Gérard Castello Lopes, A Pedra, 1987
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1.
Seguindo agora, partindo sempre do Promontório Sagrado ([i]),
a outra parte da costa, a que se dirige
para o Tejo, observa-se a princípio que a praia se encurva formando um golfo;
depois segue-se o Promontório Bárbaro ([ii]),
e logo após este a foz do Tejo: a travessia do dito golfo em linha recta até à
foz do Tejo é de 1000 estádios.
Nesta parte da costa há
também estuários. Destes, mencionaremos especialmente um, que, partindo do
promontório acima nomeado, se interna por mais de 400 estádios e [pode levar os
navios até Salácia ([iii])].
O Tejo, com 20 estádios de largura na sua foz, tem ao mesmo tempo bastante
profundidade para que os maiores transportes do comércio o possam subir. Forma
dois esteiros nas planícies, que marginam o rio, todas as vezes que há marés
vivas, de tal modo que inunda esses campos numa extensão de 150 estádios e os
torna navegáveis. Destes dois lagos ou esteiros que o Tejo forma, o que está
situado mais acima contém uma pequena ilha de quase 30 estádios de comprimento e
outro tanto de largura, notável pela beleza dos seus olivais e vinhedos. Esta
ilha vê-se na altura de Morão, cidade bem situada sobre um monte, muito próximo
do rio, a quase a 500 estádios do mar, rodeada de férteis campinas, com grande
facilidade de comunicação pela via fluvial, porque os maiores navios podem
subir o rio numa boa parte do seu curso. De resto, é navegável ainda mais longe
acima de Morão, pelo que de Morão ao mar conserva-se navegável às barcas e
outras embarcações fluviais. Foi esta cidade que Bruto, denominado o Calaico, escolheu para base de
operações na sua campanha contra os Lusitanos, que terminou como é sabido pela
derrota destes povos. Além disso, fortificou Olisipón ([iv])
que é pela sua posição a chave do rio, com o fim de dominar o seu curso, e de
poder sempre fazer chegar por esta via até ao seu exército as provisões
necessárias. Assim, estas duas cidades são as mais fortes entre as que marginam
o Tejo. Este rio, além de mui piscoso, abunda também em mariscos. Nasce entre
os Celtiberos e atravessa sucessivamente o país dos Vetões ([v]),
e os dos Carpetanos ([vi]) e
dos Lusitanos, dirigindo ao Ocidente equinocial. Até um certo ponto do seu
curso corre paralelamente ao Anas e ao Bétis; mais longe, porém, afasta-se deles,
correndo estes rios então para a costa meridional.
Duarte Belo, Herdade do Postoro. Reguengos de Monsaraz. 2010
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2. Dos
povos de que acima falámos como habitando as montanhas, os mais meridionais são
os Oretanos ([vii]),
que se estendem mesmo até à costa na parte da Ibéria compreendida para dentro
das Colunas de Hércules ([viii]).
Ao norte destes encontram-se os Carpetanos e mais longe os Vetões e os Vaceus,
cujo território é atravessado pelo Durius ([ix]):
é em Acôncia efectivamente, cidade dos Vaceus, que habitualmente se passa este
rio. Deparam-se enfim os Calaicos, ocupando grande parte das montanhas, e que,
tendo sido por esta razão mais custosos de vencer, mereceram dar o seu nome ao
vencedor dos Lusitanos e fizeram que se chamassem Calaicos a maior parte dos
Lusitanos. As cidades principais da Oretânia são Castulão ([x]) e
Oria ([xi]).
Duarte Belo, Serra da Estrela. Manteigas/Seia/Gouveia. 1997
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3. Ao
norte do Tejo dilata-se a Lusitânia, habitada pela mais poderosa das nações
ibéricas e que entre todas por mais tempo deteve as armas romanas. Este país
tem por limites ao sul o Tejo, a oeste e norte o oceano, a oriente as
possessões dos Carpetanos, dos Vetões, dos Vaceus e dos Calaicos, não falando
senão dos povos conhecidos, porque há outros que não merecem nomear-se, por
obscuros e pouco importantes. Em oposição ao que acabamos de dizer, alguns
autores modernos compreendem entre os povos lusitanos estas tribos limítrofes.
