Genealogia do Infante Dom Fernando de Portugal
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Devo à gentileza amiga de António
Cabral, e ao seu olho de lince, a descoberta de mais um rinoceronte escondido
nas caves da nossa memória. Foi ele que, num comentário a um
post/posta do Malomil, me chamou a atenção para a representação de um
rinoceronte na prodigiosa Genealogia do
Infante Dom Fernando de Portugal, que, se a moda pega, ainda podemos pedir
de volta à British Library, pois é lá que se encontra sob a cota Add. 12.531,
sendo vulgarmente conhecida por Portuguese
Drawings.
O livro foi mandado fazer pelo Infante
Dom Fernando, duque da Guarda e filho de D. Manuel I, sendo seus autores
António de Holanda e Simão Bening, como nos explicam Martim de Albuquerque e
João Paulo de Abreu e Lima na introdução à edição da Genealogia realizada em 1984 sob os auspícios da XVII Exposição de
Arte, Ciência e Cultura.
A imagem do rinoceronte surge na folha
do Prólogo (Fólio Um), no canto superior esquerdo, juntamente com outros
animais, reais e fantásticos. O ponto é mais importante do que parece: é que
António de Holanda foi também o autor do Livro
de Horas de D. Manuel, de que já aqui falámos (ou, pelo menos, a autoria
desse livro é-lhe atribuída). Num estudo introdutório à edição deste Livro de Horas levada a cabo pela
Imprensa Nacional em 1983, o historiador de arte Dagoberto Markl aborda o
paralelismo entre as duas obras, sem todavia mencionar o rinoceronte. Ele é,
creio eu, uma prova suplementar, mas relevante, de que a autoria daquela imagem
da Genealogia se deve atribuir a António de Holanda. Mais
ainda, a representação do rinoceronte na Genealogia
do Infante Dom Fernando não é mencionada no livro mais completo e de referência
sobre o assunto, de T. H. Clarke, The Rhinoceros from Dürer to Stubbs, 1515-1799 (Sotheby’s, 1986) nem consta, ao que julgo,
da gigantesca base de dados do Rhino Resource Center,
o mais importante website sobre rinocerontes do mundo, criado e mantido por Kees Rookmaaker.
A genealogia de Dom Fernando
reporta-se, pelos vários ramos de ascendência do Príncipe, a Noé. Daí a
importância do rinoceronte e da fauna exótica, tópicos ilustrativos dessa
ascendência – e também, parece-me, expressão do poder régio de D. Manuel, que
ao Papa mandou a Ganda de Modafar, enviada da Índia por Afonso de Albuquerque.
Na introdução à Genealogia, Martim de
Albuquerque e João Paulo de Abreu e Lima falam de basiliscos, leões, serpentes,
rãs e porcos, unicórnios, mas não mencionam o rinoceronte, que lá está,
indubitavelmente e majestosamente. E é ele que, segundo creio, permite, a par
de outros elementos, atribuir a autoria do Fólio Um, o do Prólogo, a António de
Holanda, questão que desde há muitos anos tem suscitado diversas leituras e interpretações.
Como nota Roberto de Andrade Martins («O rinoceronte de Dürer e suas lições
para a historiografia da ciência», Filosofia
e História da Biologia, São Paulo, vol. 9, nº 2, 2014, pp. 199-238,
disponível aqui)
, na esteira de Palmira Fontes da Costa («Secrecy, ostentation, and the
illustration of exotic animals in sixteenth-century Portugal», Annals of Science, 66, 1, 2009, pp.
59-82, aqui), além do Livro de Horas de Dom
Manuel, António de Holanda teria figurado o rinoceronte no Livro de Horas da Condessa de Bertiandos,
cujo original se encontra na Academia de Ciências de Lisboa (Manuscrito azul,
cofre 34, nº 1813).
