Não se sabe ao certo quando começou,
mas já em Dezembro de 1915 A Estrella
Oriental dava notícia do Presépio do Senhor Prior. Armada todos os natais na
Ribeira Grande, a criação do padre Evaristo Carreiro Gouveia tem mais de um
século. Em 1985, por iniciativa do Sr. Gualberto Faria, levaram-na para o Museu
Municipal, actual Casa da Cultura. E é lá que hoje está, para quem a veja.
O
senhor padre Evaristo morreu em 1957, mais de metade da vida passada ali, na
Matriz da Nossa Senhora da Estrela. Era o mais novo de seis filhos, seu pai
secretário das Finanças, gente do Sul da Ilha. Nesse ano de 57, em sinal de
luto, o presépio não abriu portas. A tradição seria retomada pelo novo prior,
padre Manuel de Medeiros Sousa, que era natural das Calhetas, o quinto de oito
filhos. Anos depois, por motivos de saúde, o padre Manuel pediria dispensa ao
bispo, que relutantemente lhe a concedeu, e foi então confortar a fé aos
velhinhos do Lar Jacinto Ferreira Cabido.
Os primeiros bonecos foram obra de Luís
Gouveia, sobrinho e afilhado do prior Evaristo, mas muitas mãos e de muitas
gerações moldaram aquele encanto. Em barro e madeira, até em plástico, fizeram-no
o Manuel Pacheco, o Manuel “Caixinha de Lustre”, o Silvério Faria, o Artur
Gaspar e outra rapaziada da Juventude Católica, cujo contínuo, o Manuel
Saudade, morava na rua Moinho do Vale e era, sem tirar nem pôr, um sósia
perfeito do venerando marechal Carmona. Por alturas de Outubro, passadas as
festas de Verão, começavam os trabalhos de montagem. Em cada Natal,
refrescavam-se os conjuntos, concebiam-se quadros com novas cenas, mudavam-se
os musgos e as leivas, tiravam-se os fetos, as folhas mortas. Estão lá – é
óbvio – o Menino e a Mãe Virgem, os três magos de Oriente, a Adoração dos
Pastores. Mas também há sapateiros de poucas letras, pedreiros e lavradores, a
matança do porco, a procissão do Coração de Jesus, festas do Espírito Santo. Apresenta-se
assim ao público toda a Ribeira Grande, em ingénua miniatura: o edifício da
Câmara, o Jardim Municipal, a Fábrica de Lacticínios, as Cavalhadas de São
Pedro, os moinhos de água. De toda a ilha vinha gente admirá-lo: aos milhares, chegavam
de camioneta, enchiam as lojas junto à praça em busca da fava guisada e do
vinho de cheiro, compravam batata-doce assada perto da Ponte do Paraíso. Organizava-se
um bazar no Passal, o Manuel Manco trazia a música, e todos pagavam bilhete
para visitar o presépio do senhor prior, excepto os idosos do asilo e as
crianças da catequese, que iam devidamente separadas por sexos. No final, padre
Evaristo dava-lhes figos, alfarrobas, nozes – e, às catequistas, santinhos com
os mistérios do Rosário.
O presépio da Ribeira Grande,
classificado em 2008 como bem de interesse municipal, prolonga a tradição local
do Arcano Místico de Madre Margarida do Apocalipse e tem sido estudado com
enternecedor afinco por Mário Moura. Desgraçadamente, foram queimados os papéis
de padre Evaristo Gouveia, entre os quais uma preciosa história da Ribeira
Grande, que em livros próprios registava semanalmente as funções eclesiais mas
também os acontecimentos mais importantes da terra. Da memória oral pode saber-se,
entre outros factos de histórico relevo, que eram os rapazes do Recreatório que
davam à manivela que fazia mexer as figurinhas do presépio, estando o Sr.
Domingos Oliveira encarregue de puxar a linha que fazia andar o Menino Jesus. Queimava-se
muito incenso por alturas do Natal, quadra que na Ribeira Grande se prolongava
por Fevereiro adentro. Nas vésperas da Noite Santa, andavam os homens pelas
ruas a Cantar às Estrelas, que as havia muitas naquele céu puríssimo.
