sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

O rinoceronte de Madrid que entrou por Lisboa.

 
Placa toponímica da autoria de Alfredo Ruiz de Luna


         Alfredo Ruiz de Luna (1948-2013) será para sempre famoso por várias razões, quase todas boas. A melhor delas é ter sido o ceramista-autor das placas toponímicas que, num gosto assim-assim, embelezam Madrid, capital espanhola. Em Lisboa, na Avenida de Madrid, há uma placa a esse jeito, num gosto assim-assim, cerâmica de la transición. No que Luna esteve mal, mesmo muito mal, nas raias do péssimo, foi em ter colocado um rinoceronte africano na Calle de la Abada. Francamente, Alfredo…
 
 
Calle de la Abada, Madrid
 
 
         A Calle de la Abada fica no centro de Madrid: desagua na Gran Via e, como sabem todos os amantes da capital espanhola, fica a poucos passos da casa de lotarias Doña Manolita. Deve o seu nome («abada») a um rinoceronte – não africano, mas de Java/Filipinas – que Filipe II doou ao mosteiro de San Martín. O que raramente se diz, e é pena, é que esse rinoceronte entrou em Espanha vindo de Portugal, pois foi a Lisboa que aportou, corria o ano de 1581. Primeiro veio «Ganda», que chegou em 1515, foi desenhado por Dürer, e naufragou ao largo de Porto Venere, Itália, morreu e foi empalhado. Este – ou esta, pois era uma fêmea – chegou décadas mais tarde e chamava-se abada ou bada (provavelmente, um termo genérico para rinoceronte, do malaio badak). Desembarcou em Lisboa, na companhia de um elefante, quando Filipe II cá estava, acabadinho de tomar conta do reino de Portugal. Quem o diz é Jan Huygen van Linschoten (1563-1611), célebre viajante neerlandês, mas há quem assevere que o bicho chegou em 1577, no reinado de D. Sebastião, por oferenda do vice-rei da Índia; afirma-se ainda que, por precaução, lhe cortaram o corno frontal, mas que este foi crescendo, ainda que pouco, até o rinoceronte ser retratado por Philippe Galle, de que adiante se falará, e que, como se verá, o mostrou com um corno bastante escasso.
Admitindo que o animal chegou em 1581 (e não em 1577), diz a história que, quando Filipe regressou a Madrid, cansado da capital portuguesa, levou consigo o elefante e o rinoceronte, ficando este hospedado numa rua que veio a chamar-se Calle de la Abada, segundo narra frei Juan de San Geronimo. Não tardou o monarca em levar os paquidermes para o Escorial, tendo o rinoceronte sido transportado a 16 de Outubro de 1583, dia de calor insuportável: um tratador mais lesto decidiu refrescá-lo atirando-lhe baldes de água, mas o bicho assustou-se com o dilúvio e terá investido sobre todos os que o rodeavam. Com tais maus-tratos, não admira que rinoceronte o tenha parecido a frei Juan de San Geronimo «melancólico e triste». Em Abril de 1584, Abada foi vista por uma embaixada japonesa, a primeira a chegar à Europa, segundo se diz, no que foi um triunfo diplomático – mais um – da Companhia de Jesus, e a prova cabal de que a globalização começou mais cedo do que julgamos.  
         O grande Don Pedro de Répide Gallegos (1882-1948), famoso cronista da vida madrilena, colocou a hipótese de o animal ter sido trazido para Espanha por uma companhia de saltimbancos portugueses, o que parece ser um erro, atento o testemunho informado de Linschoten. Trata-se, em todo o caso, de um ponto que iremos procurar apurar com mais exactidão. Conta também Répide que fizeram uma grande maldade ao animal: um rapaz endiabrado deu-lhe a comer um pão escaldante, saído do forno. Em resultado disso, Abada enfureceu-se, destruiu a jaula e matou o moço brincalhão. Diz-se que os madrilenos andaram uma noite inteira em busca da fera, que apareceu na manhã seguinte bem longe do centro de Madrid, já por bandas de Vicálvaro. A história é boa e bem castelhana, com violência e sangue. Sucede, porém, que há outra história, também com sangue, mas passada no Escorial: segundo esta versão dos factos, o duque de Medina aconselhou o rei a matar o rinoceronte com um mosquete, já que este tinha morto um dos seus cortesãos. Filipe II, que gostava da sua Abada, decidiu tão-só arrancar-lhe os olhos e cortar-lhe o corno, num gesto muito piedoso e amigável… Há, como se vê, duas histórias bem diferentes – passadas até em locais distintos – sobre o «rinoceronte de Madrid», como é conhecido. Ambas são bastante cruéis, o que não sucede com uma gravura feita do «rinoceronte de Filipe II» da autoria de Philippe Galle, realizada em Antuérpia em 1586. Note-se, em todo o caso, a escassez do corno frontal, também patente noutra gravura posterior, de 1650, claramente inspirada na de Galle.
 
Gravura de Philippe Galle, Antuérpia, 1586

 

 
Adriaen Collaert (1545-1608), Animalium quadrupedum omnis generis verae et artificiossimae delitiones, 1650
 
 
 
         Por último, uma correcção à Wikipedia espanhola. Diz-se aqui que Abada foi desenhada por um tal «Juan de Cufes» (!). Na verdade, o nome é Juan de Arfe y Villafañe (1535-1603), célebre ourives, gravador e anatomista, autor do tratado De Varia conmensuracion la escultura y arquitectura, impresso em Sevilha em 1585. Na generosa Internet há uma versão completa do tratado, e foi de lá que extraí a imagem do rinoceronte. Muito parecida com a de Dürer, ainda que sem o corno suplementar no dorso (e que os espanhóis cegaram o bicho, disso não há dúvida). Voltaremos a este tema, assaz promissor.
 
Juan de Arfe y Villafañe, De Varia conmensuracion la escultura y arquitectura, 1585
 
 

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