Abraham
Lincoln, o mais conhecido, o mais admirado presidente americano. E também o
mais incompreendido. Político extraordinariamente ambicioso, ardiloso e
conhecedor do funcionamento da máquina partidária. A sua improvável mas lógica
nomeação como candidato republicano devia ser estudada por qualquer putativo
candidato a chefe do executivo. As escolhas para a sua administração e o modo
como manipulou o “team of rivals”
valem todo um tratado de ciência política. Fez a guerra para preservar a União.
Aceitou a política de terra queimada do general Sherman para salvar a União.
Na
verdade, estava disposto a conviver com a escravatura, desde que esta fosse
contida nos Estados esclavagistas. Defendeu a manutenção da escravatura nos
quatro Estados da fronteira que se mantiveram ao lado da União: Delaware,
Maryland, Kentucky e Missouri. Politicão,
sabia que a maioria no próprio Norte não aceitaria a abolição da escravatura e
que perderia a guerra sem aqueles Estados e sem o apoio da opinião pública. É
bom não esquecer que Lincoln era um presidente minoritário, que devia a sua
vitória à divisão dos democratas. Universalmente adorado hoje, o “honest Abe” era odiado em todo o Sul e
por grande parte do Norte, onde democratas e republicanos conservadores
pretendiam que se celebrasse a paz com escravatura no Sul. Mesmo os
republicanos radicais, que o pressionavam para emancipar os escravos, eram
racistas que pensavam, como Benjamin Wade, que os negros, embora humanos, eram
seres inferiores que deveriam ser recambiados para África. Para não assustar o
eleitorado, Lincoln deu a entender que apoiava essa solução.
A
abolição da escravatura criava problemas constitucionais complicados. Antes da
guerra, todos concordavam que o Congresso não tinha poderes para regular uma
instituição legal dos estados. Quanto ao presidente, era inequívoco que apenas
tinha poderes para a eliminar em Washington, D.C.. Durante a guerra, enquanto
todos os outros mantiveram a sua interpretação da constituição, os republicanos
radicais mudaram de posição: o presidente poderia abolir a escravatura mas
apenas como Supremo Comandante, invocando poderes militares em tempo de guerra.
Abraham
Lincoln demorou a mudar de posição. Se a guerra fosse rápida, aceitaria de volta
os Estados sulistas com escravatura. Ainda em 1862 propunha um plano de
abolição progressiva que supunha que o Estado Federal indemnizaria os
proprietários. Tratava-se de um plano de incentivos que garantiria o essencial:
a decisão de eliminar a detestável instituição seria tomada pelas legislaturas
estatais… ao longo de trinta anos. Lincoln tentou convencer os Estados de
fronteira a dar o exemplo. Pois nem o pequeno Delaware, com um irrisório número
de escravos, se dispôs a dar o primeiro passo.
Lincoln
compreendeu: a guerra prolongava-se, o morticínio acirrava-se, era impensável
que terminado o conflito tudo continuasse como antes; no entanto, isso
significava que teria de ser ele a decidir. Por outras palavras, para que o
presidente invocasse os seus poderes como Supremo Comandante, a abolição teria de ser apresentada como um
necessidade militar: uma condição para a salvação da União. Os escravos teriam
de ser incentivados a fugir para Norte. O exército nortista teria de acolher os
negros em unidades militares próprias. Novos medos seriam gerados, quando os
brancos do Norte compreendessem que estavam a armar ex-escravos armados para
matar brancos do Sul. Mas o seu maior medo era o de que os escravos libertados
se dirigissem em massa para o Norte e aí permanecessem.
Por
outro lado, invocando-se a necessidade militar, a medida teria efeitos apenas
nos Estados sulistas. Ou seja, a escravatura continuaria nos Estados
esclavagistas do Norte.
Anunciou-se
que o acto presidencial emancipador seria assinado em 1 de janeiro de 1863.
Pois nas mid-term elections de 1862 (que,
como é óbvio, apenas tiveram lugar no Norte) o Partido Republicano
sofreu uma derrota desastrosa: o eleitorado não queria a abolição da
escravatura. Os vitoriosos democratas logo avisaram o presidente: devia recuar,
porque o seu acto seria inconstitucional, mais do que isso, uma decisão que
ofendesse uma instituição fundamental dos estados era um crime grave, ou seja,
ameaçavam que seria motivo suficiente para impeachment.
Alguns republicanos moderados, temerosos, aconselharam Lincoln a voltar atrás.
