sábado, 17 de novembro de 2012

Lusitânia, de Estrabão.




 

 
Gérard Castello Lopes, A Pedra, 1987

 


1. Seguindo agora, partindo sempre do Promontório Sagrado ([i]), a outra parte da  costa, a que se dirige para o Tejo, observa-se a princípio que a praia se encurva formando um golfo; depois segue-se o Promontório Bárbaro ([ii]), e logo após este a foz do Tejo: a travessia do dito golfo em linha recta até à foz do Tejo é de 1000 estádios.

Nesta parte da costa há também estuários. Destes, mencionaremos especialmente um, que, partindo do promontório acima nomeado, se interna por mais de 400 estádios e [pode levar os navios até Salácia ([iii])]. O Tejo, com 20 estádios de largura na sua foz, tem ao mesmo tempo bastante profundidade para que os maiores transportes do comércio o possam subir. Forma dois esteiros nas planícies, que marginam o rio, todas as vezes que há marés vivas, de tal modo que inunda esses campos numa extensão de 150 estádios e os torna navegáveis. Destes dois lagos ou esteiros que o Tejo forma, o que está situado mais acima contém uma pequena ilha de quase 30 estádios de comprimento e outro tanto de largura, notável pela beleza dos seus olivais e vinhedos. Esta ilha vê-se na altura de Morão, cidade bem situada sobre um monte, muito próximo do rio, a quase a 500 estádios do mar, rodeada de férteis campinas, com grande facilidade de comunicação pela via fluvial, porque os maiores navios podem subir o rio numa boa parte do seu curso. De resto, é navegável ainda mais longe acima de Morão, pelo que de Morão ao mar conserva-se navegável às barcas e outras embarcações fluviais. Foi esta cidade que Bruto, denominado o Calaico, escolheu para base de operações na sua campanha contra os Lusitanos, que terminou como é sabido pela derrota destes povos. Além disso, fortificou Olisipón ([iv]) que é pela sua posição a chave do rio, com o fim de dominar o seu curso, e de poder sempre fazer chegar por esta via até ao seu exército as provisões necessárias. Assim, estas duas cidades são as mais fortes entre as que marginam o Tejo. Este rio, além de mui piscoso, abunda também em mariscos. Nasce entre os Celtiberos e atravessa sucessivamente o país dos Vetões ([v]), e os dos Carpetanos ([vi]) e dos Lusitanos, dirigindo ao Ocidente equinocial. Até um certo ponto do seu curso corre paralelamente ao Anas e ao Bétis; mais longe, porém, afasta-se deles, correndo estes rios então para a costa meridional.





Duarte Belo, Herdade do Postoro. Reguengos de Monsaraz. 2010


2. Dos povos de que acima falámos como habitando as montanhas, os mais meridionais são os Oretanos ([vii]), que se estendem mesmo até à costa na parte da Ibéria compreendida para dentro das Colunas de Hércules ([viii]). Ao norte destes encontram-se os Carpetanos e mais longe os Vetões e os Vaceus, cujo território é atravessado pelo Durius ([ix]): é em Acôncia efectivamente, cidade dos Vaceus, que habitualmente se passa este rio. Deparam-se enfim os Calaicos, ocupando grande parte das montanhas, e que, tendo sido por esta razão mais custosos de vencer, mereceram dar o seu nome ao vencedor dos Lusitanos e fizeram que se chamassem Calaicos a maior parte dos Lusitanos. As cidades principais da Oretânia são Castulão ([x]) e Oria ([xi]).
 

Duarte Belo, Serra da Estrela. Manteigas/Seia/Gouveia. 1997
 

3. Ao norte do Tejo dilata-se a Lusitânia, habitada pela mais poderosa das nações ibéricas e que entre todas por mais tempo deteve as armas romanas. Este país tem por limites ao sul o Tejo, a oeste e norte o oceano, a oriente as possessões dos Carpetanos, dos Vetões, dos Vaceus e dos Calaicos, não falando senão dos povos conhecidos, porque há outros que não merecem nomear-se, por obscuros e pouco importantes. Em oposição ao que acabamos de dizer, alguns autores modernos compreendem entre os povos lusitanos estas tribos limítrofes. Neste caso devemos dizer que estas tribos confinam, pelo lado leste, os Calaicos com o território dos Ástures e dos Celtiberos, e as outras todas com a Celtibéria. O comprimento da Lusitânia até ao Cabo Nério ([xii]) é de 3000 estádios; quanto à largura, medida do limite oriental à costa marítima que a defronta, é muito menor. Toda a região oriental é elevada e áspera, mas para baixo até ao mar o país forma uma planura apenas interrompida por algumas montanhas de altura medíocre. Assim, Possidónio não aprova Aristóteles por atribuir o fenómeno das marés altas e baixas à disposição desta costa e da costa da Maurúsia ([xiii]), como se o refluxo do mar se devesse à elevação e à natureza escarpada destes extremos da terra habitada que, recebendo a onda com dureza, naturalmente deviam repeli-la do mesmo modo: de facto, as costas da Ibéria, como Possidónio o nota com razão, consistem na sua grande maioria em dunas muito baixas.

