terça-feira, 24 de junho de 2014

O Zé Povinho, Totem Nacional Português.







Álbum das Glórias, Setembro de 1882

Desenho de Rafael Bordalo Pinheiro





“Avante! Meu Zé, avante!
Ajunta, na pátria amiga,
Ao nome de Zé pagante
O nom de Zé da espiga!”
“A Espiga”, poema anónimo,  A Paródia, 12-IV-1904




 Surgiu o Zé Povinho graças ao lápis de Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), na Lanterna Mágica de 12-VI-1875, sobrevivendo desde essa data até aos nossos dias, o que prova, através da sua coriácea resistência simbólica de mais de cento e trinta anos, que não se limita a uma criação literária ou meramente satírica da Geração de 70, antes carrega consigo a simbologia da personalidade base dos Portugueses, como estereótipo nacional que foi e continua sendo. O Zé Povinho merece, assim, ser estudado como uma das mais complexas e ricas criações culturais lusas, como uma invenção genial do satírico artista do António Maria, dos Pontos nos ii e da Paródia, como uma sinopse da própria mentalidade do povo que o engendrou e nele, através dum (duplo) diminutivo tão revelador – José (Zé) e Povo (Povinho) –, se tornou nosso símbolo totémico retomado por inúmeros cartoonistas ao longo da monarquia constitucional, da I República e, após a longa vigência da Censura ditatorial, ressurecto em seguida ao 25 de Abril, ainda que nos custe aceitar como nosso retrato verídico essa imagem deprimente e incomodamente labrega que nos espreita do fundo do nosso espelho colectivo, aquele rosto bronco de pascácio rural, de campónio mal vestido, barba rala, colete e chapéu preto de rústico, calças de fazenda ruim, mãos nos bolsos, riso alvar, espécie de resignado Sancho Pança sem um cavaleiro da Triste Figura que o quixotize e lhe comunique um Ideal superior. Esta criação de um mito nacional é algo que valerá para sempre, a Rafael Bordalo Pinheiro, o nosso respeito pelo grande artista que a imaginou com o seu lápis crítico e realista.



O António Maria, de 1880

Desenho de Rafael Bordalo Pinheiro



1.     Estereótipos nacionais e antecessores

Este protótipo nacional, criado desde 1875 por Rafael, membro da geração setentista e, nessa medida, praticante (e militante) dum certo realismo - por oposição a um outro paradigma,  mítico esse e de  recorte inteiramente distinto, o Camões do Tricentenário(1880), proposto pelo sector republicanizante e positivista dos mesmos setentistas –, perpetuando-se muito para além do ambicioso programa palingenésico de 1880 e da panteonização do Bardo da Nação, resistindo a mudanças de regimes e de estatuto social, e, mesmo eclipsado como cartoon numa imprensa vigiada pelo ríspido e paranóide Lápis Azul salazarista durante quase meio século, sobrevivendo a esse longo jejum funcional, refugiado no teatro de revista  e até na linguagem popular, onde ia cumprindo como podia o seu mester de totem caseiro e de novo Parvo vicentino, xabregas mas manhoso, espécie de Soldado Chveik [1] lusitano ou de Bertoldinho luso, [2] falsamente idiota para melhor escapar aos arbítrios do poder e às bordoadas da polícia, herói da resistência passiva [3]. aquela que um povo sofrido, melancólico e iletrado sabia praticar. Entre os seus ascendentes não podemos esquecer o citado Bertoldinho, figura do teatro de cordel do italiano Giulio Cesare Croce, autor da famosa peça em verso Bertoldo, Bertoldino e Cacasenno, que teve prodigiosa popularidade entre nós, como o atestam os muitas edições existentes na Biblioteca Nacional de Lisboa. Por fim, sublinhemos a notável similitude entre o estereótipo alemão, o Miguel  alemão (der deutsche Michel), labrego inculto, homem do campo, ingénuo eternamente espécie simbólica e sociológica muito próxima do nosso Zé Povinho, ainda que coma  diferença assinalável de ter sido criado alguns séculos antes, mais exactamente no séc. XVI: este estereótipo nacional tem uma existência icónica e uma larga tradição verbal, continuando vivo ainda hoje e ainda em funções com a sua simbolização do pobre povo alemão, vítima tanto dos poderosos como dos estrangeiros, como em seguida à derrota militar germânica em 1918.[4]


