Praça D. Pedro IV (ou Rossio), nº 26, 1º andar, aqui
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“Lisboa é Portugal! Fora de Lisboa
não há nada!. O País está
todo entre a Arcada e São Bento.”
Fala de João da Ega n’Os
Maias
“Um país, no fundo, é sempre uma
coisa muito pequena: compõe-se de um grupo de homens de letras, homens de
Estado, homens de negócio e homens de clube, que vivem de frequentar o centro
da capital. O resto é paisagem, que mal se distingue da configuração das vilas
ou dos vales. É a gente sonolenta da província.”.
Eça de Queiroz, “O Francesismo” (1887),
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1. Eça ou uma vida expatriada
José Maria de Eça de
Queiroz (1845-1900), nascido em 25-XI-1845, na Póvoa do Varzim (Douro litoral),
a poucos quilómetros de Porto, tendo passado a meninice, até aos dez anos de
idade, numa quinta dos avós paternos, em Verdemilho, em Aveiro, e estudado ainda
num colégio do Porto – onde conheceu Ramalho Ortigão –, cursou Direito em Coimbra, de 1861 a 1866, passando,
depois, em 1867, alguns meses (Janeiro a
Agosto) em Évora, onde funda e dirige um jornal político – O Distrito de Évora –, vivendo por algum tempo em Lisboa, no Rossio,
em casa dos pais. Colabora em jornais e publica as suas primeira prosas
“bárbaras”, viaja até ao Oriente, em companhia do seu futuro cunhado Luís,
conde de Resende, visitando o Egipto, a Palestina e o Líbano (Outubro de 1860 a Janeiro de 1870),
frequenta, desde 1868, o círculo intelectual de jovens dissidentes encabeçados
por Antero de Quental, no “Cenáculo”, em casa deste ao Bairro Alto na capital, é
nomeado funcionário público em Leiria, como administrador do concelho (Julho de
1870-Junho de 1871), concorrendo mais tarde a um lugar de cônsul de primeira
classe no Brasil (Setembro de 1870), concurso de que é vencedor, embora não
seja efectivamente despachado para ali, o que só aconteceria em 1872 (Março),
partindo para Cuba em começos de Novembro, ali chegando a 20 de Dezembro.
Assim, em fins de 1872,
Eça iniciaria uma longa expatriação de 28 anos, como diplomata em Newcastle
(1874-1879), Bristol (1879-1888) e, por fim, Paris (1889-1900) –, intercalada
com frequentes estadias por algumas semanas em Portugal, Sintra, Minho, “Tormes”
(i.e. Quinta de Vila Nova, Baião), etc. – e em estâncias estivais francesas com
a mulher e os filhos. Com todo este intenso trajecto pessoal de viagens e
residências, Eça de Queiroz estivera em Lisboa pouco tempo (i.e., cerca de
quatro anos com várias interrupções), dividindo-se, até à partida para Havana,
entre o Norte e o centro, o Douro e o Alentejo – todas estas regiões seriam
referidas de modo desigual na sua obra, ainda que de modo menos central – e até
simbólico – de que a capital, que de algum modo monopolizaria os cenários,
ambientes e locais das acções dos seus personagens e narrativas, até porque,
como lembrava no seu famoso ensaio sobre “O Francesismo”, um país é, sobretudo,
uma coisa pequena, composta dum grupo de escritores, políticos, comerciantes e
de outros círculos sociais organizados e selectos, sendo o mais “paisagem” –
como sucedia de modo tão patente no ultracentralizado Portugal com a pequena
Lisboa, onde tudo e todos se concentravam, da política ao capital, passando
pelas artes e pelas letras. Como o resumia João da Ega numa boutade muito sua: “Lisboa é Portugal!
Fora de Lisboa não há nada. O País todo está entre a Arcada e São Bento.” (Os Maias). A revolução liberal e o seu
período de estabilização política e material chamado “Regeneração” não alterara
esta realidade estrutural lusa, feita de uma capital absorvente e macrocéfala,
dum lado, e dum resto de país, compactamente agrário, sonolento e pasmado, sem
vitalidade nem cultura. Portugal, país muitíssimo assimétrico, tem em Lisboa a
sua capital vistosa e moderna onde tudo se concentra (modas, espectáculos, parlamento,
sedes de partidos, museus e toda a casta de novidades), no resto perdura o
arcaísmo imóvel, “a paisagem”. Exceptuam-se duas cidades, o Porto do comércio e
a Coimbra da universidade. Aquela dicotomia manter-se-ia intacta com a I
República e só seria invertida com a ditadura nacionalista do “Estado Novo”;
ou seja, caberia agora, desde a revolta das espadas de Braga, em 1926, que em
Lisboa o mundo rural e arcaico regesse o país burguês.
2. Lisboa é o centro do mundo queiroziano
Assim, foi a cidade de Lisboa
que se constituiu para Eça, de facto, como o verdadeiro cenário central de toda
a sua obra mais importante, o palco de todo o mundo de personagens e símbolos
queirozianos, o que se percebe até porque ele mesmo dissera que Portugal era a Capital,
e tudo o mais mera “paisagem”... Esta preferência absorvente do mundo lisboeta
no seu cosmos criativo está mesmo na origem de um das suas mais belas e fortes
criações romanescas, um romance que só seria dado à luz postumamente – como
também sucedeu com A Tragédia da Rua das
Flores: naquele romance, recentemente restaurado (1992) com o título
original de A Capital! (Começos duma
carreira), o ponto de exclamação era bastante significativo na medida em
que a figura central desta obra, o pobre provinciano e falhado candidato a
poeta aclamado, Artur Corvelo, vivendo na triste apatia vazia de Oliveira de
Azeméis, onde ninguém leva a sério o seu alegado valor literário e, além do
mais, vive dum emprego entediante numa farmácia, sonha ir para Lisboa, editar o
seu livro Esmaltes e Jóias, ser conhecido
e levar uma deslumbrante existência romântica de autor aclamado pelo público e
amado pelas mulheres. Na verdade, muito adequadamente com o cânone estético do
realismo/naturalismo, esta aventura de Artur na capital que sonhara como uma
urbe esplêndida e povoada de gente maravilhosa, não passaria, afinal, dum
constante acumular de humilhações, desenganos e traições feitas por falsos
amigos e mulheres traiçoeiras, num recorrente esfrangalhar de todas as suas
ilusões de glória literária e amores femininos às mãos duma sórdida e cruel
Realidade, toda feita de gente rasteira e velhaca, de mulheres estipendiadas com
o esperado dissipar do pecúlio dum testamento que lhe permitira vir para tentar
a sua sorte na capital sonhada como uma cidade excepcional e na qual o seu
talento de escritor será reconhecido.