 
Duarte Belo, Serra do Caldeirão. Loulé. 2005
 

4. O país que descrevemos é rico e fértil; rios grandes e menores o cortam, todos vindos do oriente, correndo paralelos ao Tejo; na maior parte podem subir-se, e arrastam palhetas de ouro em grande quantidade. As mais conhecidas destas correntes a partir do Tejo são o Mundas e o Vácua; ambos podem subir-se apenas em pequenos trechos. Vem depois o Douro cuja origem é mui longínqua, banha Numância ou Nomantia e muito outros lugares pertencentes quer aos Celtiberos quer aos Vaceus; mesmo os grandes navios podem subi-lo por 800 estádios quase. Cortam-se ainda outras correntes e chega-se ao Letes. Este rio que os autores chamam também ora Limeas, ora Oblivio desce igualmente da Celtibéria e do país dos Vaceus. O mesmo acontece ao Bétis ([xiv]) que lhe sucede: o Bétis ou Mínio, com algumas vezes lhe chamam, é de todos os rios da Lusitânia o maior, e muito, e pode subir-se como o Douro pelo espaço de 800 estádios. Segundo Possidónio, vem, como o Douro, do país cantábrico. A foz é dominada por uma ilha protegida por dois molhes a cujo abrigo podem os navios fundear. Notemos aqui uma disposição natural bem feliz: os leitos de todos estes rios estão mui profundamente cavados, o bastante para conter as ondas da maré na enchente, o que obsta aos alagamentos e impede que as planícies próximas sejam inundadas. O Bétis foi o termo das operações de Bruto; para cima deste ainda se encontram outros rios correndo paralelamente aos precedentes.



Duarte Belo, São Pedro do Açor - Piodão. Arganil. 1996




5. Os últimos povos da Lusitânia são os Artabros ([xv]) que habitam parte do Cabo Nério. Na vizinhança do mesmo cabo, que forma extremidade tanto do lado ocidental como setentrional da Ibéria, habitam os Célticos, parentes próximos dos que habitam as margens do Anas. Conta-se que um bando destes últimos empreendera outrora uma expedição em companhia dos Túrdulos contra os povos deste parte da Ibéria, e entrara em desordem com os seus aliados logo na margem ulterior do Limeas, e, perdendo em tal ocasião, para cúmulo de desgraça, o chefe que o comandava, se espalhou na país decidido a permanecer aí, o que fez dar ao Limeas esta denominação de rio do Letes ou do Olvido. As cidades dos Artabros estão aglomeradas em roda dum golfo conhecido pelos marítimos que praticam estas paragens pelo nome de porto dos artabros. Hoje todavia dá-se aos Artabros mais vulgarmente o nome de Arótebros. Cerca de trinta povos diversos habitam a região compreendida entre o Tejo e a fronteira dos Artabros; mas, ainda que este país seja naturalmente rico em frutos e gado, e também em ouro, prata e outros metais, a maioria destes povos renunciou a aproveitar estas riquezas naturais para viver vida de salteadores; sempre, na verdade, viveram em guerras ou entre si, ou com os seus vizinhos além do Tejo, até que os Romanos puseram fim a este estado de coisas fazendo descer os povos da montanha para a planície, e reduzindo a maior parte das suas cidades a simples burgos, fundando ao mesmo tempo algumas colónias entre eles. Foram os serranos, como facilmente se crê, que iniciaram a desordem; habitando um país triste e selvagem, possuindo tão-somente o necessário, desceram a cobiçar os bens de seus vizinhos. Estes, por sua parte, tiveram, para os repelir, de abandonar os seus próprios trabalhos e, como eles mesmo se puseram a guerrear em vez de cultivar, o país pela falta de cuidados cessou de produzir alguma coisa, nem mesmo os frutos que lhe eram naturais, a ponto de se tornar em verdadeiro abrigo de salteadores.
 
