segunda-feira, 16 de junho de 2014

E já cá faltava um apontamento parvito sobre El Greco.





El Greco, A Visão de São João (1609-1614)



Fiquei muito desconsoladito com a recensão que a prestigiadíssima The New York Review of Books dedicou a El Greco. Ou, melhor dizendo, ao catálogo da exposição que esteve patente até ontem/yesterday no Museu de Santa Cruz, em Toledo, livro intitulado, no original castelhano, El Griego de Toledo, e, bem assim, ao volumoso livro que o curador dessa exposição, Fernando Marías, publicou há pouco, chamado El Greco. Historia de un pintor extravagante.  
O texto da NYRB, com o título «Irresistible El Greco», é assinado por Ingrid D. Rowland, professora da Escola de Arquitectura na Universidade de Notre Dame e que tem obra publicada sobre arte renascentista. Lemos aquilo e encontramos, ao início, um guia turístico da exposição – ou, melhor, das exposições – que em Toledo assinalaram o 4º centenário da morte de Domenikos Theotokopoulos, com referências anedóticas ao facto de Madrid e Toledo estarem hoje ligadas por um confortável comboio de alta velocidade («these two cities are now connected by a quick, comfortable, high-speed train»). O registo prossegue, com outra observação de antologia sobre as maravilhas de Toledo: «If El Greco is still an acquired taste for many people, the best place to acquire that taste is in Toledo». 
A recensão entra depois na clássica trilogia cronológica em que a vida e obra de El Greco são divididas: o período cretense; o período italiano e o período castelhano. Sobre os tempos de Creta, Ingrid D. Rowland discorre sobre Domenikos Theotokopoulos, como lhe compete, mas decide fazer uma referência prolongada a Vintzentzos Kornaros (1553-1613/4), poeta humanista que, por volta de 1600, escreveu uma monumental epopeia, Erotokritos. Depois, surpreendentemente, estranha que Fernando Marías, no seu livro (o já citado El Greco. Historia de un pintor extravagante ou, em inglês, El Greco: Life and Work – A New History, editado pela Thames and Hudson) não refira o nome de Kornaros, também grafado em italiano «Vincenzo Cornaro». A questão é esta: apesar de ambos terem partilhado a mesma atmosfera histórica e cultural, Theotokopoulos e Kornaros não tiveram qualquer ligação. El Greco não conheceu o poeta e Erotokritos não constava da sua razoável biblioteca, composta por mais de 130 volumes (dez vezes maior do que a de Caravaggio…). A livraria do Grego encontra-se parcialmente em exposição no Prado, até dia 29 deste mês, e no catálogo encontramos obras de Xenofonte, de Homero, de Aristóteles ou Plutarco, de Flávio Josefo, mas nada existe de Vintzentzos Kornaros. O ponto é mais importante do que parece: Domenikos anotava furiosamente os seus livros, ainda que, segundo sei, os apontamentos que fez à margem de obras tão importantes como o tratado de arquitectura de Vitrúvio, ilustrado por Andrea Palladio, não estejam ainda publicados. 