A miragem e a ulterior decepção de Lisboa levaria Artur a uma tentativa de suicídio junto do Cais das Colunas no Terreiro do Paço (A Capital!, ed. de 1992), cena tipicamente queiroziana de ironia feita de anticlímax, ao mostrar que até um acto tão nobre e dramático como pôr fim aos seus dias descambava num sainete de comédia offenbaquiana, não logrando Artur lançar-se ao Tejo porque, nesse instante da sonhada morte voluntária, um burguês da Baixa o importuna perguntando-lhe pelo chapéu que lhe fora roubado, impedindo, assim, que o poeta se matasse. O trivial quotidiano dava em pantanas este último sonho romântico do poeta falhado vindo de Oliveira de Azeméis, neste Lisboa traiçoeira e pelintra onde tudo fracassava, a glória literária, a rebeldia política, a amizade, o amor – e até a opção pela morte livre, o suicídio.
3. Lisboa na obra queiroziana
Lisboa era, assim, a sede
do Poder na realeza, a Família real, os ministérios concentrados na Arcada – ou
Terreiro do Paço ou ainda Praça do Comércio –, mais as Cortes e os seus
políticos e partidos que os faziam eleger no sistema da monarquia
constitucional, e era ainda uma cidade onde havia inúmeras igrejas, cemitérios,
espectáculos – ópera, teatro, concertos, circos, corridas de cavalos em Belém,
hotéis, restaurantes, casas de pasto e cafés, jornais, jardins, livrarias,
clubes sociais como o Grémio Literário – assim chamado, dizia o romancista,
porque se escrevia com letras –, uma vida social intensa naquela urbe que, após
anos de guerras civis, desacatos sociais e tumultos políticos, a paz da
Regeneração e as suas Obras tinham renovado e modernizado. E era, por fim, no
universo ficcional onde Eça montava os seus títeres com nomes, esse conjunto de
personagens que habitavam quase sempre em locais e bairros cuidadosamente
descritos por Eça, com uma ou outra invenção sua a partir do real, como a Toca
de Calos da Maia, nos Olivais (ou, talvez, o palácio do Ramalhete da família
dos Maias), cenários nada fictícios para os amores, brigas, sonhos, delírios,
simpatias e antipatias de gente viva que povoava o seu cosmo de escritor
realista com intenções, pelo menos a princípio da sua carreira, de ser um
“artista vingador” como declarava em carta a Teófilo, explicando, a propósito
d’O Primo Basílio, que queria pintar
a sociedade portuguesa tal qual a fizera o Constitucionalismo desde 1830, “e
mostrar-lhe, como num espelho, que triste país eles formam – eles e elas”
(carta de 12-III-1878).
Assim, postos diante da
tarefa de sumarizarmos estes dois universos – os personagens que evoluem em
Lisboa e os cenários em que o fazem – nas obras sobretudo tendo a capital como
cenário central, como Os Maias
(1888), A Capital! (póstumo), A Tragédia da Rua das Flores (póst.,
1980), A Catástrofe (ou A Batalha do Caia (póst.), O Mandarim (1880), A Relíquia (1887), O Primo
Basílio (1878), Alves & Cia
(póst.), O Conde de Abranhos
(póst.) e até O Crime do Padre Amaro (três versões: 1875, 1876 e 1880) – , somos
forçados a esboçar um inventário sucinto tanto dos topónimos e locais como dos
personagens que o romancista neles instala, o seu teatro de sombras realistas,
muitas vezes trágicas, quase sempre burlescas, satíricas, não fosse ele o nosso
maior humorista pátrio. Assim, muito em esquema, passemos em revisita o
essencial deste caleidoscópio novelesco de Eça.
4. As personagens e as suas casas
A) Teodoro, o amanuense que enriquece ao matar o mandarim
Uma das mais curiosas
figuras de Eça é o pobre amanuense do Ministério do Reino (hoje Administração
Interna), Teodoro, que o Diabo enriquece desmedidamente, alcunhado pelos amigos
como “Enguiço”, passando do modesto estatuto de manga de alpaca hospedado na
pensão da D. Augusta, no nº 106 da travessa da Conceição, perto da Rua do
Século, ao Chiado – Eça gostava de dar um número exacto para os endereços que
vai indicando, o que lhe permitiu situar o palacete da D. Patrocínio, a
horrorosa “Titi”, na actual morada do Patriarcado, no Campo dos Mártires da
Pátria –, ganhando os seus míseros
20.000 réís mensais à situação de nababo opulentíssimo, mudando-se então para o
Palácio Amarelo no Calhariz, perto dali, na Calçada do Combro, onde, numa
mansão ornada de quadros de Fortuny e Corot, leva uma “existência animal, grandiosa e cínica” [1] (de
que uma das poucas ilustradoras talentosas da obra de Eça, Raquel Roque
Gameiro, nos deu uma imagem gentil mas insuficiente, contrastando com o mesmo
enfezado burocrata que passava os domingos a fumar cachimbo e a ver a dona da
pensão a limpar com casca de ovo a caspa do tenente Couceiro (O Mandarim).
Toda esta mudança
resultara, por milagre duma sineta que o Diabo [2] lhe trouxera
com a tentação de matar um longínquo mandarim chamado Ti-Chin-Fu, na remota China,
recebendo em troca, e em libras, uma herança de 106 mil contos. O que não o
impediria de viver triste, roído pelo remorso, fazendo à China uma viagem que
pretendia fosse expiatória para compensar de algum modo aquele crime perfeito e
feliz, o que não conseguiu, voltando para Lisboa, onde é cruelmente perseguido
pela sua consciência ulcerada pela ilicitude do acto de tocar a campainha
assassina, o que o faz ver o vulto do mandarim morto a ocupar todo o espaço do
Arco da Rua Augusta. Neste conto, fiel ao seu sentido de mostrar o primado do real
sobre as aparências e fantasias que os homens engendram, Eça conta-nos em
poucas linhas a primeira decepção do recém-enriquecido Teodoro, o qual,
acabando de receber as letras sobre Londres e outras praças, desce da pensão à
pressa, desejoso de começar a levar uma vida sem preocupações mesquinhas,
decidido a assistir às touradas,
chamando para isso uma caleche vazia que passava. Mas o cocheiro responde-lhe
com brusquidão que a corrida custava dez tostões. E quando Teodoro lhe garante
que tem um bolso atulhado de letras que valem milhões, o homem da caleche
replica: “–Não pega!” E aquela bola de sabão resultante duma fortuna
miraculosamente recebida (e verdadeira) rebenta como se batesse na ponta dum
prego.
