa decoração pictórica
e grotesca pode muito bem ter sido Raffaellino del Cole, que por aquela altura
andava a laborar ao fresco na Catedral de São Rufino, ou seja, nas imediações.
Há notícia de que a 21 de Agosto de 1556 terão pagado a um tal de «Raphael
pictor» pelo trabalho de La Volta Pinta, que, sendo um belo trabalho pictórico
e grotesco, tem rivais ganhadores noutras partes de Itália, com destaque para o
Vaticano, mas aí o autor da obra foi, dizem, o verdadeiro Rafael, e não este
Raffaellino piccolino que, bem vistas as coisas, terá seguido muito de perto,
quase tão de perto como eu estou aqui seguir o livrinho-guia da Editrice
Minerva (2015), uma refinadíssima colecção de estampas dada à estampa em 1540 e
que se chama Leviores et (ut videtur) extemporaneae
picturae quas grotteschas vulgo vogant, da autoria de Enea Vico, o qual,
segundo parece (e isto da cultura ocidental é copianço atrás de copianço), se
terá inspirado à farta nos murais descobertos da Roma antiga. No catálogo do
British Museum – e isto já sou eu aqui a falar da minha lavra – podemos encontrar o Leviores etc, etc.,
ainda que a datação seja de 1544 ou anos posteriores e não 1540, como afirma o livrinho-guia
que estou para aqui a transcrever-vos. A propósito, há álbuns lindos de luxo sobre
La Volta Pinta, em formato tábua de café book, mas são caros de morrer. Já as imagens
que divulgo no Malomil são uma desgraça e peço perdão por isso, mas a luz não
estava boa, pelo que não conseguireis penetrar à séria no festim pictórico
daquela gruta leiga, onde há muita mas mesmo muita figura mitológica tirada das
Metamorfoses de Ovídio (o eterno
copianço e inspiranço cultural ocidental), a par de coisas desconcertantes e
opulentas em modo Gianni Versace século XVI: um carro puxado por tartarugas, um
mocho olheirento, dois perus de costas voltadas um para o outro, uma quadriga a
despenhar-se dos céus, com cavalos em queda e tudo, os travessos Dédalo e
Ícaro, uma cabeça leonina e, apontamento erótico inusitado na terra de Assis do
Santo, figuras femininas desnudas a assediar-nos a vista. Há também um par de
leões a subir escadas e umas máscaras teatrais para personas dadas a
tragicomédias. Os delicados ornatos, em filamentos florais quase
imperceptíveis, estão lá para adensar o nonsense
dos jogos e reviravoltas em que La Volta Spinta é fértil, com sátiros
inesperados que nos afluem ao olhar de espanto, macacos lúbricos (ou somos nós
a julgar que são lúbricos), pedras de armas e homenagens escritas aos patronos
e mecenas desta macacada toda, para a qual podíamos estar dias e dias a olhar, de
livrinho-guia na mão, descobrindo sempre pormenores novos e imprevistos. Não há
tempo para isso, pois a vida é uma lufa-lufa, mas La Volta Pinta está lá há
muitos séculos graças a Deus e deu tantas alegrias a tanta gente, cuja maior
parte até já faleceu. Mas fica o pensamento: em que pensava essa gente quando
saía de uma igreja – por exemplo, de Santa Maria sopra Minerva que, como o nome
indica, assentou arraiais no antigo templo de Minerva, e fica mesmo em frente ao arco
fantástico, na Piazza del Comune –, em que pensava essa gente, dizia eu, quando
saía de uma igreja, depois de fazer as suas orações e penitências, e deparava
com aquele bacanal pegado de sátiros atrevidos, mulheres em pêlo com cenário
silvestre, passarada canora e sonora e faunos pelos bosques? E qual o propósito das
autoridades, inclusive eclesiásticas e até vaticanas, ao encomendarem obras
como esta? Há ainda uma janela que, ao ser rasgada, fez perder uma parede de
frescos. Mas o mistério maior, quanto a mim, é o facto de, dizem os entendidos,
a parcela mais enigmática da La Volta Pinta ser aquela que pictórica e
cromaticamente se apresenta mais desinteressante à nossa vista. Devem ir à
Internet ver La Volta Pinta como merece, já que as imagens supra dão tão-só uma
pálida e desfocada imagem do que é aquela maravilha, que fica em Assis, a poucos passos doutro lugar de arromba, a histórica Libreria Zubboli, onde se compram o guia que
acabo de parafrasear à bruta, álbuns de luxo sobre La Volta Pinta e demais obras
devocionais.
António Araújo, que não foi autor destas fotografias que seguem:
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