El Greco, A Visão de São João (1609-1614) |
Fiquei
muito desconsoladito com a recensão que a prestigiadíssima The New York Review of Books dedicou a El Greco. Ou, melhor dizendo, ao
catálogo da exposição que esteve patente até ontem/yesterday no Museu de Santa Cruz, em
Toledo, livro intitulado, no original castelhano, El Griego de Toledo, e, bem assim, ao volumoso livro que o curador dessa
exposição, Fernando Marías, publicou há pouco, chamado El Greco. Historia de un pintor extravagante.
O
texto da NYRB, com o título «Irresistible El Greco», é assinado por Ingrid D. Rowland, professora da Escola de Arquitectura na Universidade de Notre Dame e
que tem obra publicada sobre arte renascentista. Lemos aquilo e encontramos, ao
início, um guia turístico da exposição – ou, melhor, das exposições – que em
Toledo assinalaram o 4º centenário da morte de Domenikos Theotokopoulos, com
referências anedóticas ao facto de Madrid e Toledo estarem hoje ligadas por um confortável
comboio de alta velocidade («these two cities are now connected by a quick,
comfortable, high-speed train»). O registo prossegue, com outra observação de
antologia sobre as maravilhas de Toledo: «If El Greco is still an acquired taste for many people, the
best place to acquire that taste is in Toledo».
A
recensão entra depois na clássica trilogia cronológica em que a vida e obra de El
Greco são divididas: o período cretense; o período italiano e o período
castelhano. Sobre os tempos de Creta, Ingrid D. Rowland discorre sobre
Domenikos Theotokopoulos, como lhe compete, mas decide fazer uma referência
prolongada a Vintzentzos Kornaros (1553-1613/4), poeta humanista que, por volta de 1600,
escreveu uma monumental epopeia, Erotokritos.
Depois, surpreendentemente, estranha que Fernando Marías, no seu livro (o já
citado El Greco. Historia de un pintor
extravagante ou, em inglês, El Greco:
Life and Work – A New History, editado pela Thames and Hudson) não refira o
nome de Kornaros, também grafado em italiano «Vincenzo Cornaro». A questão é
esta: apesar de ambos terem partilhado a mesma atmosfera histórica e cultural, Theotokopoulos
e Kornaros não tiveram qualquer ligação. El
Greco não conheceu o poeta e Erotokritos
não constava da sua razoável biblioteca, composta por mais de 130 volumes (dez
vezes maior do que a de Caravaggio…). A livraria do Grego encontra-se
parcialmente em exposição no Prado, até dia 29 deste mês, e no catálogo encontramos
obras de Xenofonte, de Homero, de Aristóteles ou Plutarco, de Flávio Josefo,
mas nada existe de Vintzentzos Kornaros. O ponto é mais importante do que
parece: Domenikos anotava furiosamente os seus livros, ainda que, segundo sei,
os apontamentos que fez à margem de obras tão importantes como o tratado de
arquitectura de Vitrúvio, ilustrado por Andrea Palladio, não estejam ainda publicados.