Noutro contexto, menos de
parábola e mais de romance “vingador”, de cariz realista, Eça servia-se do
mesmo imponente espaço do Terreiro do Paço para uma cena tipicamente de lavra
sua, ao pôr o fanático republicano Jácome Nazareno, que Artur Corvelo agora
frequentava na capital, na fase de militantismo rebelde, contar as instituições
políticas e sociais vigentes, a mostrar-lhe a praça dos ministérios,
reedificada pelo marquês de Pombal, com o solene e parado rei a cavalo no
centro, dizendo ao poeta, apertando com cólera o cabo do seu guarda-chuva:
“– Que sociedade, que
asco! (...). Portugal não deve ser reformado (...), deve ser queimado a nitrato
de parta...(...). Tudo isto precisa ser arrasado!” [3]:
aquele conjunto de edifícios pesados e antiquados que representavam
para o jovem fanático a personificação do Banco e do seu ágio, da Alfândega e
os seus direitos, dos Ministérios e o seu burocratismo (A Capital).
B) Acácio ou o vazio da intelligentzia
da Regeneração
A Lisboa de Eça é também
um conjunto de figuras romanescas e as suas residências, tais como Acácio e ao
seu apartamento num 3º andar da rua do Ferragial de Cima (hoje Rua Victor
Cordon), ao Chiado. Alto, amancebado com uma criada que era, diz Eça, “vesga e
suja como um esfregão”. Era aqui que, para celebrar o seu grau de cavaleiro
outorgado pela comenda de S. Tiago – a mesma que José Saramago havia de
receber, e também por excelências literárias –, o antigo director-geral do
mesmo Ministério do Reino oferece um jantar a um grupo de amigos íntimos,
entre os quais estão, além do marido de Luísa e os convivas habituais da sua
casa na calçada da Patriarcal Queimada (ao Príncipe Real), como Julião e
Sebastião, se juntam o jornalista Saavedra, d’O Século (que na altura da publicação deste romance ainda não
existia) e o Sr. Alves Coutinho, também burocrata do mesmo Ministério do
hospedeiro agora homenageado pela comenda governamental. Esta longa cena do
jantar acaciano [4] constitui um verdadeiro morceau de bravoure do nosso romancista,
na medida em que, por um lado, nos mostrava Acácio como um antipático emblema
dos defeitos intelectuais e políticos do regime constitucional, desde a
hipocrisia à vácua pompa oratória – podia fazer-se uma antologia de expressões
e afectadas frases feitas do conselheiro –, e, por outro, punha a nu a mentalidade
rasteira duma sector da burguesia ali representada naquele ágape simbólico onde
todos os pormenores, desde a Carta Constitucional encadernada e a biblioteca do
calvo e pálido conselheiro aos seus livros eróticos (anedotas de Bocage),
guardados na sua mesinha de cabeceira, até à litografia religiosa deste
político que se dizia anticlerical e solteiro, mas que dormia na cama com a sua
serviçal chamada Filomena, ao comportamento das restantes figuras presentes
sumarizam, assim, toda a sociedade, desde a sua medíocre e convencional intelligentzia
aos seus burocratas e homens da imprensa.
C) A família Maia e as suas duas casas
Duas casas representam
uma família do Norte estabelecida no centro político e social do país, os
Maias: o Ramalhete, o imponente palacete em Santo Amaro , esse
“sombrio casarão de pedras severas, com um renque de estreitas varandas de fero
no primeiro andar (...), com o aspecto tristonho de residência eclesiástica que
competia a uma edificação do reinado da senhora D. Maria I”( Os Maias) [5], e o ninho
amoroso da Toca, nos Olivais (zona onde também Croft tem uma quinta
apalaçada), onde Carlos da Maia e Maria Eduarda vivem o seu amor incestuoso,
razão da queda da casa Maia. Quanto ao Ramalhete, ficava este, escreve Eça, no
bairro das Janelas Verdes. Mas nada nos impede de pensar que o romancista,
frequentador da casa dos Sabugosas, fosse aquela que A. Campos Matos, no seu Portugal queirosiano considera ser o
modelo do solar dos Maias, na referida zona de Santo Amaro (na rua hoje
designada por Primeiro de Maio, mesmo debaixo da ponte sobre o Tejo). A mansão
de Ramalhete constitui um dos símbolos mais evidentes de uma casa amaldiçada, a
casa Usher duma família cuja existência, desde o Antigo Regime à Regeneração,
sumariza os transes por que passou Portugal com as dramáticas reformas do pombalismo,
depois os traumas violentos das invasões francesas, os exílios da burguesia
liberal portuguesa em França e na Inglaterra, o regresso da geração europeia a
Portugal com as armas na mão, as intermináveis guerras civis subsequentes, o
cabralismo como um dos meandros mais escabrosos desse itinerário social e político
em busca duma forma de apaziguamento compatível com a modernização da sociedade
e o progresso material esperado, até que a fórmula de equilíbrio das facções
vencedoras no processo do liberalismo e dos interesses em causa achassem uma
solução viável e sustentada, perdurável, que se iniciava com o golpe de 1851 e
a entronização de Rodrigo da Fonseca e de Fontes como próceres dum novo regime
copiado dos cânones constitucionais monárquicos da Europa de então.
