Fui preso no dia 13 de Julho de 1977, que nesse ano não
calhou a uma sexta-feira. Tínhamos vindo a fugir à frente da polícia de choque
pela Graça fora desde o Tribunal Militar de Santa Clara, onde dava início o
julgamento de Rui Gomes. Mais leves, astutos e atléticos, sempre que ganhávamos
avanço sobre a carga policial retorquíamos com uma chuva de pedras. Nesta
curta Longa Marcha chegou-se ao Largo de Sapadores.
Pareceu-me perigosíssimo para a revolução democrática popular
que dois tão centrais quanto clandestinos dirigentes do querido partido, Acácio
Barreiros, que em público era deputado pela UDP, e o Grande Líder Eduardo
Pires, estivessem postados em conspirativa cavaqueira à entrada de Sapadores,
enquanto os bófias faziam agora um movimento de pinça para nos cercar.
Diligente, avisei-os que retirassem, olharam-me com o enfado de velhos generais
e foram andando enquanto eu decidi heroicamente protegê-los com mais pedradas.
Nisto oiço um grito e um apito. Um cívico de ronda, emulado
pelo ambiente de batalha, apontava-me a arma de serviço, reclamando que me
rendesse. Corri, perseguiu-me um carro nívea, fui catado – com os bolsos cheios
de pedras.
Cartaz da manif
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jornal "Página Um"
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Lá vai tudo a caminho da esquadra dos Caminhos de Ferro. O mais
exaltado era o condutor, um homem pequenino que decerto não era bailarino.
Virava-se para trás largando as mãos do volante, não só para me exibir o
bigodito adolfico como para me regalar de cacetadas a eito; sem discernimento
para fazer pontaria, algumas acertavam nos agentes a emoldurar-me no banco de
trás. Várias vezes o veículo se ia espetando nos estacionados ou nos
cruzamentos atravessados na mecha e, na verdade, íamos todos aterrorizados com
a condução. O que viajava no lugar do morto ainda arriscou debalde pedir-lhe
calma, olhá estrada pá, o que teve um efeito amplificador da sua cólera. Nos
intervalos das vergastadas, protestava fremindo o bigode, contra a provável
falta de confiança das hierarquias nas suas capacidades: “havia de ser comigo!”
No recato da esquadra todos estávamos mais à vontade para dar
largas às nossas disposições. Do meu lado, pareceu-me excitante a ideia de me
tornar um mártir da revolução, pelo que agi em conformidade: um paisana
mandou-me despir ao que retorqui se era só ele ou havia mais panascas –
porrada. Veio outro e dedilhou com desprezo o emblema de Estaline que eu trazia
na lapela, “era um trabalhador?”, “chui é que não era, de certeza” – porrada.
Entretanto, a bem da minha glória, aquela era a esquadra onde os choques vinham
aliviar a bexiga. Ao verem-me, perguntavam quem era o melro. Explicavam-lhes.
Acariciando o casse tête: ora deixa
cá ver se o pau se parte – porrada. Estivemos nisto até à noitinha, eles
esgotaram ao assunto, eu esgotei os insultos.
Aquele foi um dia registado para sempre nos anais da
corporação policial. Pela primeira vez desde o 25 de Abril, houve ordem para
carregar em forma; estavam radiantes, como costumam estar os preteridos quando
lhes pedem que regressem. À época os polícias de choque não eram especiais, nem
apresentavam o ar de dark knights
articulados e ginasticados de hoje. Reza a tradição que os recrutavam nas levas
de recém-desmobilizados da guerra colonial que, encadeados pelas luzes do
mundo, já não desejavam regressar às aldeias de origem. Eram escolhidos a dedo
entre os mais ressentidos, boçais, de má índole e traumatizados e nunca se
comprovou que os drogavam antes de os soltar. Não era preciso, bastava
deixá-los a assar ao molho nas ramonas, horas e horas a fio em silêncio
irrespirável, até lhes abrirem as portas e açularem contra a multidão – a
adrenalina fazia o resto. Depois de largados ficavam incontinentes de fúria e
por zelo, talvez também com algum prazer, arriavam com o bastão ao contrário,
assestando o cabo metálico nos crânios. Naquela tarde de 77, não só moeram de
mocada até à morte o militante Luis Caracol como houve quem os visse a espancar
um poste de iluminação.