Neste caso devemos dizer que estas tribos confinam, pelo lado leste, os
Calaicos com o território dos Ástures e dos Celtiberos, e as outras todas com a
Celtibéria. O comprimento da Lusitânia até ao Cabo Nério ([xii])
é de 3000 estádios; quanto à largura, medida do limite oriental à costa
marítima que a defronta, é muito menor. Toda a região oriental é elevada e
áspera, mas para baixo até ao mar o país forma uma planura apenas interrompida
por algumas montanhas de altura medíocre. Assim, Possidónio não aprova Aristóteles por atribuir o
fenómeno das marés altas e baixas à disposição desta costa e da costa da Maurúsia
([xiii]),
como se o refluxo do mar se devesse à elevação e à natureza escarpada destes
extremos da terra habitada que, recebendo a onda com dureza, naturalmente
deviam repeli-la do mesmo modo: de facto, as costas da Ibéria, como Possidónio
o nota com razão, consistem na sua grande maioria em dunas muito baixas.
Duarte Belo, Serra do Caldeirão. Loulé. 2005
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4. O
país que descrevemos é rico e fértil; rios grandes e menores o cortam, todos
vindos do oriente, correndo paralelos ao Tejo; na maior parte podem subir-se, e
arrastam palhetas de ouro em grande quantidade. As mais conhecidas destas
correntes a partir do Tejo são o Mundas e o Vácua; ambos podem subir-se apenas
em pequenos trechos. Vem depois o Douro cuja origem é mui longínqua, banha
Numância ou Nomantia e muito outros lugares pertencentes quer aos Celtiberos
quer aos Vaceus; mesmo os grandes navios podem subi-lo por 800 estádios quase.
Cortam-se ainda outras correntes e chega-se ao Letes. Este rio que os autores
chamam também ora Limeas, ora Oblivio desce igualmente da Celtibéria e do país
dos Vaceus. O mesmo acontece ao Bétis ([xiv])
que lhe sucede: o Bétis ou Mínio, com algumas vezes lhe chamam, é de todos os
rios da Lusitânia o maior, e muito, e pode subir-se como o Douro pelo espaço de
800 estádios. Segundo Possidónio, vem, como o Douro, do país cantábrico. A foz
é dominada por uma ilha protegida por dois molhes a cujo abrigo podem os navios
fundear. Notemos aqui uma disposição natural bem feliz: os leitos de todos
estes rios estão mui profundamente cavados, o bastante para conter as ondas da
maré na enchente, o que obsta aos alagamentos e impede que as planícies próximas
sejam inundadas. O Bétis foi o termo das operações de Bruto; para cima deste
ainda se encontram outros rios correndo paralelamente aos precedentes.
Duarte Belo, São Pedro do Açor - Piodão. Arganil. 1996
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5.
Os últimos povos da Lusitânia são os Artabros ([xv]) que
habitam parte do Cabo Nério. Na vizinhança do mesmo cabo, que forma extremidade
tanto do lado ocidental como setentrional da Ibéria, habitam os Célticos, parentes
próximos dos que habitam as margens do Anas. Conta-se que um bando destes
últimos empreendera outrora uma expedição em companhia dos Túrdulos contra os
povos deste parte da Ibéria, e entrara em desordem com os seus aliados logo na
margem ulterior do Limeas, e, perdendo em tal ocasião, para cúmulo de desgraça,
o chefe que o comandava, se espalhou na país decidido a permanecer aí, o que
fez dar ao Limeas esta denominação de rio do Letes ou do Olvido. As cidades dos
Artabros estão aglomeradas em roda dum golfo conhecido pelos marítimos que
praticam estas paragens pelo nome de porto
dos artabros. Hoje todavia dá-se aos Artabros mais vulgarmente o nome de
Arótebros. Cerca de trinta povos diversos habitam a região compreendida entre o
Tejo e a fronteira dos Artabros; mas, ainda que este país seja naturalmente
rico em frutos e gado, e também em ouro, prata e outros metais, a maioria
destes povos renunciou a aproveitar estas riquezas naturais para viver vida de
salteadores; sempre, na verdade, viveram em guerras ou entre si, ou com os seus
vizinhos além do Tejo, até que os Romanos puseram fim a este estado de coisas
fazendo descer os povos da montanha para a planície, e reduzindo a maior parte
das suas cidades a simples burgos, fundando ao mesmo tempo algumas colónias
entre eles. Foram os serranos, como facilmente se crê, que iniciaram a
desordem; habitando um país triste e selvagem, possuindo tão-somente o
necessário, desceram a cobiçar os bens de seus vizinhos. Estes, por sua parte,
tiveram, para os repelir, de abandonar os seus próprios trabalhos e, como eles
mesmo se puseram a guerrear em vez de cultivar, o país pela falta de cuidados
cessou de produzir alguma coisa, nem mesmo os frutos que lhe eram naturais, a
ponto de se tornar em verdadeiro abrigo de salteadores.