No
presépio do senhor prior houve arte de vários mestres, entre os quais o Canudo,
segeiro, e o Caixinha de Lustre, que tinha uma lojeca por baixo de sua casa, na
esquina da rua das Espigas, hoje rua East Providence. E também o Manuel Botelho
“Pimpão”, carpinteiro que estivera na América e trabalhava no cinema e na Rádio
Iluminante. Até se mudar para a Terceira no ano de 1945, Manuel Pimpão, como
todos sabem, morava na rua de Jácome Correia, à esquerda de quem vai para Santo
André, pelo lado esquerdo. O próprio do prior ajudava nas figuras, na pintura dos
cenários, na ornamentação do presépio, entre outros deveres sacerdotais: padre
Evaristo dava doutrina às quintas e bênção do Santíssimo aos domingos (os
barbeiros fechavam às segundas). No final dos trabalhos ficava tudo uma tal
lindeza que outros quiseram fazer parecido. Em sua casa, na rua das Freiras,
mestre António Almeida, alfaiate de profissão, de alcunha “Caga Fogo”, armou um
presépio de trapos e, por bandas de 1947 ou 1948, os da fábrica do Álcool e do
Açúcar vieram à Ribeira Grande copiar à descarada o presépio do senhor prior. Todos
os anos havia espionagem da grossa para saber que novidades traria o Natal na
Ribeira Grande. O segredo mais guardado era o do maquinismo que fazia andar as
figuras. Para enganar os da fábrica do Álcool, o prior Evaristo chegou a
ordenar que se pusesse a correr a fake
news de que o presépio era movido a electricidade. Já o da fábrica era
movido a vapor, tinha um vulcão e tudo, que os da Ribeira Grande tentaram
imitar, mas não deu certo. Noutro ano, houve quem quisesse meter cenas da Paixão
pelo meio da Natividade, e só uma intervenção teológica mais avisada evitou
tamanho desastre bíblico. O prior tinha uma garrafinha de abafado para ir
confortando os que montavam o presépio e lhe davam movimento, e todos os anos
se renovavam as cenas, mantendo-se apenas as peças ou figuras que mereciam
maior aplauso do público. Público que era muito e vinha de longe, sobretudo da
cidade. Era tanta e tanta gente que se chegavam a formar ajuntamentos, e houve
anos em que até tiveram que pôr vigilantes para impedir os apalpanços às senhoras
da vila e suas filhas casadoiras.
Passava-se
isto no tempo da luz velha, trazida pela Hidroeléctrica do Salto do Cabrito,
numa época em que ainda não havia luz de dia e em que o pai do Sr. Humberto
Peixoto tinha de pedir ao Sr. Pavão, da empresa de Electricidade e Gás, que lhe
fornecesse a energia necessária para as matinés do cinema. Nem gás havia, os
fogões de casa eram aquecidos a petróleo, e aparelhos de rádio só existiam nas
casas das pessoas ricas e no Café Central, sendo ligados apenas à noite. Nos
anos 1930, houve por ali uma loja maçónica, intitulada “Acção Renovadora”, mas
para desportos profanos os moços da Ribeira Grande preferiam o futebol,
disputado entre dois clubes com nome de pássaro, o Águia e o Açor, a que depois
se juntou o Ideal, nascido em 1933
(depois da guerra, surgiria uma outra agremiação, Os Rambóias, de reunião
episódica e duração muito efémera). Os jovens seminaristas destacavam-se na
modalidade, brilhando o Luís Cabral à baliza e o Moreira Candelária a
avançado-centro. Em 1933 foi inaugurado o Teatro Ribeiragrandense, que competia
nas récitas com o salão paroquial, onde, além de Mozart e Wagner, se exibiram fitas
de antologia sobre tempos antiquíssimos: Artur Paiva, futuro sacerdote, ficou aí
extasiado com as catacumbas romanas da Fabíola,
passada à tela pelo João Clímaco, que era irmão do padre Evaristo e funcionário
dos correios em Ponta Delgada.