Aproximando-se a hora de jantar e já não estando ali a fazer
nada, exigi um telefone para chamar um advogado; ligas mas é aos teus pais para
te virem cá buscar. O careca que estava de plantão, com os modos displicentes
de um cansado com a vida, muito mula, não atava nem desatava: advogado!,
pais..., advogado!, pais… Descobrindo que ele era do Porto, desdenhei com
sobranceria lisboeta as habilidades de Pedroto e chamei brinca-na-areia ao
Seninho. O guarda transitou da aparente bonomia para a irritação e fechou-se em
copas. Dali já não levava troco.
Primeiro ouviu-se uma travagem brusca na rua, depois as
portas de vidro aramado abriram-se com estrondo, irrompe um senhor de baixa estatura,
atrás dele volteiam dois polícias constrangidos a pedir calma, “a culpa disto é
do 25 de Abril!” gritava o senhor, o cortejo penetra no escritório do chefe da
esquadra, ergue-se o graduado da secretária balbuciando a sua autoridade:
“sedição”, “duas pedras”, “nos bolsos”, o senhor vocifera ainda mais convicto:
“a culpa disto é do 25 de Abril!”, desarmado e confundido o major aquiesce:
“por esta passa…”
Assim fui libertado às onze da noite.
À saída o sentinela, paternalmente, dá-me uma palmadinha nas
costas: “tem juízo, rapaz”; replico “vai à merda”; acto contínuo, estalada de
meu pai – creio que a única que dele recebi.
Valdimir Markovsky, “Estudo para 9 de Julho de 1905”, 1907 |
Por mais lastimável que este episódio tenha sido, dele não
colhi qualquer proveito. Em vez de receber os galardões de resistente, fui
severamente admoestado pelos veteranos. Alguns tinham andando nas complicadas
correrias do funeral de Ribeiro Santos ou do Congresso de Aveiro, outros nas
refregas com a tropa do famigerado capitão Maltês nos relvados da Cidade
Universitária, um malhara com os ossos em Caxias. A minha bravata fora
temerária e pequeno-burguesa – havia lá pior crítica – e a minha galhardia
desrespeitosa para com os perseguidos e torturados do Estado Novo. As
peripécias daquele dia eram uma brincadeira se comparadas com a brutalidade e a
violência da repressão anterior ao 25 de Abril. Posto o que nem tive coragem
para lhes contar como fora libertado das garras da polícia.
José Navarro de Andrade
Suponho que este texto terá sido escrito há muito tempo , seja mais uma curiosidade deste excelente blog e não um simples aproveitamento
ResponderEliminarde acontecimentos recentes.
Porque se não fôr assim é um texto inútil no tempo e no modo.
Para concluír pela "auto-admitida" inutilidade da bravata ( o que só lhe fica bem) temos que ler em todos os seus pormenores as "auto-elogiativas" descrições( o que só lhe fica mal)?
Este é o senhor que há tantos anos me faz companhia no amor pelo jazz ?
O que "escolhe" os filmes que eu vejo ou não vejo (pagando , claro) ?
Ou será outro com o mesmo nome ?
"Il y a quelque chose qui cloche là dedans" , como canta Reggiani na "Java des bombes atomiques" ...
Caro rmg: se o auto-elogio não lhe soa a sarcástico é por defeito do texto. Sim ao jazz; os filmes no pretérito.
ResponderEliminarJosé Navarro de Andrade
Caro JNA
EliminarTalvez chegue tarde esta resposta , tenho andado arredio daqui , nada a ver com o local .
Defeito do texto , talvez .
Defeito do leitor , porventura .
Há dias assim em que nada é o que devia ser .
Obrigado pelo jazz de sempre .
E também por muitos filmes pretéritos .
ainda hoje, pela tarddinha, lia as memórias do JMF ("revolução"...).
ResponderEliminaragora, o seu texto. Valeu a pena.
Obrigado pelo "olhar distanciado" e irónico, informativo e sem as grandiloquências do tipo «eu estive no Maio de 68...».
caro rmg, imagino que o acontecimento recente será mais o livro do JMF do que as óbvias manifestações de agora. Aliás, parece-me que a catalogação de «bravata» foi, à época, um Partido-Muito-Revolucionário a usá-la numa estaliníssima purga.
genial o senhor seu pai a rematar uma tarde de aventura: uma bofetada à bruta!
Luís Palma de Jesus
Caro Senhor
EliminarNão li o livro de JMF nem o tenciono ler , irei ler por aí uma sinopse para saber do que trata .
Sou dessa época mas não sou de todo dessa purga .
A catalogação deve-se ao inevitável peso da literatura francesa nos leitores que se iniciavam nos anos 60 .
Talvez por isso mesmo , literatur francesa e jazz , me tenha saltado de seguida Boris Vian .
... e bem merecida. Obrigado.
ResponderEliminarJosé Navarro de Andrade