Lusitano de Évora, equipa de 1976-77
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6. Os
Lusitanos, segundo consta, são excelentes para armar emboscadas e descobrir
pistas; são ágeis, rápidos, dextros. O escudo de que se servem é pequeno, só
com dois pés de diâmetro, a parte anterior é côncava; trazem-no suspenso ao
pescoço por correias, não se vê um só com braçadeiras ou fivelas. Armam-se com
um punhal ou gládio. A maioria tem couraças de linho; outros, mas em pequeno
número, usam cota de malha e o capacete de tríplice cimeira; em geral os
capacetes são de couro. Os peões têm também polainas de curo, e cada um leva
muitos dardos compridos na mão; alguns servem-se de lanças com ponta de bronze.
Diz-se ainda que entre os povos das margens do Douro há alguns que vivem à
maneira dos Lacedemónios ([xvi]),
untando-se duas vezes ao dia com azeite e tomam banhos de vapor em estufas
aquecidas com pedras vermelhas ao fogo ou ardentes; depois, banham-se em água
fria; comem só uma vez ao dia, sendo a comida bem preparada, na verdade, mas em
extremo frugal. Os Lusitanos sacrificam frequentemente aos deuses, examinam as
entranhas sem as arrancar do corpo das vítimas, observam também as veias do
peito, e tiram também certas indicações da simples apalpação. Consultam mesmo
em certos casos as entranhas humanas, servindo-se para isto dos prisioneiros de
guerra, que revestem previamente do sagum
([xvii])
para o sacrifício, e quando a vítima cai com o ventre aberto pela mão do
arúspice ([xviii])
tiram o primeiro presságio da própria queda do corpo. Muitas vezes também
cortam a mão direita aos cativos e oferecem-na aos deuses.
André Cepeda, da série Anacronia
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7. Todos
estes montanheses são sóbrios, bebem só água, deitam-se no chão; têm cabelos
compridos e flutuantes à maneira das
mulheres, mas, para combater, cingem a fronte com uma ligadura. O seu
principal alimento é a carne de cabra. Nos seus sacrifícios ao deus Marte
imolam também bodes, e os prisioneiros de guerra e cavalos. Conforme ao uso dos
gregos fazem hecatombes ([xix])
de cada espécie de vítima. Celebram jogos gímnicos, hoplíticos ([xx])
e hípicos, nos quais se exercem no pugilato e na carreira, e simulam
escaramuças e batalhas campais. Nas três quartas partes do ano, o único
alimento na montanha são as glandes de carvalho, que, secas, quebradas e
pisadas servem para fazer pão: este pão pode guardar-se por muito tempo. Uma
espécie de cerveja feita com cevada é a bebida vulgar; quanto ao vinho, é raro,
e o pouco que se fabrica é logo consumido nos grandes banquetes de família tão
frequentes entre estes povos. Em vez de azeite servem-se de manteiga: comem
assentados, há para isto bancos de pedra dispostos em roda das paredes onde os
convivas tomam lugar segundo a idade e a posição. A comida circula de mão em
mão. Mesmo bebendo os homens põe-se a dançar, ora formando coros ao som de
flauta e da trombeta, ora saltando cada um per si a ver quem mais alto salta e
mais graciosamente cai de joelhos. Na Bastetânia as mulheres dançam também
misturadas com os homens, cada uma tendo o seu par diferente, a quem de vez em
quando dá as mãos. Todos os homens vestem de preto e a dizer a verdade não
deixam os seus sagos servindo-se deles como de cobertores nos seus leitos de
palha seca: estes mantos, como os dos Celtas, são feitos de lã grosseira ou de
pêlo de cabra. As mulheres só usam mantos e vestidos de cor feitos de fio
cruzado. Nas terras interiores, em vez de moedas, utilizam o comércio de troca
ou então cortam-se lâminas de prata em bocadinhos que se dão em pagamento do
que se compra. Os criminosos condenados à morte são precipitados; mas os
parricidas são lapidados fora do território além da fronteira mais afastada. As
cerimónias do casamento são as mesmas que na Grécia. Os doentes, como
antigamente se usava entre os Assírios, são expostos nas ruas, para provocar
assim os conselhos dos que padeceram as mesmas moléstias. Anteriormente à
expedição de Bruto estes povos não se serviam senão de barcos de couro para
atravessar os estuários e lagos do seu país; hoje começam também a ter
embarcações cavadas num só tronco de árvore, mas o seu uso ainda está pouco
divulgado. O sal que recolhem é vermelho-púrpura, e só se torna branco sendo
pisado. Tal é o género de vida destes montanheses, e, como já o disse,
compreendo sob esta denominação os diversos povos que marginam o lado ocidental
da Ibéria até ao país dos Vascões e aos montes Pirenéus, a saber os Calaicos,
Ástures e Cântabros que todos têm na verdade um modo de viver uniforme; poderia
sem dúvida fazer uma lista destes povos mais extensa, mas confesso que me não
chega a coragem para tanto e retrocedo ante o fastio de tal transcrição,
imaginando demais que ninguém terá prazer ouvindo nomes como os de Pleutauros,
Barduetas e Alótrigas, e outros ainda menos harmoniosos e menos conhecidos.