 
Lusitano de Évora, equipa de 1976-77
 

6. Os Lusitanos, segundo consta, são excelentes para armar emboscadas e descobrir pistas; são ágeis, rápidos, dextros. O escudo de que se servem é pequeno, só com dois pés de diâmetro, a parte anterior é côncava; trazem-no suspenso ao pescoço por correias, não se vê um só com braçadeiras ou fivelas. Armam-se com um punhal ou gládio. A maioria tem couraças de linho; outros, mas em pequeno número, usam cota de malha e o capacete de tríplice cimeira; em geral os capacetes são de couro. Os peões têm também polainas de curo, e cada um leva muitos dardos compridos na mão; alguns servem-se de lanças com ponta de bronze. Diz-se ainda que entre os povos das margens do Douro há alguns que vivem à maneira dos Lacedemónios ([xvi]), untando-se duas vezes ao dia com azeite e tomam banhos de vapor em estufas aquecidas com pedras vermelhas ao fogo ou ardentes; depois, banham-se em água fria; comem só uma vez ao dia, sendo a comida bem preparada, na verdade, mas em extremo frugal. Os Lusitanos sacrificam frequentemente aos deuses, examinam as entranhas sem as arrancar do corpo das vítimas, observam também as veias do peito, e tiram também certas indicações da simples apalpação. Consultam mesmo em certos casos as entranhas humanas, servindo-se para isto dos prisioneiros de guerra, que revestem previamente do sagum ([xvii]) para o sacrifício, e quando a vítima cai com o ventre aberto pela mão do arúspice ([xviii]) tiram o primeiro presságio da própria queda do corpo. Muitas vezes também cortam a mão direita aos cativos e oferecem-na aos deuses.



André Cepeda, da série Anacronia




7. Todos estes montanheses são sóbrios, bebem só água, deitam-se no chão; têm cabelos compridos e flutuantes à maneira das mulheres, mas, para combater, cingem a fronte com uma ligadura. O seu principal alimento é a carne de cabra. Nos seus sacrifícios ao deus Marte imolam também bodes, e os prisioneiros de guerra e cavalos. Conforme ao uso dos gregos fazem hecatombes ([xix]) de cada espécie de vítima. Celebram jogos gímnicos,  hoplíticos ([xx]) e hípicos, nos quais se exercem no pugilato e na carreira, e simulam escaramuças e batalhas campais. Nas três quartas partes do ano, o único alimento na montanha são as glandes de carvalho, que, secas, quebradas e pisadas servem para fazer pão: este pão pode guardar-se por muito tempo. Uma espécie de cerveja feita com cevada é a bebida vulgar; quanto ao vinho, é raro, e o pouco que se fabrica é logo consumido nos grandes banquetes de família tão frequentes entre estes povos. Em vez de azeite servem-se de manteiga: comem assentados, há para isto bancos de pedra dispostos em roda das paredes onde os convivas tomam lugar segundo a idade e a posição. A comida circula de mão em mão. Mesmo bebendo os homens põe-se a dançar, ora formando coros ao som de flauta e da trombeta, ora saltando cada um per si a ver quem mais alto salta e mais graciosamente cai de joelhos. Na Bastetânia as mulheres dançam também misturadas com os homens, cada uma tendo o seu par diferente, a quem de vez em quando dá as mãos. Todos os homens vestem de preto e a dizer a verdade não deixam os seus sagos servindo-se deles como de cobertores nos seus leitos de palha seca: estes mantos, como os dos Celtas, são feitos de lã grosseira ou de pêlo de cabra. As mulheres só usam mantos e vestidos de cor feitos de fio cruzado. Nas terras interiores, em vez de moedas, utilizam o comércio de troca ou então cortam-se lâminas de prata em bocadinhos que se dão em pagamento do que se compra. Os criminosos condenados à morte são precipitados; mas os parricidas são lapidados fora do território além da fronteira mais afastada. As cerimónias do casamento são as mesmas que na Grécia. Os doentes, como antigamente se usava entre os Assírios, são expostos nas ruas, para provocar assim os conselhos dos que padeceram as mesmas moléstias. Anteriormente à expedição de Bruto estes povos não se serviam senão de barcos de couro para atravessar os estuários e lagos do seu país; hoje começam também a ter embarcações cavadas num só tronco de árvore, mas o seu uso ainda está pouco divulgado. O sal que recolhem é vermelho-púrpura, e só se torna branco sendo pisado. Tal é o género de vida destes montanheses, e, como já o disse, compreendo sob esta denominação os diversos povos que marginam o lado ocidental da Ibéria até ao país dos Vascões e aos montes Pirenéus, a saber os Calaicos, Ástures e Cântabros que todos têm na verdade um modo de viver uniforme; poderia sem dúvida fazer uma lista destes povos mais extensa, mas confesso que me não chega a coragem para tanto e retrocedo ante o fastio de tal transcrição, imaginando demais que ninguém terá prazer ouvindo nomes como os de Pleutauros, Barduetas e Alótrigas, e outros ainda menos harmoniosos e menos conhecidos.       




