I.
Por
volta das cinco da tarde do dia 25 de Agosto de 1987 o médico Héctor Abad Gómez
foi assassinado numa rua de Medellín, à vista de todos os que por aí passavam.
No bolso da sua camisa encontraram dois papéis. Um deles continha uma lista dos
condenados à morte por um grupo de paramilitares colombianos, em que ele
próprio estava incluído; o outro, um soneto transcrito à mão pelo morto e
atribuído a um autor identificado pelas suas iniciais: J.L.B.
O
soneto, que hoje corre o mundo das letras sob o título «Aquí. Hoy», reza assim:
Ya somos el olvido que seremos.
el polvo elemental que nos ignora
y que fue el rojo Adán y que es ahora
todos los hombres y que no veremos.
el polvo elemental que nos ignora
y que fue el rojo Adán y que es ahora
todos los hombres y que no veremos.
Ya somos en la tumba las dos fechas
del principio y del término, la caja,
la obscena corrupción y la mortaja,
los ritos de la muerte y las endechas.
del principio y del término, la caja,
la obscena corrupción y la mortaja,
los ritos de la muerte y las endechas.
No soy el insensato que se aferra
al mágico sonido de su nombre;
pienso con esperanza en aquel hombre
que no sabrá que fui sobre la tierra.
al mágico sonido de su nombre;
pienso con esperanza en aquel hombre
que no sabrá que fui sobre la tierra.
Bajo el indiferente azul del cielo
esta meditación es un consuelo.
esta meditación es un consuelo.
O
conhecedor da arte poética saberá que este é um soneto inglês, composto por
três quadras e um dístico, em vez das duas quadras e dois tercetos do soneto
italiano, mais comum na literatura portuguesa. Além disso, os versos são
hendecassílabos e não os decassílabos frequentemente utilizados por Camões.
Estes
mesmos recursos poéticos, de que não disponho, tornam difícil a tradução. Mas
aí fica uma tentativa:
Já somos o esquecimento que seremos.
A poeira elementar que nos ignora
E que foi do rubro Adão e que é agora
todos os homens e que não veremos.
Já
somos na tumba as duas datas
Do princípio e do fim, o caixão,
a mortalha e a obscena corrupção
os ritos da morte e as endechas.
Do princípio e do fim, o caixão,
a mortalha e a obscena corrupção
os ritos da morte e as endechas.
Não
sou o insensato que se aferra
ao mágico ruído do seu nome;
penso com esperança naquele homem
que não saberá que existi na terra.
ao mágico ruído do seu nome;
penso com esperança naquele homem
que não saberá que existi na terra.
Sob
o indiferente azul do céu
esta
meditação é um consolo.
Por que razão Héctor Abad Gómez levava consigo este soneto no dia da sua morte? Além de médico e universitário, e activista dos direitos humanos, tinha também um programa de rádio. Na sessão emitida em 7 de Junho de 1987 Héctor Abad Gómez leu cinco poemas inéditos de Borges, entre os quais o soneto «Aqui. Hoje». E seria difícil encontrar melhor par para uma lista de condenados em que se contenha o nosso próprio nome. Como se nos defendesse, senão da morte anunciada, pelo menos do receio da sua vinda. Como se nos lembrasse que a morte nada nos pode tirar que não esteja já inscrito na nossa condição humana.
II.
No
próprio ano em que o seu pai foi assassinado, Héctor Abad Faciolince, depois de
o enterrar numa campa em que serviu de epitáfio o soneto «Aqui. Hoje»,
sentiu-se também ameaçado e fugiu para a Europa.
Vinte
anos passados escreveu um comovente e belo livro em que conta a história da
relação com o pai e as circunstâncias da sua morte. O soneto «Aqui. Hoje» está
presente logo no título: «El olvido que seremos»[1].
E, contudo, o livro é uma resistência ao poema. Diz Héctor-filho conseguir
acreditar naqueles versos, mas não querer «imaginar o momento doloroso em que
também as pessoas que mais amo – filho, mulher, amigos, parentes – deixarão de
existir, que também será o momento em que eu deixarei de viver definitivamente
como recordação vívida de alguém. O meu pai também não soube, nem quis saber,
quando morreria eu. O que ele sabia, e esse talvez seja mais um dos nossos
frágeis consolos, é que eu o recordaria sempre e que lutaria por resgatá-lo do
esquecimento por mais uns quantos anos, que não sei quantos serão, com o poder
invocador da palavra»[2].