Anotações de El Greco no tratado de arquitectura de Vitrúvio



Se acaso Erotokritos constasse da livraria de El Greco seria um elemento importante para reforçar a noção de «identidade cretense» que nos últimos tempos tem vindo a ser cada vez mais realçada – porventura, excessivamente realçada. Assim, a omissão existente no livro de Marías (catedrático em Madrid e, porventura, o maior especialista contemporâneo na obra de El Greco), apontada por Ingrid D. Rowland, não tem a mínima gravidade e o que diz a recensão não possui razão de ser. E o facto de, até ao fim da vida, Domenikos Theotokopoulos ter assinado as suas pinturas com o nome de nascença não é, por si só, suficiente para firmar, sobretudo da forma vincada que agora é moda, a «marca de Candia» na sua obra subsequente. O que se pode dizer, isso sim, é que o próprio Marías adere a essa tendência, pois é ela, a da figuração do Grego como sgouraphos (pintor de ícones), que lhe permite dar o mote à exposição que ontem fechou portas; «El Griego de Toledo: pintor de lo visible y lo invisible». É em torno desta bipolaridade entre o visível e o invisível, de que os ícones pintados em Candia são expressão maior, que Marías constrói a sua sedutora apresentação à obra do autor de O Enterro do Conde de Orgaz. Ingrid D. Rowland, na sua infeliz recensão, opta por palpites e suposições de cariz paisagístico, como se as cores fulgurantes das suas pinturas remetessem natural ou necessariamente para o que os seus olhos viram nas águas do Mediterrâneo: «Yet a man who spent the first half of his life on Crete could never erase the memory of the sun-saturated colors of the Greek islands, and they recur in his work: the aquamarine of Aegean waters, the incandescent yellow of the wild daisies that carpet Cretan fields in early summer, the ravishing delicate violet of crown anemones that he transferred to the shawl that wraps around a redheaded Mary Magdalene in a gorgeous early painting that dies when it is reproduced: no printer’s ink can reproduce that fantastic mauve (or the cornflower blue of the sky above it) with anything resembling accuracy.»
Com o devido respeito, isto não é crítica de arte, é especulação embrulhada num discurso pseudopoético. Sem querer desvalorizar a importância do período cretense, até pela extensão do seu arco temporal (que cobre quase metade da vida do pintor, de 1541 a 1566), o que dele sabemos é muito pouco, reduzindo-se a três ícones e a cinco documentos notariais, o último dos quais subscrito quando Domenikos já se encontrava em Veneza. Tudo o mais pertence ao domínio da pura adivinhação.   
É esse o registo em que Ingrid Rowland se mantém. Por exemplo, uma das razões que aponta para o seu insucesso em Roma, junto da «corte» do cardeal Alessandro Farnese, para onde se deslocou em 1570, é totalmente especulativa, até caricata. El Greco pode ter sido um mau cortesão, habituado que estava aos princípios igualitários da República de Veneza e da Igreja Ortodoxa… The Greek may also have made an unsatisfactory courtier, accustomed as he was to the comparatively egalitarian principles of the Venetian Republic and the Greek Orthodox Church.»). Pergunta-se: terá sido esta também a razão do seu insucesso junto de Filipe II?
Tudo se processa a este nível, ficcional e hipotético, com observações que raiam o absurdo, como aquela em que Ingrid diz que, ao chegar a Toledo, El Greco ficou encantado pela beleza das mulheres da cidade («He was captivated from the outset by the beauty of Toledo’s women»). Muito mais haveria a dizer deste texto numa revista tão prestigiada. Por exemplo, o irmão de Domenikos e o filho deste são retratados de forma muito deficiente, omitindo-se o essencial do que foram e do papel que tiveram na sua vida. Sei que numa recensão de revista não há espaço para tudo, mas Ingrid Rowland exagera por defeito, dedicando três linhas ao retábulo da Capela de San José, uma obra que, até do ponto de vista das suas implicações teológicas, é de uma enorme complexidade (cf., para uma primeira aproximação, o pequeno livro de Palma Martínez Burgos García, El Greco en la Capilla de San José, 1597-1599, Toledo, s.d., em esp. pp. 44-53).  
Para quem goste de maldizer constantemente o nosso país e o seu atraso, fique com esta: o extraordinário texto que Paulo Varela Gomes publicou no Ípsilon/Público sobre El Grego é infinitamente melhor e mais rigoroso do que o de Ingrid Rowland deu à luz nas páginas de uma revista com os pergaminhos da The New York Review of Books.      