Anotações de El Greco no tratado de arquitectura de Vitrúvio |
Se acaso Erotokritos constasse da
livraria de El Greco seria um elemento importante para reforçar a noção de
«identidade cretense» que nos últimos tempos tem vindo a ser cada vez mais
realçada – porventura, excessivamente realçada. Assim, a omissão existente no livro de
Marías (catedrático em Madrid e, porventura, o maior especialista contemporâneo
na obra de El Greco), apontada por Ingrid D. Rowland, não tem a mínima gravidade e o que diz a recensão não possui razão de ser. E
o facto de, até ao fim da vida, Domenikos Theotokopoulos ter assinado as suas
pinturas com o nome de nascença não é, por si só, suficiente para firmar,
sobretudo da forma vincada que agora é moda, a «marca de Candia» na sua obra
subsequente. O que se pode dizer, isso sim, é que o próprio Marías adere a essa
tendência, pois é ela, a da figuração do Grego como sgouraphos (pintor de ícones), que lhe permite dar o mote à
exposição que ontem fechou portas; «El Griego de Toledo: pintor de lo visible y lo invisible». É em torno desta bipolaridade
entre o visível e o invisível, de que os ícones pintados em Candia são expressão
maior, que Marías constrói a sua sedutora apresentação à obra do autor de O Enterro do Conde de Orgaz. Ingrid D. Rowland, na sua infeliz recensão, opta por
palpites e suposições de cariz paisagístico, como se as cores fulgurantes das
suas pinturas remetessem natural ou necessariamente para o que os seus olhos
viram nas águas do Mediterrâneo: «Yet
a man who spent the first half of his life on Crete could never erase the
memory of the sun-saturated colors of the Greek islands, and they recur in his
work: the aquamarine of Aegean waters, the incandescent yellow of the wild
daisies that carpet Cretan fields in early summer, the ravishing delicate
violet of crown anemones that he transferred to the shawl that wraps around a
redheaded Mary Magdalene in a gorgeous early painting that dies when it is
reproduced: no printer’s ink can reproduce that fantastic mauve (or the
cornflower blue of the sky above it) with anything resembling accuracy.»
Com o devido respeito, isto não é crítica de
arte, é especulação embrulhada num discurso pseudopoético. Sem querer
desvalorizar a importância do período cretense, até pela extensão do seu arco
temporal (que cobre quase metade da vida do pintor, de 1541 a 1566), o que dele
sabemos é muito pouco, reduzindo-se a três ícones e a cinco documentos
notariais, o último dos quais subscrito quando Domenikos já se encontrava em
Veneza. Tudo o mais pertence ao domínio da pura adivinhação.
É
esse o registo em que Ingrid Rowland se mantém. Por exemplo, uma das razões que
aponta para o seu insucesso em Roma, junto da «corte» do cardeal Alessandro Farnese,
para onde se deslocou em 1570, é totalmente especulativa, até caricata. El
Greco pode ter sido um mau cortesão, habituado que estava aos princípios
igualitários da República de Veneza e da Igreja Ortodoxa… («The
Greek may also have made an unsatisfactory courtier, accustomed as he was to
the comparatively egalitarian principles of the Venetian Republic and the Greek
Orthodox Church.»). Pergunta-se: terá sido esta também a razão do seu insucesso
junto de Filipe II?
Tudo se processa a este nível, ficcional
e hipotético, com observações que raiam o absurdo, como aquela em que Ingrid diz
que, ao chegar a Toledo, El Greco ficou encantado pela beleza das mulheres da
cidade («He was captivated from
the outset by the beauty of Toledo’s women»). Muito mais haveria a dizer
deste texto numa revista tão prestigiada. Por exemplo, o irmão de Domenikos e o
filho deste são retratados de forma muito deficiente, omitindo-se o essencial
do que foram e do papel que tiveram na sua vida. Sei que numa recensão de
revista não há espaço para tudo, mas Ingrid Rowland exagera por defeito,
dedicando três linhas ao retábulo da Capela de San José, uma obra que, até do
ponto de vista das suas implicações teológicas, é de uma enorme complexidade
(cf., para uma primeira aproximação, o pequeno livro de Palma Martínez Burgos
García, El Greco en la Capilla de San
José, 1597-1599, Toledo, s.d., em esp. pp. 44-53).
Para
quem goste de maldizer constantemente o nosso país e o seu atraso, fique com
esta: o extraordinário texto que Paulo Varela Gomes publicou no Ípsilon/Público sobre El Grego é infinitamente melhor e mais rigoroso do
que o de Ingrid Rowland deu à luz nas páginas de uma revista com os pergaminhos
da The New York Review of Books.
Nem
tudo, porém, são más notícias. Ontem, por casualidade, entrei numa livraria.