O
livro usa a palavra para resgatar o esquecimento; o poema usava-a para o
celebrar. Mas como pode um livro que pretende evocar alguém construir-se sobre
um poema que afirma a futilidade desse mesmo acto? Héctor-filho não podia
encarar a morte do pai segundo a verdade do poema. O pai, pelo contrário,
confrontado com a sua própria morte, podia ver e viver essa verdade.
Héctor-filho
não deixou, todavia, de atribuir o soneto a Borges, aliás como algo natural.
Com a mesma naturalidade que alguém assumiria se no bolso do pai morto
encontrasse um soneto copiado pela sua mão e atribuído a Borges.
III.
Entra,
pois, Borges em cena. Ou melhor, criam-se obstáculos a que entre, pelo menos
num primeiro momento. O livro de Héctor-filho rapidamente se tornou um sucesso
e o sucesso trouxe a insinuação de que o autor se aproveitava de Borges para
promover o livro. Tanto mais que em nenhum livro conhecido do escritor
argentino se pode encontrar o poema.
Com
a polémica instalada, logo vieram os especialistas, corroborados pela viúva de
Borges, negar a autoria. O soneto «Aqui. Hoje», bem como os mais poemas
atribuídos a Borges por Héctor-pai no seu programa de rádio seriam, afinal, do
poeta colombiano Harold Alvarado Tenorio, que os publicou numa revista
literária em 1993.
A
circunstância de se publicarem pela primeira vez em 1993 sonetos lidos na rádio
em 1987 teria certamente deliciado Borges. Tanto mais que Tenorio se assumia,
embora não sem ambiguidade, como mero copista indireto. Afirmou Tenorio ter-se
avistado pela última vez com Borges em Dezembro de 1983 em Nova Iorque,
regressado de Chicago, onde se havia deslocado para receber um prémio. Aí, num
passeio de rua, cuja circunstância não vem ao caso, encontram María Panero,
estudante argentina de medicina e fugida da ditadura militar no seu país.
Borges e a estudante, por sinal belíssima, segundo rezam as crónicas, parecem
entender-se muito bem, como se entre eles houvesse um súbito romance, ou um
romance reacendido depois de uma longa separação, o que bem vistas as coisas
poderá não ser muito diferente. Numa viagem de táxi, Borges tem uma inspiração
súbita e María Panero serve como copista. María Panero conserva os originais e
Tenorio fotocopia-os, sem que os demais circunstantes se apercebam do caso.
Mais tarde, depois de algumas peripécias, que incluem uma violenta bebedeira,
um internamento hospitalar e um delírio que leva Tenorio a pensar ser Edgar
Alan Poe, o poeta colombiano voa para Madrid. Aqui chegado e recebido em casa
de amigos, guarda cópia dos poemas num exemplar das Webster’s World Histories, onde teriam ficado depositados durante
alguns anos, antes de, em 1993, os recuperar e publicar[3].
IV.
A
versão de Tenorio não satisfez Héctor-filho. Desde logo não combinava com a
história contada por Héctor-pai no seu programa de rádio, em que afirmava ter
extraído «Aqui. Hoje», acompanhado de mais quatro sonetos, de um pequeno livro
feito à mão na Argentina e publicado em 1986 por Ediciones Anónimos, de que apenas foram publicadas 300 cópias.
O
livro, com o título «Poesía Anónima 4», fazia parte de uma colecção lançada por
estudantes que celebrava um interesse puro pela poesia, livre dos nomes dos
seus autores. Um interesse que encontrava, afinal, a sua inspiração nos versos de
Borges com o título «Un Poeta Menor»: «La meta es el olvido./ yo he llegado
antes»[4]. Isto
diz-nos outro participante nesta trama, o escritor argentino Jaime Correas e um
dos estudantes universitários que editaram «Poesía Anónima 4»[5].