Nem tudo, porém, são más notícias. Ontem, por casualidade, entrei numa livraria. Deparei com o livro de Maurice Barrès Greco ou o Segredo de Toledo, em tradução portuguesa, publicado pela Sistema Solar, numa edição cuidada, traduzida e anotada por Aníbal Fernandes. Podemos não apreciar Barrès e tudo quanto fez na vida, nomeadamente no affaire Dreyfus, e esta obra, dos anos vinte do século passado, encontra-se obviamente datada do ponto de vista informativo e interpretativo. Até por isso, é singularíssimo que um editor português se tenha metido na venturosa aventura de publicar este livro. Um livro maravilhosamente escrito, de uma beleza formal magnífica, com um poder evocativo extraordinário. Muita divagação, é certo, mas Barrès não quis fazer crítica de arte, ao contrário de Ingrid Rowland.  
Como disse Paulo Varela Gomes, mesmo as mais perfeitas reproduções dos quadros do Grego, em formato papel ou digital, são incapazes – absolutamente incapazes – de nos devolver o fulgor das suas telas. Andei por ali em êxtase completo, entre os carmins flamejantes e os céus plúmbeos de Toledo. A exposição El Griego de Toledo fechou ontem. Mas outra boa notícia: a 9 de Setembro, ainda que sem a dimensão desta e com um propósito algo diverso, abrirá El Greco: Arte y Oficio. Igualmente no Museu de Santa Cruz, até 9 de Dezembro. Em podendo, lá estarei. 


El Greco, Caballero de la mano en el pecho, c. 1580



Ando intrigado com um dos mais intrigantes quadros de El Greco, uma das suas pinturas sobre as quais mais literatura já se produziu. Não é uma pintura mística ou devocional, mas um retrato. Caballero de la mano en el pecho, de cerca de 1580, habitualmente exposto no Prado. O óleo não é «um Greco» como os que estamos habituados a ver. Desde as primeiras fotografias que lhe foram tiradas no século XIX, em 1880, por Jean Laurent, que também por Portugal andou, sabemos que o ombro esquerdo do cavaleiro sempre esteve assim, naquela forma estranha. Estes e outros elementos levaram-no a identificá-lo, sem absoluta certeza, como o «manco» ou o «corcovado» D. Juan de Silva e Silveira, 4º conde de Portalegre pelo seu casamento em 1577 com D. Filipa da Silva. Cavaleiro de Calatrava, soldado em Orão (onde foi acusado de traição, o que justificaria, nesta tela, a mão no peito, em sinal de fidelidade), foi embaixador em Portugal (1576-1578). Terá perdido o braço em Alcácer-Quibir, batalha para que se dirigiu na companhia de D. Sebastião e onde foi feito cativo durante mais de um ano. Em 1593, já libertado, seria nomeado capitão-geral do reino de Portugal [cf. Fernando Marías (ed.), El Griego de Toledo. Pintor de lo visible y de lo invisible, s.l., 2014, em esp. pp. 161ss]. O quadro tem uma importância tal na obra de El Greco e suscitou tão vasta literatura que figura na capa do livro de Fernando Marías, a que Ingrid Rowland prestou um mau serviço nas páginas da The New York Review of Books. No melhor pano cai a nódoa. 


António Araújo    




1 comentário:

  1. Este excelente texto do António Araújo fez-me recordar duas outras notáveis exposições sobre El Greco e Toledo, sem viés comemorativo, realizadas em 1982: "El Toledo de El Greco", no Hospital de Talavera/Iglesia de San Pedro Martir, em Toledo, em abril-junho, e "El Greco de Toledo", no Museu do Prado, em Madrid, em Abril-Junho, na National Gallery of Art, em Washington, D.C., em Julho-Setembro, no The Toledo Museum of Art, em Toledo, Ohio, em Setembro-Novembro, e no Dallas Museum of Fine Arts, em Dezembro-Fevereiro 1983. Ambas produziram volumosos e preciosos catálogos, com boas ilustrações e textos firmados por grandes especialistas como Alfonso E. Pérez Sánchez, Fernando Marías, Jonathan Brown, Richard L. Kagan, William B. Jordan, Isabel Mateo Gómez e Balbina Martínez Caviró.

    ResponderEliminar