Livro de Horas dito de D. Manuel, 1519-1551, Museu Nacional de Arte Antiga
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Livro das Horas da Condessa de Bertiandos, século XVI, Academia das Ciências de Lisboa
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Diz-se também que são da autoria de
António de Holanda os animais constantes do Atlas Miller ou Atlas Lopo Homem-Reineis (1515-1519), manuscrito pertencente à Biblioteca Nacional de França (portanto, vamos pedi-lo de volta ao Sr. Macron),
e cujos mapas são da autoria dos cartógrafos portugueses Lopo Homem, Pedro
Reinel e do seu filho Jorge Reinel. Em 2006, foi feita uma edição fac-similada desta
obra: cf. Mónica Miró (ed.), Atlas Miller,
Barcelona, M. Moleiro Editor, com um estudo de Alfredo Pinheiro Marques que
sustenta precisamente que a autoria dos desenhos dos animais deve ser atribuída
a António de Holanda, que, assim sendo, desenhou quatro rinocerontes: no Livro
de Horas de Dom Manuel, no Livro de Horas da Condessa de Bertiandos, na
Genealogia do Infante Dom Fernando e no Atlas Miller.
Atlas Miller, 1515-1519, Biblioteca Nacional de França
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À
Genealogia de Dom Fernando, e à
semelhança do que ocorre com o Livro de Horas, está associado o nome de Damião
de Góis, que terá presenciado a justa entre o rinoceronte (fêmea) e um
elefante, promovida por D. Manuel em 3 de Junho de 1515. Por seu turno, Dürer
desenhou o animal, como também desenhou o rosto de Damião de Góis, narrador da
histórica e zoológica refrega na sua Crónica
de D. Manuel, combate travado num pátio armado especialmente para o efeito,
perto da Casa da Índia, na Ribeira das Naus, entrando em cena as duas feras
«das quais a primeira foi o rinoceronte
que assim como entrou o pusera detrás de uns panos de armar que estavam
pendurados num passadiço que ia da sala del Rei para a da rainha, isto porque o
elefante não o visse ao entrar da porta e logo daí a um pouco entrou o
elefante, nas costas do qual os homens da guarda del Rei fecharam as portas do
pátio. O que estava escondido, o qual posto que estivesse froopeado (porque
assim andava sempre) em vendo o elefante fez um jeito para o Índio que o curava
e trazia preso por uma cadeia comprida, como em modo de lhe dizer que o
deixasse ir para onde o inimigo estava, o Índio porque a alimária começava já
de puxar, lhe largou a cadeia, levando contudo o cabo dela na mão, de maneira
que com o focinho posto no chão, assoprando pelas ventas com tanta força que
fazia alevantar o pó, e palhas do chão como se fora um redemoinho de vento. O elefante
quando o rinoceronte saiu estava anca revolta para aquela parte, mas em o vendo
querer pelejar, contudo depois que o rinoceronte chegou junto dele, querendo já
cometer pela barriga, parece que pela pouca idade de que era, desconfiado de se
poder ajudar dos dentes, contra um tamanho inimigo, pelos ter ainda tão
pequenos que não lhe sairiam da boca mais de três palmos, fez volta em redondo,
endireitando por uma janela de grades de ferro que estava junto da porta do
pátio que olhava de longo das casas da ribeira, nas quais pôs a cabeça com
tanta força que torceu dois dos barões das grades, que seriam da grossura de
oito boas polegadas em quadrado, por entre os quais dois varões saiu, deixando
o Índio que o governava no chão, que nesta pressa se lançou dele, o que se não
fizera arrebentar entre as grades e o alumiar de cima da janela: esta foi uma das
grandes forças que se podem imaginar. Saído assim o elefante do pátio tomou o
caminho dos estábulos, onde era a sua pousada. (…) O rinoceronte ficou no campo
mui seguro dando quase a entender aos que estavam a par dele, com os jeitos e
meneios que fazia, que tinha a vitória por certa se o elefante quisera
esperar».
(Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel I, apud António Luís Ferronha,
Mariana Bettencourt e Rui Loureiro, A
Fauna Exótica dos Descobrimentos, Edições Elo, 1993, pp. 23-24).
A Genealogia
do Infante Dom Fernando é datada de 1530-1534 (cf. a descrição do Museu
Britânico, aqui)
e o Livro de Horas dito de D. Manuel
foi executado entre 1517 e circa 1551 (descrição do Museu Nacional de Arte
Antiga, aqui).
São, portanto, posteriores à gravura de Dürer e a imagens coevas, cuja
genealogia é traçada por Hermann Walter («Contributi sulla recezione umanistica
della zoologia antica, Nuovi documenti per la genesi del “1515 Rhinocerys” di
Albrecht Dürer», Res Publica Litterarum.