"A Toca", nos Olivais. Quinta do Contador-Mor
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Agora, com a pax regeneratoria do fontismo e das suas Obras, da Carta e dos seus
partidos, a geração do próprio Eça e das suas personagens como Carlos da Maia e
João da Ega, parecia apta a regenerar de facto o país, o que não sucedeu, como
depressa as crises políticas, económicas, financeiras e sociais, sobretudo no
pós-Ultimato britânico, mostrariam. Uma espécie de mácula original – “the stamp
of one defect”, como se exprimia Hamlet – corroía os propósitos mais altos,
maculava as almas, deturpava as acções e empurrava o país, dirigido por cegos
condutores de cegos (entre eles o funesto “filósofo” Oliveira Martins, o
trânsfuga dos Setentistas), num ritmo de can-can
offenbaquiano, para a catástrofe. E a mansão dos Maias, neste torvelinho de
desatinos e erros, simbolizava, como adiante voltaremos a referir, a dança
macabra nacional. Todavia, o símbolo mais grave e fatídico do Ramalhete está no
“segredo ascoroso” [6] que a contamina aquela
casa e aquela família através dos amores incestuosos entre Carlos da Maia e
Maria Eduarda – tema tão próprio da tragédia grega, à maneira das relações
entre Édipo e a sua mãe, agravadas pelo parricídio, e cuja terrível
auto-consciência ou anagnosiris leva
o rei de Tebas, acabrunhado pelo reconhecimento do incesto e do crime de matar
o pai, o enche dum horror tal que acaba por vaza os olhos –, agora, n’Os Maias, agravado pelo facto de o neto
do velho Afonso prosseguir na sua relação carnal com a irmã mesmo depois de
saber que ela é sua irmã, o que aniquila o patriarca. [7] Como
o disse Blake:
“O Rose, thou art sick!
The invisible worm
That flies in the night,
In the howling storm
Has found out thy bed
Of crimson joy,
And his dark secret love
Does thy life destroy.”
(William Blake, “The Sick Rose”).
Eis, exposto
simbolicamente em duas quadras, resumido o drama grego do Ramalhete e das suas
personagens condenadas ao fracasso por via dum segredo negro que as infecta e
destrói. Compreende-se que o pessimismo decadentista dum Fialho o tivesse
levado a ver Eça, n’Os Maias, como disse, a “rufar no tambor
da chacota, a dança macabra deste final de século” (Fialho de Almeida, Pasquinadas): este romance saía pouco
antes do termo do reinado de D. Luís e antecipava profeticamente o descalabro
que conduziria fatalmente ao despenhadeiro que Portugal conheceria na década
seguinte. Recordemos de modo sucinto a trajetória trágica da família Maia.
Contra a vontade de Afonso, o seu filho único Pedro casara com Maria Monforte,
chamada “a negreira” por ser filha dum homem que praticara um crime de
assassinato e que enriquecera levando
escravos para o Brasil e para as
Caraíbas. O casal passara a lua de mel pela Europa e, no regresso, para não
ter de os ver, Afonso retirara-se para Santa Olávia, deixando-os a habitarem o
solar de Arroios. Deste casal nasceram dois filhos, primeiro Maria Eduarda e,
mais tarde, Carlos Eduardo. A relação adúltera de Maria Monforte com Tancredo,
um italiano, seria o começo duma existência agitada através da Europa, levando
consigo a filha Maria Eduarda, primeiro para Viena, depois para o Mónaco, onde
Tancredo morreria, indo então para Paris, sendo a menina internada algum tempo
num convento em Tours, depois habitando num terceiro andar duma casa na chaussée d’Antin, em seguida, acabada a
relação com o dúbio Sr. Trévernes, na companhia dum irlandês chamado Mac Gren,
até que a guerra franco-prussiana levara a antiga mulher de Pedro da Maia a
partir para Londres. Maria Monforte confiaria os papéis de identidade da filha,
guardados numa caixa de charutos lacrada, ao tio de Dâmaso, o Sr. Guimarães, um
português que traduzia notícias dos jornais espanhóis para um jornal francês,
acabando aqueles por serem transmitidos a João da Ega, acabando Carlos Eduardo
por os receber, passando então a saber a identidade da amante com a qual vivia
na Toca, a sua irmã Maria Eduarda, cujo retrato, ao suicidar-se, destruíra,
assim como o do seu filho. O “ascoroso segredo” finalmente revelado desta
relação incestuosa não impediria Carlos da Maia de passar ainda algumas noites
com aquela que ele já sabia ser sua irmã, facto de que Afonso da Maia se dera
também conta e que o fulminaria. Quanto à figura de Pedro da Maia, Eça faz
dele um romântico típico, uma figura cheia de melancolias negras, em tudo
fraca, um ser em tudo abatido que, depois duma adolescência vazia e de
frequentar lupanares e botequins, e sem ter efeito quaisquer estudos
universitários, se apaixonaria pela “negreira” Maria Monforte, sendo,
finalmente, por esta abandonado e deixando de saber da sua filha que a mãe
levara consigo para a existência dissoluta pela Europa. Pedro acabaria por se
suicidar com um tiro de pistola, deixando uma carta ao pai Afonso e destruindo
os retratos que tinha dos dois filhos, o que facilitaria o equívoco na origem
do incesto deles. N’A Tragédia da Rua
das Flores, Eça já usara dum processo semelhante para criar uma relação
incestuosa entre Vítor e Genoveva, com culminando no suicídio desta ao
descobrir que era a mãe do seu amante;
veja-se o que sobre este ponto dizemos no nosso prefácio a este romance.
D) O conde de Gouvarinho, arquétipo do político constitucional
O conde de Gouvarinho, do
Partido Progressista, e cuja mulher tem uma ligação amorosa com João da Ega (o
“demagogo de Celorico”, assim o define Eça), representa, ao lado de Conde de Abranhos,
uma das caricaturas mais acabadas e mais ferozes dum regime político que o
antigo dissidente das Conferências Democráticas do Casino se aplicou a
denunciar, como “artista vingador”, na sua primeira obra romanesca. Vivia ele
na rua de São Marçal, a dois passos do jardim do Príncipe Real. Tal como Abranhos,
Gouvarinho é um cretino e um homem cheio de dívidas. “Um asno, um caloteiro!”,
resume-o assim o marquês de Souselas. E como Eça não podia deixar de o afligir
de um mal comum a toda a sua classe política, o conde era também um marido
enganado. Muito interessado por África – sobre a qual nada sabe –, sonha vir a ser
ministro da Marinha, o que parece confirmar-se quando o ministério Sá Nunes se
forma. A sua caricatura é feita pelo ingrato João da Ega, já que, além de lhe
roubar a mulher, o criva de sarcasmos, designando-o como “robustíssimo
talento.”