Patrícia Almeida, série Portobello, 2007




8. Nem só a guerra originou entre estes povos os rudes e selvagens costumes: estes nasceram também do afastamento extremo em que o seu país se acha das outras regiões, pois para lá chegar tanto por mar como por terra são precisas jornadas muito longas, e naturalmente este dificuldade de comunicações lhes fez perder os sentimento de sociabilidade e humanidade. Cumpre dizer, todavia, que hoje o mal é menor em consequência do restabelecimento da paz e das frequentes viagens que os Romanos fazem nas suas montanhas. Restam ainda algumas tribos que até ao presente menos têm participado que as outras nesta dupla vantagem; estas conservam um carácter mais feroz, mais brutal, sem contar que na maioria delas esta disposição natural é aumentada provavelmente pela aspereza dos lugares, e pelo rigor do clima. Mas, torno a dizer, estão hoje terminadas todas as guerras; os próprios Cântabros, que de todos estes povos eram os mais ligados aos hábitos de salteadores, foram domados por César Augusto, assim como as tribos vizinhas, e, em vez de devastar como dantes as terras dos aliados do povo romano, tomam agora as armas para defender os próprios romanos; tal é também o caso dos Coníacos e os Plentuísos, que dominaram junto das fontes do Ebro, e agora pegam em armas ao lado dos Romanos. E Tibério, por vontade de César Augusto, a quem sucedeu, mandando para estes lugares um exército de três legiões, a alguns deles logrou já torná-los não só pacíficos como também civilizados.

 

 
 
 
 

Nota final – esta versão, extremamente deficiente, do Capítulo III do Livro III da Geografia de Estrabão, relativo à Lusitânia, segue, em larguíssima medida, a obra Descripção da Península Ibérica. Livro 3º da Geographia de Strabão, 1º Parte, na versão de Gabriel Pereira, Évora, Typ. de F. C. Brabo, 1878. Mais do que uma tradução, esta é uma republicação, actualizada e anotada, do trabalho de Gabriel Pereira, cuja versão, de 1878, foi usada com vista a manter a deliciosa sonoridade oitocentista do seu estilo. Complementarmente, utilizou-se The Geography of Strabo, trad. de Horace Leonard Jones, vol. II, Londres e Cambridge, Mass., William Heinemann Ltd.-Harvard University Press, 1917-1959, e José Cardoso, A Geografia da Ibéria Segundo Estrabão, Braga, Edições APPACDM Distrital de Braga, 1994.
 
 
António Araújo
  







[i] Ponta de Sagres.


[ii] Cabo Espichel.


[iii] Alcácer do Sal.


[iv] Lisboa.


[v] Povo celta pré-romano, que habitou na parte noroeste da Meseta.


[vi] Tribo pré-romana, integrada nos antigos povos celtiberos.


[vii] Povo pré-romano, que habitou um território entre a Serra Morena e o actual Guadiana.


[viii] Estreito de Gibraltar.


[ix] Douro.


[x] Localidade situada actualmente nos arredores de Valência.


[xi] Localidade na província de Almería (Andaluzia).


[xii] Cabo Finisterra, na actual Galiza.


[xiii] Mauritânia.


[xiv] Guadalquivir.


[xv] Tribo de origem céltica que vivia no noroeste da actual Galiza.


[xvi] Naturais da Lacedemónia, região da Grécia.


[xvii] Vestimenta militar dos Romanos, concebida como um símbolo de guerra, enquanto a toga era vista como um símbolo de paz.


[xviii] De haruspex, em latim; adivinho etrusco que examinava as entranhas dos animais sacrificados para prever o futuro


[xix] Sacrifício colectivo de muitas vítimas.


[xx] Referência aos treinos dos hoplitas, soldados de infantaria pesada da Grécia clássica.

1 comentário:

  1. Eu gostava de saber se Estrabão terá usado mesmo os termos "Ibéria" e "ibéricos" ou se tais termos nos aparecem nos textos de hoje, em português, como resultado de tradução realizada pelos historiadores e/ou latinistas. É que consta que em vários mapas romanos a Ibéria é identificada como uma parte da actual Geórgia, e a Penísula Ibérica nunca surge na cartografia romana como essa designação. Saberá responder-me a isto?

    ResponderEliminar