Studies in the Classical Tradition, XII, 1989, pp. 267ss) do seguinte modo:
(1) «esquisso
de Lisboa», de 1515, possivelmente da autoria de Valentim Fernandes, hoje
perdido;
(2) primeira cópia do «esquisso de Lisboa», da
autoria de Albrecht Dürer, provavelmente perdida;
(3) Albrecht
Dürer: desenho preparatório «Rhinoceron 1515», no British Museum, Sloane
Collection:
(4) Albrecht Dürer: xilografia «1515 Rhinocerus»:
(5) Albrecht Altdorfer (oficina de): desenho à pena no Livro de orações (Gebetbuch) do imperador Maximiliano I, da Biblioteca municipal de Besançon:
(6) Hans Burgkmair: xilografia «Rhinoceros M.D.XV.», Galeria Albertina, Viena:
(7) Albrecht Dürer: xilografia Arco Triunfal (Ehrenpforte) do imperador Maximiliano I, British Museum:
A estas imagens acrescenta Hermann Walter:
(4) Albrecht Dürer: xilografia «1515 Rhinocerus»:
(5) Albrecht Altdorfer (oficina de): desenho à pena no Livro de orações (Gebetbuch) do imperador Maximiliano I, da Biblioteca municipal de Besançon:
(6) Hans Burgkmair: xilografia «Rhinoceros M.D.XV.», Galeria Albertina, Viena:
(7) Albrecht Dürer: xilografia Arco Triunfal (Ehrenpforte) do imperador Maximiliano I, British Museum:
A estas imagens acrescenta Hermann Walter:
(1) - a xilogravura constante da obra de Giovanni
Giacomo Penni, «Rinocerothe», de 1515 (Biblioteca Colombina, Sevilha):
(2) - o desenho de um rinoceronte, feito no século
XVI por um autor anónimo e cujo original se encontra na Biblioteca Pública de
Parma:
(3) - um desenho à pena, de autor anónimo, colado num manuscrito da Biblioteca Vaticana (Chigi C-II-38, fol. 14), da obra Historia Senensium, de Sigismondo Tizio (1458-1528), onde se conta a luta entre o rinoceronte e o elefante, bem como a viagem e naufrágio da Ganda ao largo de Porto Venere, texto datável de 1516, ou seja, muito próximo da ocorrência dos factos.
Francesco Granacci, Giuseppe presenta al Faraone il padre e i fratelli, post. a 1515
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Nos Ufizzi, em Florença, numa pintura de
Francesco Granacci (1469-1549), intitulada Giuseppe presenta al Faraone il padre e i fratelli
(óleo sobre tela, posterior a 1515), é possível vislumbrar um rinoceronte, muito
provavelmente o exemplar de Lisboa, enviado por D. Manuel ao Papa.
E o rinoceronte, apesar de ter
naufragado na costa da Ligúria, acabou por chegar ao Vaticano sob a forma de um
fresco de Rafael pintado no segundo andar do Palácio Apostólico, datado de 1518-1519 e intitulado
«A Criação dos Animais».
Rafael, A Criação dos Animais, Vaticano, 1518-1519
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Por hoje, ficamos por aqui, que é
Natal.
Bom Natal, António Cabral, com um
abraço amigo do
António Araújo
Tudo o que nem sequer uma vez pensou sobre rinocerontes na arte e por isso nunca lhe ocorreria perguntar.
ResponderEliminarPor Júpiter! O que aqui vai de informação!
Amizade sua, caro Onésimo!
ResponderEliminarGrande abraço, Feliz Natal do
António
Caro António Araújo
ResponderEliminarMuito obrigado pelos votos de Bom Natal!
Os seus textos são fascinantes!Incluíndo os sobre rinocerontes!
Estive a ver, à lupa e no ecrã do meu pc, o A Criação do Mundo, de Vasco Fernandes, que se encontra em Lamego. Não encontrei nenhum rinoceronte, não o meto em mais trabalhos.
Grande abraço, boas entradas em 2019
António Cabral
I love to read such posts. I guess now I am a regular visitor of your blog :)
ResponderEliminarhttps://www.iberrys.in/relationship-tshirts/couple-tshirt