A ligação de Gouvarinho a
África não deixa de significar um pormenor de Eça, quase sempre céptico sobre
as nossas colónias, a sua desconfiança quanto ao colonialismo como via de
redenção nacional: desde as sátiras às nossas colónias nas Farpas às obras romanescas do seu período mais crítico, Eça não
acertava com os cânones regeneratórios coloniais destes Gouvarinhos – fossem eles
as figuras reais chamadas Pinheiro Chagas ou António Enes – que se extasiavam
com a obra “civilizadora” de Portugal em África. Quanto às ideias de Gouvarinho
em política ultramarina, elas são deveras grotescas, sobretudo porque ditas em amena
conversa com o provocador e demagogo nato de Celorico:
“Mas eu lhe digo, meu
querido Ega, nas colónias todas as coisas belas estão feitas. Libertaram-se já
os escravos; deu-se-lhes já uma suficiente noção da moral cristã; organizaram-se
já os serviços aduaneiros... Enfim, o melhor está feito. Em todo o caso há
ainda detalhes interessantes a terminar... Por exemplo, em Luanda... Menciono
isto apenas como um pormenor, um retoque mais de progresso a dar. Em Luanda,
precisava-se bem um teatro normal, como elemento civilizador!” (Os Maias). Raros ministros das colónias
teriam ido tão longe na sandice ou no cretinismo tão descabelado como este, mas
a verdade é que foi sobre esta cultura intelectual e ultramarina que se
edificaria, até 1974, uma política colonial, desde Andrade Corvo a Marcelo
Caetano, ainda que estes casos citados não descessem tão fundo na via da tolice
que Eça satirizava naqueles termos referidos.
E) Alípio Severo de Noronha Abranhos, canalha moral e biltre político
Alípio Severo de Noronha
Abranhos, nobilitado por D. Luís como conde de Abranhos, é uma das mais
repulsivas – e até excessivas – figuras de Eça sub specie polticae: sequioso de poder que não hesita perante
nenhuma ignomínia, recorrendo a todos os estratagemas para atingir os seus fins
de ascensão social e política e não cedendo a nenhum escrúpulo, Rastignac
levado a um grau extremo de velhacaria e canalhice, características duma hybris que talvez esteja na origem do
pouco apreço por esta novela deixada inédita (O Conde de Abranhos só seria publicado em 1925 pelo filho do romancista).
Contudo, essa narrativa da ascensão dum bandido político tem todo o interesse
para se compreender melhor, como antevisão profética, o que daria, em termos
reais, o ideário ultramontano, clerical e pré-corporativo de Alípio, como
evidente prefiguração duma casta que havia de proliferar de modo intenso
durante a Ditadura salazarista, realizando, como se diz nesta obra, a arte
governativa de “tiranizar o Pais com o aplauso do cidadão e em nome da
liberdade” (Conde de Abranhos)
durante o regime monárquico-constitucional, ao longo da efémera e atarantada
República e, já sem precisar de apelar ao nome da Liberdade, durante a Ditadura
praticada de 1926 a
1974. Tendo algumas semelhanças com o dementado João Franco e os seus tentames
de instaurar um regime ditatorial, o conde aparece mais, nesta perspectiva
comparatista de estilos ou de regimes, como um precursor do salazarismo e do
seu antipático e mesquinho ideário e das suas duras e implacáveis práticas
repressivas.
Melhor do que os
Gouvarinhos, Sousas Netos, Pachecos e Acácios, este emblema humano e político
do nosso constitucionalismo e dos seus defeitos e taras surge-nos, deste modo,
como uma antevisão deprimente mas acertada do que seriam os nossos erros
acumulados ao longo do século XX. Os dislates do conde de Abranhos no sentido
de eliminar a “livre crítica”, sobre as alegadas virtudes superiores do clero,
sobre os efeitos nefastos da leituras democráticas, sobre as vantagens da
Sebenta no ensino superior, sobre as inultrapassáveis divisões sociais entre
governantes e trabalhadores, sobre os malefícios do individualismo, sobre o
respeito servil das autoridades e vantagem de dar uma fé sólida aos operários,
“preparando-lhes no Céu banquetes de luz e bem-aventurança” (O Conde…), não são apenas delírios dum
arqui-reaccionário demente, já que, sob o nome de Integralismo Lusitano, corporativismo
e Estado Novo, vigorariam, mutatis
mutandis, durante quase meio século, com a expressão obviamente inerente a
semelhante código de valores. O velhaco melífluo e abjecto nascido em Penafiel
em 1826, depois deputado por Freixo de Espada-à-Cinta – círculo que ele julgava
no Minho e não em Trás-os-Montes, assim como, já ministro da Marinha, supunha
Moçambique situado na costa ocidental africana... –, teria, como homem e como
estadista, o seu mais legítimo continuador no professor coimbrão nascido em Santa Comba Dão em
1889. Não espanta, assim, que Salazar nunca tivesse Eça em grande apreço!
No aspecto da presença de
Alípio em Lisboa, uma das cenas mais curiosas desta novela é aquela em que o
conde, posto na contingência de ter de se bater em duelo com o deputado Peixoto,
o “Peixotinho”, no Lumiar – ele que é cobarde e manhoso –, sofrendo num segundo
andar daquele largo do Barão de Quintela uma noite de agonia – no mesmo largo
onde, mais tarde, se havia de erigir, em 1903, a estátua de Teixeira de Lopes a
Eça –, pensando em fazer testamento, desejando que houvesse uma revolução ou um
incêndio que devorasse metade da cidade, ou ainda uma catástrofe social, ficando
a olhar “desesperadamente para a tenebrosa pacatez” daquela praça. O temido
duelo à espada acabaria por se realizar, embora dele resultassem para Alípio
simples ferimentos numa orelha, sendo a honra dos duelistas dada como
satisfeita, dividindo-se a imprensa em apreciações opostas quanto ao
comportamento dos dois adversários nele envolvidos: os vómitos de Alípio foram,
é claro, ridicularizados pelos jornais do governo, enquanto os da oposição
louvaram o sangue da orelha derramado por Abranhos.
F) Luísa, a burguesinha lisboeta
Ao criar a figura da loira
e graciosa mulher do engº Jorge de Carvalho, Eça quis representar nesta bela e
fútil jovem ociosa, o paradigma da burguesinha de Lisboa, entediada na sua paz
doméstica, romanticamente desejosa duma grande aventura amorosa, o que poderia,
um dia, viver com o cosmopolita playboy
Basílio, o primo rico que residia em Paris e a vem visitar um dia na calçada da
Patriarcal Queimada, uma artéria pequena, estreita e muito inclinada, onde o
azedo comerciante e fanático republicano Paula dos Móveis, que tem uma loja de trastes
velhos a dois passos e a espreita movido por sinistras suspeitas, já que a
julga capaz, como todas as “senhoras da alta”, das maiores ignomínias. Adaptação
lusitana, mutatis mutandis, da Emma
Bovary do seu idolatrado Flaubert, a loira Luísa, chantageada pela criada Juliana,
a “isca seca” (O Primo Basílio), acaba
por morrer duma súbita e fulminante febre depois de saber a sua paixão pelo
primo playboy descoberta pelo pobre
Jorge.