A
Emancipation Proclamation foi
assinada na data prevista. A medida mais revolucionária tomada por um presidente americana
representava um uso sem precedentes de um poder mal definido do chefe do
executivo na sua qualidade de Supremo Comandante e só assim se poderia
pretender que prevalecesse sobre a vontade dos estados. Não obstante, a
abolição da escravatura foi o mais impopular acto do presidente Lincoln. Os
democratas do Norte chamaram-lhe “ditador abolicionista”. Multiplicaram-se
manifestações e comícios. Propunha-se, de novo, o fim da guerra e a preservação
da escravatura. Previa-se a derrota de Lincoln nas eleições presidenciais de
1864.
A
sua difícil vitória foi interpretada pelo presidente como a legitimação da sua
política de libertação dos escravos que, recorde-se, não fizera parte do seu
programa eleitoral de 1860. Aproveitando o momento, Lincoln avançou
decididamente com uma proposta de emenda constitucional. Na verdade, sabia que
a “Emancipation Proclamation” poderia
ser a qualquer momento declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal
ou revogada por decisão do Congresso ou de qualquer futuro presidente. A única
forma de evitar que se voltasse atrás seria alterar a Constituição, consagrando
a emancipação na lei fundamental.
Em
Abril de 1864, a emenda foi aprovada no Senado, mas não atingiu os necessários
dois terços na Câmara dos Representantes. Lincoln resolveu pressionar com todas
as armas disponíveis. Por exemplo, informou os representantes democratas que
apenas teriam hipótese de colocar amigos em empregos federais se votassem a
favor da emenda. Dois democratas mudaram, mas não era suficiente. Lincoln,
acompanhado de alguns líderes republicanos, entenderam necessário encetar
conversações secretas que, segundo consta, envolveram a concessão do monopólio
dos caminhos-de-ferro em New Jersey e a libertação de alguns prisioneiros
rebeldes relacionados com representantes democratas cujo voto poderia mudar. O
certo é que, em 31 de Janeiro de 1865, a Câmara aprovou a 13ª emenda por apenas
três votos.
Lincoln
chamou-lhe “uma grande vitória moral”. Thaddeus Stevens, um grande
abolicionista republicano, foi mais prosaico: “a mais importante decisão do
século dezanove passou devido à corrupção, impulsionada pelo homem mais puro da
América”.
Lincoln,
forçado pelas circunstâncias, tornou-se um forte presidente de tempo de guerra.
Um presidente que expandiu os seus poderes sempre que a necessidade o exigiu.
Até porque, alegou, “necessity knows no
law”. Salvou a União, o seu grande objectivo. Mas não quis consagrar uma
presidência imperial. Todas as medidas excepcionais viu-as como estritamente
temporárias. Excepto a abolição da escravatura. Quanto a essa, teve a
clarividência de impor, por todos os meios, uma emenda constitucional.
Os
seus fins eram infinitamente mais bondosos do que os seus meios. Que atire a
primeira pedra quem entender que não era justificado.
José
Luís Moura Jacinto
Gostaria de saber onde é que o autor deste texto foi buscar o conceito/dicotomia republicanos «conservadores» vs. republicanos «radicais». O Partido Republicano foi fundado em 1854 como forma de congregar politicamente os diversos movimentos e correntes abolicionistas, pelo que eram todos «radicais».
ResponderEliminarCaro Octávio do Santos
EliminarAs correntes internas dentro do Partido Republicano manifestaram-se desde a fundação. Basta recordar que o próprio Lincoln era um republicano moderado, ou seja, o seu propósito era conter a escravatura nos Estados onde esta era permitida. Durante a guerra, os republicanos radicais (e este epíteto apenas significava que queria a abolição de imediato) pressionaram Lincoln a mudar de posição, enquanto os republicanos conservadores (que aceitavam que a situação perdurasse, desde que a União fosse salva) avisavam Lincoln para não avançar contra a vontade dos Estados.
José Luís Moura Jacinto
Obrigado pela resposta... mas insisto: o Partido Republicano foi fundado para abolir a escravatura e não para a «conter». Eventuais posições provisórias, transitórias, inerentes a uma crise e a uma guerra, não têm legitimidade idêntica à de princípios programáticos, a ponto de se criarem duas «facções».
EliminarOs americanos nunca se atrapalham com a verdade e por isso o filme Lincoln com uma estupenda interpretação de Daniel Day-Lewis mostra isso mesmo.
ResponderEliminarFalta a bibliografia que o autor utilizou... Obrigado
ResponderEliminarA bibliografia sobre o tema é imensa, normalmente desnecessariamente laudatória. Inspirei-me sobretudo em Stephen Oates (Abraham Lincoln: the man behind the myths, Harper Collins, 2011).
EliminarJosé Luís Moura Jacinto