segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

A Dama de Elche e as restituições selectivas.

 
 
 
 
Sempre que estou em Madrid e posso, vou ver a Dama de Elche (e a sua formiga!). Por se conservar bonita e fresca, pese ser já muito idosa, do século IV antes de Cristo. Sobretudo, por dela irradiar uma estranha e fascinante serenidade. Vê-la, acalma, arqueológico ansiolítico. Até Himmler a admirou:
 
 
 
 


 

 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
A Dama foi levada para França nos finais do XIX e só foi devolvida a Espanha pelo governo de Vichy, já nos anos 1940 (mais precisamente, em 1941). Desde então, foi ícone do franquismo (no Museu de Valência, havia uma cópia encimada pelo símbolo da Falange…), mas é muito mais do que isso, graças a Deus. Um livro recente traça-lhe a trajectória completa. Chama-se o livro: La Dama de Elche. Dónde, cuándo y por qué. A sua autora, Carmen Aranegui Gascó, é catedrática emérita da Universidade de Valência. Defende a sua Dama com unhas e dentes, contra-atacando com galhardia os que – canalhas! –  ousaram pôr em dúvida a autenticidade do vetusto busto, como um tal John F. Moffitt. O livro é uma delícia, leiam-no. A dado passo, Carmen Gascó recorda e lamenta que em 1997, por ocasião do centenário do descobrimento da Dama, o Museu Arqueológico Nacional (MAN) se recusou emprestar a peça ao município de Elche, onde a senhora residiu durante séculos e séculos antes de ir para Madrid. Aí jaz e repousa, imobilizada em cristal bem grosso. Foi para lá levada em 1972, transportada de táxi (!) do Museu do Prado para o MAN e, para exaltação da hispanidad, o camponês que, em criança, presenciara o descobrimento da Dama foi também levado a Madrid, para a admirar – e ser fotografado em testemunho da sua autenticidade nacional.   
 
 
 
 
 
Vem isto a propósito das notícias sobre a restituição das peças de arte das antigas colónias francesas. A instâncias do Presidente Macron, foi elaborado um extenso relatório, da autoria de Bénedicte Savoy, historiadora de arte, e de Felwine Sarr, escritor e economista senegalês. O relatório foi publicado em livro há uns dias, pelas Éditions du Seuil, e convém ler as suas 232 páginas antes de opinar em profundidade. Mas, das notícias que vão chegando, por exemplo no Le Monde (e editorial, aqui), pode estar a abrir-se uma caixa de Pandora, com resultados imprevisíveis. O princípio de justiça e reparação moral que lhe subjaz – e que, podendo ser louvável, merece uma discussão ponderada e serena – aplica-se a todos, Egipto, Espanha, Portugal, etc., não se percebendo como se pode ser selectivo nesse domínio, restringindo as restituições à África subsaariana, numa espécie de moralidade à la carte. O Egipto, claro, já veio reclamar o seu quinhão, e há uma campanha em curso, liderada pelo arqueólogo Zahi Hawass. Num país que teve um imperador-pilhador como Napoleão – e, note-se, uma atenção precoce à conservação das antiguidades e das obras de arte de outros países – tudo isto pode ter efeitos desastrosos. Como ficará a diplomacia e a política externa francesas se devolverem coisas a uns e as recusarem a outros? E não poderão os museus da província reclamar também peças que, devido a uma política centralizadora de muitas décadas, foram levadas para Paris? Muitas interrogações, muitas. Mas uma certeza, algo egoísta: se a Dama de Elche saísse de Madrid, eu deixaria de a ver, como sempre sucede quando vou a Espanha. Se as 70 mil peças de arte africana que estão no Museu do Quai Branly saírem de lá, deixaremos de as ver – e muitas delas correrão maiores riscos de desaparecerem e se esfumarem para sempre. Aquilo que as conservou foi justamente o facto de terem sido pilhadas e roubadas, o que não deixa de ser paradoxal ou irónico. Como irónico é o facto de, sob um aparente «universalismo», se esquecer o valor universal destas peças, património da Humanidade, fazendo-as ceder à mesma lógica nacionalista que agora, neste preciso instante, divide a França e a Itália a propósito de Leonardo da Vinci. E também irónico e paradoxal é o facto de as vanguardas, outrora vocacionadas – e bem – para o futuro, se concentrarem cada vez mais no passado e na memória, numa espécie de progressismo retroactivo que talvez seja sinal da sua falência enquanto projecto de transformação do mundo.
 




 
 
 
 

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