Durante uma ausência deste no Alentejo, Luísa realizara o seu sonho de paixão romântica, não no quadro faustoso que imaginara, mas num lôbrego 3º andar dum prédio para os lados de Arroios, onde a Lisboa de então acabava: este sórdido e cruelmente irónico “Paraíso”, como chamara Basílio ao alugado ninho de amor, constituía, deste modo, o perfeito anticlímax anti-românico que Eça opõe aos delírios sentimentais e fantasias bovaristas duma burguesia feminina tonta e fútil, cheia de leituras como A Dama das Camélias ou os romances de cavalaria de Walter Scott.
G) A “titi” Patrocínio, o seu palacete e os roupetas que lhe cobiçam a
fortuna
Eça tinha um inegável
pendor para criar mulheres horrorosas, como esta, a que ele mesmo chama “a horrenda
senhora”, a sinistra tia de Teodorico Raposo – o “Raposão” que iria a Jerusalém
para poder saciar a sua libido reprimida na capital, ou, nas cruas palavras do
interessado, para “fartar o bandulho” (A
Relíquia), sendo, porém, castigado pois de lá traz, por lapso freudiano, a
camisa da luveira inglesa Mary em vez do coroa de espinhos que cingiu o Mestre
fundador do cristianismo, o que lhe vale ser deserdado e expulso do palacete da
tia, passando a viver de venda de falsas relíquias da Terra Santa –, isto é, a
opulenta D. Patrocínio das Neves, viúva muito rica, proprietária dum palacete
no Campo de Sant’Ana (hoje Campo dos Mártires da Pátria), no nº 26 dessa praça
onde tinham sido executados os conjurados anti-ingleses de 1807. A fanática inimiga da Natureza, que ela acha
“obscena” por ter criado dois sexos, a implacável perseguidora de Eros, a
descaridosa parente dum desgraçado, o Xavier – primo do rico comedador G. Godinho,
um tuberculoso que vive amancebado com uma espanhola, num casebre miserável na rua da Fé, mas que a “Titi” se recusa a auxiliar,
justificando a sua recusa nestes termos: “– Que se aguente!... É o que sucede a
quem não tem temor a Deus e se mete com bêbadas... Não tivesse comido tudo em
relaxações!” (A Relíquia).
A “Titi” D. Patrocínio
também suspeita o seu jovem sobrinho de praticar “relaxações” semelhantes,
apesar deste hipócrita fariseu alardear uma intensa devoção em inúmeras igrejas
e capelas de Lisboa – como as igrejas das Albertas, das Chagas, da Pena e das
Picoas –, viver assistido por dois sacerdotes, seus guias espirituais, os Padres
Pinheiro e Casimiro, a que se somaria ainda o torpe padre Negrão, mais o Dr. Margaride,
juiz aposentado, e o tabelião Justino, sem esquecer a cozinheira Vicência. O
romance mostraria a vida do infeliz “Raposão”, primeiro como vendedor de relíquias
até que Lisboa ficasse saturada delas (água pura do Jordão, pedaços da bilha de
Nª. Senhora, ferraduras do burrinho no qual a Sagrada Família fugiu para o
Egipto), havendo mesmo alguém que protesta, dizendo a Teodorico: “São ferraduras
de mais para um país tão pequeno!”, até que, vivendo miseravelmente na
Travessa da Palha, o companheiro de viagem à Terra Santa do Dr. Topsius tiver
um diálogo revelador com uma imagem de Jesus, que é, afinal a voz da Consciência,
resgatando-se, por fim, ao retomar um trabalho normal numa firma comercial do
seu antigo colega Crispim, sendo recompensado com o casamento com Jesuína, a irmã
do seu patrão, doravante curado de hipocrisias e devoções espalhafatosas,
depois de, numa Jerusalém sonhada, ter assistido ao calvário do próprio Cristo.
H) O patriota anónimo do largo
do Pelourinho – ou Portugal invadido e conquistado pela Espanha
Eça imaginou, como remate
duma decadência pavorosa e imparável, Portugal invadido e conquistado pela Espanha,
criando um narrador anónimo que nos conta que esse terrível ordálio seria, ao
fim e ao cabo, o paradoxal despontar dum resgate futuro, provocado por aquele
choque extremo. Esta personagem vive na esquina do largo do Pelourinho (hoje
largo do Município), num desses “arruamentos tristes da Baixa” (como se exprime
Eça), num 2º andar diante do Arsenal. Esta parábola externa do nosso romancista
pretendia ser uma espécie de provocação patriótica diante de uma situação
nacional que ele considerava catastrófica, projecto que abandonaria no seu
espólio, entre os mais inéditos que não chegou a tentar reformular. Apesar de
ser um fragmento inacabado e curto –
cerca de 11 páginas impressas na edição saída postumamente, em 1925, a
cargo do seu filho José Maria –, este esboço, além da ousadia da ideia de
imaginar o nosso país reconquistado pelo vizinho espanhol, constitui um dos
aspectos menos considerados pelos estudiosos do nosso romancista, provavelmente
desinteressados diante de tão anómala extravagância imaginativa. A verdade é
que este patriota imaginando – na fase em que escrevia diversos livros que ficariam
por publicar em vida do autor, entre eles O
Conde de Abranhos, redigido talvez em 1879 – uma espécie de prefácio moral a uma
tragédia como a da Espanha nos invadir pela fronteira do Caia, tomando como
pretexto a nossa intolerável decadência como país, estava na linha mais lógica
dum certo incurável pessimismo nacional que se havia de exprimir, de forma mais
complexa e sinfónica, na sua obra-prima, Os
Maias – editado em 1888 –, também destinado a mostrar, até pela parábola da
mansão de fatum do Ramalhete e dos
seus proprietários, como o nosso país caminhava para o despenhadeiro.
5. Lisboa em dois símbolos maiores: os monumentos a Camões e aos
Restauradores
O pessimismo nacional a
que nos referíamos tem na obra de Eça dois momentos salientes, na cena final d’O Crime do Pe. Amaro (três versões, entre
1875 e 1880) e no opus magnum queiroziano, Os Maias. No primeiro, o sacerdote que engravidaria Amélia, suscitando
um escândalo por via dos seus amores, sendo mandado, como castigo, para Santo
Tirso. A sua primeira paróquia, mal saíra do seminário, graças à protecção do
conde de Ribamar, tinha sido Feirão, uma terreola perdida na serra da Gralheira.
