domingo, 16 de dezembro de 2018

O buda, o esquimó e de novo as restituições de arte africana.

 
 
 
A história do Buda que alberga uma múmia – a múmia de um monge que morreu entre 1022 e 1055 – é muito curiosa. Dois comités de vizinhos da China pediram a sua devolução, como objecto sacro (ver a notável investigação da The Economist, aqui). O arquitecto holandês Van Overeem, seu possuidor legítimo, que comprou a estátua em Hong-Kong por 40.000 euros, em 1996, diz já não a ter consigo, afirmando que a vendeu em 2015 a um homem de negócios chinês, cujo nome recusa revelar... O caso demonstra bem as tramas do comércio de arte internacional, num tempo em que se fala de devolução de bens a África, mas só – note-se – a África subsaariana, como se a «ética relacional» se aplicasse selectivamente, excluindo o norte de África, o Egipto, etc., etc.  
 
 
 
 
 
         Um caso bem diverso, pela sua limpidez, foi contado num impressionante livro que li há anos, Give me  my father’s body, a vida trágica de um pequeno esquimó que descobriu expostas, em pleno Museu de História Natural de Nova Iorque, as ossadas do seu pai. Que entretanto, esclareça-se, já foram devolvidas à Gronelândia e enterradas como mereciam.
 
 

 
 
         Quanto às devoluções em massa de arte africana, lembrou há pouco Luís Raposo, presidente do Conselho Internacional de Museus (ICOM), que a Convenção de Roma (Convenção sobre Bens Culturais Roubados ou Ilicitamente Exportadas), de 1995, ainda não foi ratificada pela maioria dos Estados africanos. Porquê?, pergunta Luís Raposo. «Porque grande parte das suas elites políticas prefere ficar de mãos livres para abastecer o mercado – como é manifesto já ter feito, até com peças devolvidas por museus, que depois se esfumam por colecções privadas, a quem ninguém ousa reclamar devoluções» (Expresso, de 15/12/2018).
         Devemos entender-nos. O que está em causa nesta proposta de Macron para devolução de bens culturais? Duas coisas muito diferentes: uma será pôr cobro a situações de apropriação ilegítima, o que tem de abranger todas e quaisquer situações – africanas, mas também asiáticas, europeias, americanas. Outra, bem distinta, será conceder uma reparação pelo passado colonial, o que só daria direito de reclamação aos povos colonizados. Portugal, por exemplo, nada poderá exigir de França, pois só muito forçadamente se pode dizer que fomos «colonizados» pelas tropas de Junot. Mas, a ser assim, todo o passado colonial tem de ser posto sob o crivo da justiça histórica. Por exemplo, o conceito de museu, tal como o conhecemos, tal como agora existe em África ou na América Latina, na Ásia ou na América, é um conceito europeu, ocidental.
 
Museu Nacional de Antropologia de Angola
 
 
 
 
O Museu Nacional de Antropologia de Angola, em Luanda, está instalado numa magnífica casa de finais do século XVIII em que a marca portuguesa é tão óbvia que nem precisa ser demonstrada (mas quem quiser saber mais, veja aqui, no inventário do Património de Influência Portuguesa, feito por uma fundação portuguesa, a Gulbenkian). Esse facto é indiferente para o debate ou deve ser sopesado quando se avalia no seu todo o passado colonial? É que, a pretexto de reparar o passado colonial, parece que nos preparamos para devolver bens ou objectos a Estados (outra invenção europeia) cujas fronteiras (outra criação colonial) e cujas instituições – a começar pelos museus – são, queiramos ou não, fruto e legado desse mesmíssimo passado  que agora se quer ver ressarcido. O colonialismo foi mau, terrível, para os povos colonizados. Mas se queremos fazer justiça ao passado, todo o colonialismo terá de ser julgado, sob pena de nada disto ser um acto de justiça mas de pura política e diplomacia. Se for um gesto político, admite-se. O que não pode é invocar-se argumentos de justiça, direito ou ética para legitimar opções que são totalmente políticas e, como tal, discricionárias – desde logo, incluindo uns (o Benim, por exemplo) e excluindo outros (o Egipto ou Portugal, por exemplo) de um amplo programa de «restituições». Se falarmos de justiça ou ética, não podemos ser selectivos.


 



 
 

1 comentário:

  1. "O colonialismo foi mau, terrível, para os povos colonizados." Foi? Ou achamos que foi?. Actos praticados durante o período colonial foram terríveis para os colonizados, o que não significa a mesma coisa. E quando falamos de colonialismo, podemos incluir os atos de dominação dos zulus, por exemplo? Ou dos Vátuas? Ambos contemporâneos com o colonialismo europeu?

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