A guerra trouxe os ingleses ao aeroporto de
Santana, vulgo “aerovacas”, com acrobacias aéreas e voos rasantes. O povo,
assustado, colou tiras de papel de jornal nas vidraças das janelas. Animou muito
o cinema, e nos anos cinquenta estrearam dramalhões italianos com títulos como Os Filhos de Ninguém e O Anjo Branco, a mais o Ben-Hur passado às matinés a $50, para frequência
de elite: juízes e advogados, secretários das Finanças, o Ezequiel e a família,
o Coelho e a família, o Dr. Leão, o sr. Cabido e esposa, as filhas do Dr.
Franco. Tudo se processava no maior respeito, não fosse a Ribeira Grande uma vila
em que mesmo na igreja ficavam homens para um lado e mulheres para outro, e em
que às seis da tarde os rapazes tinham de sair das Poças para que as moças também
fizessem banhos de mar. No Central e no Café Peixoto não entravam mulheres, e
os homens passavam os serões a jogar póquer de dados e dominó, e algum xadrez.
Quando estava o Magalhães, piloto-aviador vindo de Lisboa, faziam-se serenatas
nocturnas, que duravam até altas horas, por vezes quase raiando a meia-noite.
Antes da guerra, havia a Sociedade de Instrução e Recreio, com bilhares e
bailes. Consta que o Dr. Agnelo Casimiro foi lá certa noite proclamar uma
conferência.
Passaram-se os anos, veio a emigração e
a guerra colonial. Muita da rapaziada que voltava do Ultramar só pensava em
partir para longe. “Se eu tivesse a sorte de arranjar uma americana…”, diziam.
Os pais, de seu lado, queriam agora dar aos filhos “um curso e um emprego de
gravata”. Rareava portanto quem quisesse trabalhar no presépio do senhor prior.
Nos anos sessenta, surgiram Os Rebeldes
do Ritmo, que começaram a ensaiar numa casa da rua do Correio. Música dos
Beatles era só tocada, que o vocalista não sabia inglês. Os adolescentes
fundaram a associação Os Ghosts e os
mais velhos a cooperativa Sextante,
ligada ao MDP/CDE, e logo encerrada pela PIDE. A alma da Sextante foi o Dr. Manuel Barbosa, líder da incipiente oposição
política, director do Externato desde os anos quarenta. Aos poucos, a juventude
começou a arredar do presépio ou a emigrar para a América ou para o Canadá.
Criticava-se agora a criação do padre Evaristo, a distorção pueril das suas figuras,
os clamorosos erros de perspectiva, os excessos de musgo e verduras, nada que
se parecesse com a sóbria contenção do presépio da fábrica do Álcool, famoso em
toda a ilha pelos seus relâmpagos e trovões. Começaram a fazer presépios “ao ar
livre” e “presépios vivos”, uns trazidos pelos franciscanos, outros patrocinados
pelas autoridades civis. Entre os mais novos, houve até quem decorasse os
quartos com pósteres do Che Guevara. E, para cúmulo, as raparigas deram em
aparecer nos cafés e a frequentar as cervejarias, inclusive de noite.
O Concílio Vaticano II e a televisão
deram o golpe final. O primeiro trouxe a “catequese moderna”, pouco inclinada a
presépios com figurinhas de barro. A TV, surgida nos tempos quentes de Agosto
de 1975, tirou os rapazes das ruas, matou os convívios castos do salão
paroquial. No Natal de 74, passada a revolução, alguns rapazes montaram um
presépio polémico, em que a Natividade foi rodeada de fotografias bárbaras da
guerra colonial, tudo animado a música de Zeca Afonso. Em 1975, não houve
presépio na Ribeira Grande. O presépio do Sr. Prior deixou de ser armado por
volta de 1977 e a partir daí teve existência intermitente até meados dos anos
1980, quando foi transferido para o Museu Municipal. Está hoje ali, conservado
em esquife laico ou, como agora se diz, “musealizado”. Quando era novo e
pujante, o presépio do Sr. Prior viu muito e muita coisa: passou a República e
a Grande Guerra, sobreviveu a Auschwitz e a Hiroshima, fez o Salazar e a
Revolução dos Cravos. Dele hoje resta não mais que uma memória, suave lembrança
das mãos que o fizeram.
Bom Natal.
António Araújo
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