Depois de transferido, como castigo, para Santo Tirso, Amaro, decidido a retomar
uma vida menos apagada, viera a Lisboa falar com os seus protectores, de
maneira a ser mudado para uma localidade menos agreste, talvez Vila Franca de
Xira. E é nessa visita à capital – onde o Ministro da Justiça e Cultos decide
da colocação dos sacerdotes –, que o sacerdote que maculara gravemente a sua
função em Leiria encontra o cónego Dias no Chiado, num momento de grande
comoção política, tanto nacional como estrangeira, uma vez que os telegramas da
Havaneza do Chiado trazem, a todos o momento, notícias da violenta guerra civil
que se trava em Paris contra os homens da Comuna. Esse encontro dos dois padres
é logo em seguida reforçado com a presença ocasional dum político de grande importância,
o Conde de Ribamar, muito parecido, tanto nas ideias como no mais, com os
outros congéneres seus na obra eciana, como Alípio de Noronha Abranhos ou Gouvarinho.
E a cena que nos interessa pelo seu evidente intuito simbólico é aquela em que,
no Chiado e, em especial, junto da estátua do Bardo nacional, os três homens,
dois padres e um político, conversam sobre Portugal e o mundo ao lado do bronze
de Camões, ali inaugurado em 1867. Lembremo-la.
Nesse romance editado
pela primeira vez em 1875, Eça imaginava o desfecho simbólico, tanto do ponto
de vista político como cultural e até sociológico, da sua obra anticlerical,
pondo os três homens acima referidos – o padre Amaro, o cónego Dias e um
político influente (o conde de Ribamar) – a
discorrer sobre a glória confiante da Pátria, isto em fins de Maio
de 1871, com a Comuna de Paris a agonizar, enquanto em volta o romancista nos
mostrava, com um realismo cruelmente irónico, símbolos patentes de miséria,
decadência e abaixamento generalizado da vida e da sociedade portuguesas:
tipóias vazias, senhoras derreadas e duma palidez de raça degenerada, um ou
outro moço fidalgo depois de uma noite de estúrdia e vinho, gente estirando-se
pela praça, num torpor de vadios, um carro de bois a passar pelo largo do Loreto,
fadistas gingando de cigarro nos dentes, um ou outro burguês enfastiado, a ler
os anúncios de operetas, operários de faces enfezadas... Em suma, todo um
“mundo decrépito (que) se movia lentamente, sob um céu lustroso de clima rico”.
E Eça, a terminar, lembra que no largo havia um casario feito de casas de
penhores, duas fachadas de igrejas, quatro tabernas e, chegando das ruas em
volta, prostitutas e criminosos (O Crime
do Pe. Amaro, ed. de 1880). E o romance rematava com estas linhas:
“E o homem de Estado, os
dois homens de religião, todos os três em linha, junto às grades do monumento,
gozavam de cabeça alta esta certeza gloriosa da grandeza do seu país, – ali ao
pé daquele pedestal, sob o frio olhar de bronze do velho poeta, erecto e nobre,
com os seus largos ombros de cavaleiro forte, a Epopeia sobre o coração, a
espada firme, cercado de cronistas e dos poetas heróicos da antiga pátria –
pátria para sempre passada, memória quase perdida.” (O Crime do Pe. Amaro): Eça exprimia aqui, sob a forma dum
pessimismo nacional dificilmente ultrapassável, a sua visão amarga da Pátria,
através do seu emblema mais alto de excelência cultural, o Bardo que a cantara
em estrofes imorredouras, oito anos antes da Espanha a conquistar e ocupar.
Em 1888 editava-se Os Maias, a obra mais poderosa e
ambiciosa do nosso romancista, tanto pela sua vontade de fazer uma espécie de
sinfonia portuguesa, histórica, psicológica e simbólica, como dar-nos, como
diria na altura Fialho, uma espécie de “dança da morte” nacional. De facto,
tomando na sua simbologia trágica profunda o caso do incesto entre Carlos
Eduardo e Maria Eduarda, este romance pode ser tomado como um verdadeiro requiem duma geração falhada, um canto fúnebre
sobre Portugal e o seu destino, a pavorosa decadência de três gerações – Afonso
da Maia, Pedro da Maia e Carlos da Maia – a caminho dum desmoronamento
colectivo. Por outro lado, nele se plasmava – com o “falhámos a vida, menino!”
– o fracasso dos ambiciosos propósitos reformistas da geração de 70. João da
Ega e Carlos da Maia – o escritor que nunca publicara o seu romance e o médico
que nunca curara um único doente – eram, de algum modo, os representantes dessa
geração que fizera a Rolinada em Coimbra e, depois, reunida em Lisboa em torno
de Antero, lançara do Casino Lisbonense, no largo da Abegoaria – hoje largo
Rafael Bordalo Pinheiro, ao Chiado –, as suas atrevidas conferências que Ávila
e Bolama mandara encerrar.
Largo da Abegoaria (Trindade)
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Agora, no final d’Os Maias, Carlos voltava a Portugal
depois duma voluntária expatriação para esquecer o deplorável caso de incesto
que ajudara o seu avô Afonso a morrer de desgosto, e, com o antigo “Mefisto de
Celorico” – aquele que, vestido também de Mefistófeles, fora ameaçado de ser
expulso a pontapé da casa do banqueiro Jacob Cohen, quando este descobrira a
sua ligação com a mulher Raquel – faziam um giro pela velha Lisboa, passando
pela estátua esculpida por Vítor Bastos, e dirigindo-se, depois, para o antigo
Passeio Público, acabam por se deparar com o recente monumento aos
Restauradores, na praça do mesmo nome, e neste trajecto se sintetiza todo o
sentido simbólico que, desde o romance sobre um padre indigno em Leiria e o seu
crime, até à geração dos que agora se passeavam pelo centro dessa Lisboa que a
Regeneração refizera, se mostrava a evidência confrangedora da realidade
indesmentível: Portugal era uma “pátria perdida”, uma nação falsamente viva que
os conjurados de 1640 tinham julgado fazer ressurgir do túmulo cavado pelo
desastre marroquino de D. Sebastião e durante seis décadas reforçado pela
ocupação estrangeira. E que o Tricentenário Camoniano de 1880 dissera
ressurrecto pelo mero encantamento das palavras, do enganador poder da oratória,
essa mendaz oratória que produzira um regime de Acácios, Gouvarinhos e Abranhos.