Talvez
para celebrar a recente morte do grande escritor argentino, ocorrida em 1986,
«Poesía Anónima 4» apareceu com a indicação do nome de Borges, como autor de
«Aqui. Hoje», e dos outros quatro sonetos lidos no programa de rádio de
Héctor-pai. Mas como chegaram estes poemas a ser publicados em 1986, um ano
antes da morte deste último?
Em
29 de Setembro de 1985, o poeta francês Jean Dominique Rey visitou Borges na
sua casa de Buenos Aires, acompanhado do pintor argentino Guillermo Roux e da
mulher deste, Franca Beer. Durante a visita, Rey pediu a Borges alguns poemas
inéditos a fim de os publicar em França. Borges conduziu-o ao seu gabinete,
pediu-lhe aí que tirasse uns poemas de uma gaveta e os lesse. Enquanto o fazia,
Borges ditava correcções que Roux escrevia à mão diretamente sobre os próprios
originais. Terminada a correcção, Borges ainda desafiou Rey para almoçar num
restaurante de comida chinesa, mas este tinha avião marcado de regresso a Paris
nesse mesmo dia e recusou. Borges entregou os poemas pouco tempo depois a Franca
Beer, que ao mesmo tempo que deles enviou cópia a Jean Dominique Rey, os enviou
também a um amigo de infância em Mendoza, grande apreciador de Borges, através
do qual chegaram a um dos editores da coleção «Poesía Anónima»[6].
Depois de reconstituir, também ele, esta via de criação dos poemas,
Héctor-filho declara-se reconciliado com o poema de Borges, por terem sido umas
letras manchadas pelos últimos fios da vida do seu pai a resgatar, sem o pretender,
para o mundo «um esquecido soneto de Borges sobre o esquecimento»[7].
V.
Dizem
os entendidos que a versão de «Aqui. Hoje» encontrada no bolso de Héctor-pai é
mais perfeita do que a publicada por Tenorio em 1993. Só conheço a versão de
bolso. Seja como for, estes e todos os demais personagens aqui mencionados poderiam
dizer de si próprios o que o próprio não hesitou em afirmar: «eu vivo, eu
deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura
justifica-me»[8].
[1] Héctor Abad Faciolince, El Olvido
que Seremos, Editorial Seix Barral, Barcelona, 2007. Há tradução portuguesa
de Margarida Amado Acosta: Somos o
Esquecimento que Seremos, Quetzal, Lisboa, 2009.
[3] Esta versão colhi-a no
excelente livro de Jaime Correas, adiante citado. Mas o poeta colombiano, cuja
biografia é impressionantemente traçada nesse mesmo livro, apresenta uma outra:
http://www.elespectador.com/impreso/articuloimpreso148947-sigue-polemica-versos-de-borges.
[4] Cf. Jorge Luis Borges,
Poesía Completa, Ediciones Destino,
Bercelona, 2010, p. 407 (os versos fazem parte do poema «Quince Monedas»,
incluído pela primeira vez no livro La
Rosa Profunda, de 1975).
[8] Cf. J. L. Borges,
“Borges e Eu”, in O Fazedor, tradução
de Miguel Tamen, Difel, Lisboa, 1984, p. 57.
Que terrível imbroglio autoral! Sugiro a correção no final do quinto verso do texto original, que deve ser "fechas".
ResponderEliminarO poema não celebra em meu entender o esquecimento mas sim a vida.Celebra aquilo de que não devemos abdicar em nome de "apenas viver".
ResponderEliminarGostei muito de ler este ensaio.
ResponderEliminarPerguntaria apenas ao Miguel se a afirmação de que "os versos são hendecassílabos e não os decassílabos frequentemente utilizados por Camões" se trata de um lapso ou há alguma razão para isso, talvez a métrica das sílabas no castelhano. É que na minha leitura do soneto original, todos os versos me parecem decassílabos perfeitos.
Cordialmente,
Hélder Francisco
Na versificação espanhola, o cômputo silábico difere do sistema português em que, naquela, no verso terminado em palavra paroxítona (verso grave), conta-se também a última sílaba fonológica. Se o verso termina em palavra oxítona (verso agudo), conta-se uma sílaba mais; e se termina em proparoxítona (verso esdrúxulo), conta-se uma menos. No caso do soneto em apreço, todos os versos são graves e hendecassílabos (onze sílabas métricas).
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