segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

A amante holandesa de Giacomo Casanova.

 
 
Jean-Baptiste Oudry, Clara, Paris, 1749
 
 
Approach thou like the rugged Russian bear, The arm'd rhinoceros, or th'Hyrcan tiger – há uma referência a um rinoceronte em Shakespeare, na 4ª cena do 3º acto de Macbeth, traduzida entre nós pelo Dr. Domingos Ramos (Porto, 1925) da seguinte forma: Ousarei o que um homem pode ousar! Aproxima-te eriçado como um urso da Rússia; armado como um rinoceronte ou como um tigre da Hircânia!
 
Há muitas presenças literárias de rinocerontes, da Bíblia a Ionesco. O que a fala de Macbeth tem de intrigante é que a peça, como é sabido, foi escrita entre 1603 e 1607, numa altura em que, ao que consta, não andaram rinocerontes pela Europa, após a entrada triunfal da Ganda de Modofar em 1515 e da Abada castelhana de 1581. Afirma-se, creio que sem bases sólidas, que Shakespeare, ao falar de um «rinoceronte armado», se inspirou na gravura de Dürer, que teve grande projecção na época e que durante séculos e séculos fixou ao rinoceronte uma couraça de pele em tudo semelhante às armaduras dos cavaleiros.
 
Diferente, bem diferente, é a saborosíssima memória de Casanova, na Paris de Luís XV, quando a instâncias de uma marquesa vão ver um rinoceronte à Feira de St. Germain. As memórias de Casanova, como sabem, foram primorosamente traduzidas por Pedro Tamen, mas para esta transcrição baseio-me na tradução de Luísa Lemos:
 
Fala-se, depois do jantar, do rinoceronte que se mostra, a vinte e quatro soldos por cabeça, na Feira de St. Germain. Vamos vê-lo. Subimos para uma carruagem, descemos na feira, damos várias voltas à procura do rinoceronte. Era o único homem, dava os braços às duas damas, a espirituosa marquesa caminhava à nossa frente. No fundo da álea onde nos haviam dito que o animal se encontrava, encontrámos o seu dono sentado à porta, para receber o dinheiro dos que queriam entrar. Era um homem vestido à africana, escuro, enorme, e que parecia um monstro; mas a marquesa deveria pelo menos reconhecê-lo como um homem. Falso.
 - É o senhor, o rinoceronte?
- Entre, minha senhora, entre.
Contemos o riso e ela, vendo o verdadeiro rinoceronte, acha-se obrigada a pedir desculpa ao africano, assegurando-lhe que nunca vira um rinoceronte e que por conseguinte não se deveria ofender com o seu engano.
 
(Casanova, Um Veneziano em Paris, trad. portuguesa de Luísa Lemos, Lisboa, Editorial Estampa, 1972, pp, 53-54).  
 
A confusão entre um africano e um rinoceronte é algo que daria azo a muitas e muitas linhas sobre racismo, etc., etc. Mas, por ora, o ponto é o rinoceronte. E o rinoceronte de Casanova, ao contrário de algumas das aventuras que conta, existiu mesmo. O seu dono não era africano, mas holandês, e o animal era uma fêmea e chamava-se Clara.
 
Como nota Kelly Enright numa pequena mas muito informada monografia sobre o rinoceronte (Rhinoceros, Reaktion Books, 2008, pp. 36ss), Clara, a «rinoceronte holandesa», foi importantíssima para a imagem deste animal no Ocidente, muito maculada pelo belicismo da gravura de Dürer, pela ferocidade real da Abada castelhana, pelo velho mito, já difundido por Plínio, de que o rinoceronte era inimigo figadal do elefante, o mito que levou Dom Manuel a promover o célebre combate à beira-Tejo, em 1515.

 
Pela sua docilidade extrema – diziam que era «gentil como uma pomba» –, que muito deve ao facto de ter sido criada desde muito nova pelo seu tratador, o holandês Douwemout van der Meer, e, bem assim, por este último a ter levado num grand tour pelas grandes capitais europeias, Clara tornou-se um ícone cultural da sua época, cuja imagem foi vertida em centenas de objectos e artefactos e deu ensejo até a uma efémera moda parisiense de um penteado «à rinoceronte». É Clara que aparece em Veneza, durante o Carnaval, e que aí foi retratada por Pietro Longhi. É por isso que os que a observam na bancada estão vestidos em trajes carnavalescos – não se vestiram assim de propósito para ver o rinoceronte, como desastradamente sugere Kelly Enright na monografia atrás citada (a qual, apesar de geralmente rigorosa, falar do rei Filipe II… de Portugal). Note-se que, em dois óleos de Longhi, ambos pintados em 1751, Clara aparece sem o seu corno, um detalhe intrigante. 
 
 


 

 
 
 
Não vamos reproduzir aqui, pelo menos hoje, a abundantíssima iconografia que Clara suscitou por toda a Europa. Veja-se, em todo o caso, este retrato de Maria Luisa de Bourbon-Parma (1751-1819), actualmente conservado no Palácio Pitti, Florença, ou um outro, da mesma senhora, que foi rainha de Espanha, e também pintado por Laurent Pécheux, depositado no Metropolitan Museum, em Nova Iorque.
 


Laurent Pécheux, Retrato de Maria Luisa di Borbone-Parma, s.d.
(Palácio Pitti, Florença)
 
Laurent Pécheux, Retrato de Maria Luisa di Borbone-Parma,  1765
(Met, Nova Iorque)
 
 
 
  Em ambas as telas, Clara lá aparece, disfarçada de relógio de mesa…
 
 

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