Deparei com o livro de Maurice Barrès Greco
ou o Segredo de Toledo, em tradução portuguesa, publicado pela Sistema
Solar, numa edição cuidada, traduzida e anotada por Aníbal Fernandes. Podemos
não apreciar Barrès e tudo quanto fez na vida, nomeadamente no affaire Dreyfus, e esta obra, dos anos
vinte do século passado, encontra-se obviamente datada do ponto de vista
informativo e interpretativo. Até por isso, é singularíssimo que um editor
português se tenha metido na venturosa aventura de publicar este livro. Um
livro maravilhosamente escrito, de uma beleza formal magnífica, com um poder
evocativo extraordinário. Muita divagação, é certo, mas Barrès não quis fazer
crítica de arte, ao contrário de Ingrid Rowland.
Como
disse Paulo Varela Gomes, mesmo as mais perfeitas reproduções dos quadros do
Grego, em formato papel ou digital, são incapazes – absolutamente incapazes –
de nos devolver o fulgor das suas telas. Andei por ali em êxtase completo, entre
os carmins flamejantes e os céus plúmbeos de Toledo. A exposição El Griego de Toledo fechou ontem. Mas outra
boa notícia: a 9 de Setembro, ainda que sem a dimensão desta e com um propósito
algo diverso, abrirá El Greco: Arte y Oficio. Igualmente no Museu de Santa Cruz, até 9 de Dezembro. Em podendo,
lá estarei.
El Greco, Caballero de la mano en el pecho, c. 1580 |
Ando intrigado com um dos mais intrigantes quadros de El Greco, uma
das suas pinturas sobre as quais mais literatura já se produziu. Não é uma
pintura mística ou devocional, mas um retrato. Caballero de la mano en el pecho, de cerca de 1580, habitualmente
exposto no Prado. O óleo não é «um Greco» como os que estamos habituados a ver.
Desde as primeiras fotografias que lhe foram tiradas no século XIX, em 1880, por
Jean Laurent, que também por Portugal andou, sabemos que o ombro esquerdo do
cavaleiro sempre esteve assim, naquela forma estranha. Estes e outros elementos
levaram-no a identificá-lo, sem absoluta certeza, como o «manco» ou o «corcovado» D. Juan de Silva e
Silveira, 4º conde de Portalegre pelo seu casamento em 1577 com D. Filipa da
Silva. Cavaleiro de Calatrava, soldado em Orão (onde foi acusado de traição, o
que justificaria, nesta tela, a mão no peito, em sinal de fidelidade), foi
embaixador em Portugal (1576-1578). Terá perdido o braço em Alcácer-Quibir, batalha para que se dirigiu na companhia de D. Sebastião e onde foi feito cativo durante mais
de um ano. Em 1593, já libertado, seria nomeado capitão-geral do reino de
Portugal [cf. Fernando Marías (ed.), El
Griego de Toledo. Pintor de lo visible y de lo invisible, s.l., 2014, em
esp. pp. 161ss]. O quadro tem uma importância tal na obra de El Greco e
suscitou tão vasta literatura que figura na capa do livro de Fernando Marías, a
que Ingrid Rowland prestou um mau serviço nas páginas da The New York Review of Books. No melhor pano cai a nódoa.
António Araújo
Este excelente texto do António Araújo fez-me recordar duas outras notáveis exposições sobre El Greco e Toledo, sem viés comemorativo, realizadas em 1982: "El Toledo de El Greco", no Hospital de Talavera/Iglesia de San Pedro Martir, em Toledo, em abril-junho, e "El Greco de Toledo", no Museu do Prado, em Madrid, em Abril-Junho, na National Gallery of Art, em Washington, D.C., em Julho-Setembro, no The Toledo Museum of Art, em Toledo, Ohio, em Setembro-Novembro, e no Dallas Museum of Fine Arts, em Dezembro-Fevereiro 1983. Ambas produziram volumosos e preciosos catálogos, com boas ilustrações e textos firmados por grandes especialistas como Alfonso E. Pérez Sánchez, Fernando Marías, Jonathan Brown, Richard L. Kagan, William B. Jordan, Isabel Mateo Gómez e Balbina Martínez Caviró.
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