Intimados pelo velho Afonso da Maia a passarem à acção, a fazendo a tal
“revolução” de que tanto falavam ou, como se exprimia o blagueur João da Ega, no meio da “prodigiosa imbecilidade nacional,
o homem de senso e de gosto deve limitar-se a plantar com cuidado os seus legumes.
Olhe o Herculano...” Ao que o velho Afonso da Maia replica: “– Pois então façam
vocês essa revolução. Mas, pelo amor de Deus, façam alguma coisa!” (Os Maias.). E agora, no desfecho do
magno romance, alguns anos passados, decorrida a década de “nojo” de Carlos
Eduardo após a morte do avô e a ruptura com a irmã que fora sua amante, os dois
amigos, depois duma volta pela cidade, concluem : “- Falhámos
a vida, menino!” Esta fala é de Ega, à qual Carlos acrescenta este comentário:
“Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é, falha-se sempre na realidade
aquela vida que se planeou com a imaginação.” E logo, a estas declarações
metafísicas de invencível pessimismo nacional, encena Eça, como antítese, o seu
habitual gag de anticlímax, pondo os
dois amigos a correrem atrás dum transporte público, bradando: “– Ainda o apanhamos! – Ainda o apanhamos!”
A decadência e o
abaixamento nacionais, que os referidos três homens negavam, no desfecho d’O Crime do Pe. Amaro, fora agora
sublinhado e garantido, no vasto romance de 1888, como definitivo, insuperável,
pois um fado funesto pesava sobre os portugueses, fossem eles os melhores, os
mais cultos, os mais lúcidos – como os membros que uns anos antes tinham
querido derrubar Jericó com as zombarias estridentes das suas trombetas
juvenis. Ao beato auto-enternecimento do conde de Ribamar, gargarizado junto do
poeta estatuificado em bronze por Vítor Bastos, respondia agora o fracasso patente
de toda uma classe política, obstinadamente convicta da sua excelência, cega
perante o seu próprio fiasco como geração, elite, quadros dirigentes, organização
política ou social, desígnio colectivo ou finalidade no concerto das nações
europeias, dando-se ainda ao luxo grotesco de querer civilizar a África negra...
Do Loreto ou Chiado à praça dos Restauradores,
a mentira colectiva era a mesma. já que não éramos a “inveja da Europa” (O Crime…), nem havia paz nem
prosperidade reais neste rectângulo da geografia ibérica, antes caminhávamos,
como a crise do Ultimato britânico mostraria, para humilhações e descalabros
ainda maiores. Como uma vez
o dissera Hegel, numa frase que Marx repetiria no seu O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, “todos os grandes
acontecimentos e personagens históricas se repetem, por assim dizer, duas
vezes” acrescentando o discípulo materialista: “Ele esqueceu-se de acrescentar,
a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa” (Marx, Luttes de Classes en France, Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte).
Cremos que, no tocante ao mundo histórico e cultural do nosso séc. XIX, essa
frase devia ser alterada para: tudo se
repete, a primeira vez como comédia, a segunda como farsa. De facto, o
jovial galope de Offenbach era um ritmo de comédia, enquanto a dança da morte
desde a fase terminal da monarquia representativa à década e meia de
pseudo-República demoliberal que se lhe seguiu se inscreviam num processo
trágico de catástrofe, a que a interminável Ditadura antidemocrática rematava
em síntese de catalepsia aqueles dois atos anteriores. Eça soube, na sua obra,
sobretudo na dança dos mortos d’Os Maias,
mostrar, como algum sentido profético, como o gaiato offenbaquismo da
Regeneração havia de derrapar em procissão fúnebre no século XX.
João Medina
Bibliografia:
Estudos:
João Medina, Eça político. Ensaios sobre aspectos
politico-ideológicos da obra de Eça de Queiroz, Lisboa, Ed. Seara Nova,
1974. –Eça de Queiroz e a Geração de
Setenta, Lisboa, Moraes Editores, 1980. –As Conferências do Casino e o Socialismo
em Portugal, Lisboa, Dom Quixote, 1984. –A Geração de 70, uma Geração revolucionária e europeísta, Cascais,
C. M. de Cascais, 1999. –Reler Eça de Queiroz:
das Farpas aos Maias, Lisboa, Livros Horizonte, 2000. –Eça, Antero e Victor Hugo, estudos sobre a cultura portuguesa do século
XIX, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2001. Artigo “O
anticlimax como processo de humor queiroziano”, Revista da Faculdade de Letras, Lisboa, nº 27, 5ª série, 2003,
pp.157-165 (separata). –“Eça, romancista de Lisboa”, revista Mealibra, nº 25, Viana do Castelo,
2010/2011, pp. 55-73, com fotografias de A. Campos Matos.
Alfredo Campos Matos, –Imagens do Portugal queirosiano, Lisboa, Terra
livre, 1976 (2ª ed.: Lisboa, Livros Horizonte, 2004). –Dicionário de Eça de Queiroz, 2ª ed., Lisboa, Caminho, 1993. –Eça de Queiroz. Fotobiografia, Lisboa, Caminho,
2007. –Eça de Queiroz . Uma biografia, Porto, Edições Afrontamento, 2009, ilustr..
Obras de Eça de Queiroz citadas:
Eça de Queiroz, “O Francesismo” (1887),
in Últimas Páginas, Porto, Lello
& Irmão, s.d.
A Capital! (Começos duma carreira), ed. lit. Fagundes Duarte, Lisboa, INCM, 1992.
Correspondência,
Porto, Lello & Irmão, 1963,
O Mandarim,
Porto, O Conde de Abranhos, Lello
& Irmão, s.d.,
O Crime do Pe.Amaro. Cenas da vida devota, edição de H. Cidade Moura, Lisboa, Livros do Brasil.
A Tragédia da Rua das Flores, fixação do texto e notas de João Medina e A. Campos Matos,
Lisboa, Moraes Editores, 1980, pref. de J. Medina.
"pátria para sempre passada, memória quase perdida" - O Crime do Padre Amaro não é o melhor romance de Eça mas valeria só por esta frase naquele cenário
ResponderEliminarPóvoa DE Varzim.
ResponderEliminarE não "do".