Patrícia Almeida, série Portobello, 2007
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8.
Nem só a guerra originou entre estes povos os rudes e selvagens costumes: estes
nasceram também do afastamento extremo em que o seu país se acha das outras
regiões, pois para lá chegar tanto por mar como por terra são precisas jornadas
muito longas, e naturalmente este dificuldade de comunicações lhes fez perder
os sentimento de sociabilidade e humanidade. Cumpre dizer, todavia, que hoje o
mal é menor em consequência do restabelecimento da paz e das frequentes viagens
que os Romanos fazem nas suas montanhas. Restam ainda algumas tribos que até ao
presente menos têm participado que as outras nesta dupla vantagem; estas
conservam um carácter mais feroz, mais brutal, sem contar que na maioria delas
esta disposição natural é aumentada provavelmente pela aspereza dos lugares, e
pelo rigor do clima. Mas, torno a dizer, estão hoje terminadas todas as guerras;
os próprios Cântabros, que de todos estes povos eram os mais ligados aos
hábitos de salteadores, foram domados por César Augusto, assim como as tribos vizinhas, e,
em vez de devastar como dantes as terras dos aliados do povo romano, tomam agora
as armas para defender os próprios romanos; tal é também o caso dos Coníacos e
os Plentuísos, que dominaram junto das fontes do Ebro, e agora pegam em armas
ao lado dos Romanos. E Tibério,
por vontade de César Augusto, a quem sucedeu, mandando para estes lugares um
exército de três legiões, a alguns deles logrou já torná-los não só pacíficos
como também civilizados.
Nota
final – esta versão, extremamente deficiente, do Capítulo III do Livro III da Geografia de Estrabão, relativo à Lusitânia, segue, em
larguíssima medida, a obra Descripção da
Península Ibérica. Livro 3º da Geographia de Strabão, 1º Parte, na versão
de Gabriel Pereira, Évora, Typ. de F. C. Brabo, 1878. Mais do que uma tradução, esta é uma republicação, actualizada e anotada, do trabalho de Gabriel Pereira, cuja versão, de 1878, foi usada com vista a manter a
deliciosa sonoridade oitocentista do seu estilo. Complementarmente, utilizou-se The Geography of Strabo, trad. de Horace
Leonard Jones, vol. II, Londres e Cambridge, Mass., William Heinemann
Ltd.-Harvard University Press, 1917-1959, e José Cardoso, A Geografia da Ibéria Segundo Estrabão, Braga, Edições APPACDM
Distrital de Braga, 1994.
António Araújo
[xvii] Vestimenta
militar dos Romanos, concebida como um símbolo de guerra, enquanto a toga era vista como um símbolo de paz.
[xviii] De haruspex, em latim; adivinho etrusco que
examinava as entranhas dos animais sacrificados para prever o futuro
Eu gostava de saber se Estrabão terá usado mesmo os termos "Ibéria" e "ibéricos" ou se tais termos nos aparecem nos textos de hoje, em português, como resultado de tradução realizada pelos historiadores e/ou latinistas. É que consta que em vários mapas romanos a Ibéria é identificada como uma parte da actual Geórgia, e a Penísula Ibérica nunca surge na cartografia romana como essa designação. Saberá responder-me a isto?
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