Tio Sam e John Bull

Punch, 1877



2.     Criação do Zé em 1875, cinco anos antes do Bardo nacional do Tricentenário

O Zé Povinho é, assim, um ser imaginário, mas nem por isso menos real e realista, no qual se pode descortinar, para além da sua especial função satírica ou lúdica, um intuito evidentemente bem conseguido de personificar tradicionalmente o Português, ou seja, de o representar através de um estereótipo nacional, como um símbolo icónico evidente, facilmente reconhecível pelos leitores dos jornais, e, ao mesmo tempo emblema  globalizante, unificador de distintas mentalidades básicas próprias de estratos sociais diversificados. O Zé, figura já mais do que secular, tem mostrado uma persistência e uma tenaz aptidão a resumir de modo praticamente exclusivo a imagem que os Portugueses fazem de si mesmos, expressão duma virtualidade e duma actualidade que atestam a sua justeza ou a sua adequação a um fundo psicológico nacional que se trata de indagar. Queremos, portanto, sumarizar o Zé como um modelo social histórico em vigor desde 1875 até aos nossos dias, reconhecível como paradigma icónico popular, símbolo e emblema étnico dum povo, estereótipo nacional luso desde que Rafael o criou nas páginas da Lanterna mágica, embora nele se constate funcionar afinal um anti-exemplo, isto é, ainda que o Zé não seja paradigma positivo ou modelo de condutas sublimes ou nobres a imitar, espelho de virtudes ou Mito mobilizador, como o foi, por exemplo, o Camões-1880, o Épico reinventado pelo neo-romantismo positivista de Teófilo Braga, sugestionado pelo culto comteano dos Grandes Homens, aplicado em propor aos Portugueses do seu tempo decaído e da sua grei liliputiana um novo messianismo de raiz patriótica. [5] 
Muito ao invés do seu quase contemporâneo do Tricentenário, o Zé nunca se propôs então, nem alguma vez se lembraria depois, ao longo de todo um século de vida, de se oferecer como espelho excelso do País: criação realista, estereótipo satírico – no seu acto inicial nem essa intenção lhe era umbilical, e conscientemente apontada: estava-se apenas perante um contribuinte pobre que tinha de dar dinheiro para o trono do «Santo António» da Fazenda e do Governo, sob o olhar atento e já suspicaz das autoridades, de chicote, emblemático na mão, e isso desde o cartoon inaugural de 1875, no qual o assalto do Fisco ao Zé é observado pelo comandante da Guarda, que ostenta u azorrague para garantir que este não se furte a essa obrigação ritual –, concebido muito «sub specie temporis» para epitomizar a inércia, o desconforto atávico e o cepticismo pirrónico dos Portugueses diante do regime constitucional, fontista, esse «conjunto de sofismas e ficções» (A. Fuschini), chamado sistema representativo liberal, o Zé Povinho depressa se autonomiza do seu criador para voar com asas próprias, utilizado agora por desenhadores como Leal da Câmara, Celso Hermínio, Valença, Alonso, Stuart de Carvalhais e tantos outros artistas gráficos portugueses, como João Abel Manta ou António Jorge Gonçalves nos nossos dias, ele depressa se impõe como aquilo que doravante, sobretudo (ou apenas) será: um símbolo do Português, Portugal em pessoa, ou seja, feito grotesca e ridícula figura visível, escarninha e escarnecida.



Tio Sam, Cartaz I Want You, 1917



3. Evolução e metamorfoses do Zé

Esta é um importante mudança semântica que afecta doravante este símbolo de fácil apreensão generalizada, autenticamente popular em todos os sentidos da expressão: o Zé é o Povo (aliás Povinho, diminuído pelo sufixo), sendo sentido como sua própria expressão por essa comunidade nacional que nele assim se vê representada, materializada como símbolo, também lhe chamando Zé Pagante ou Zé da Espiga. Ele é Todo-o-Mundo ou nós todos: o Zé, nosso estereótipo étnico, expresso de preferência por via da caricatura… Seria de esperar que, sobretudo, aos estudiosos da cultura popular competisse explicar a aura de trivialidade e mistério que rodeia o seu manguito: gesto de esconjuro, obscenidade, galegada, mero exemplo de figa de rústico sem finura nem letras, tradução retórica brutal duma recusa «libertária» ante governos, poderes, polícias, chicotes. Exceptuando o exemplo solitário do citado Leite de Vasconcelos, nunca o Zé, porém, interessou os cultores da antropologia cultural entre nós. Curiosamente, só um zoólogo britânico, Desmond Morris (nasc. em 1928), em pelo menos duas obras suas – Gestures (Nova Iorque, 1979) e O Animal humano (Lisboa, 1996) [6], se lembraria de explicar a linguagem corporal a que pertence o manguito, assim como o seu congénere insultuoso a fuga. Quanto aos historiadores, ficava-lhes ainda, como julgamos que fica, a missão de compreender o Zé Povinho como figura ao mesmo tempo social, psicológica, nacional, através do tempo, narrando a sua diacronia em sucessivos regimes e sociedades distintas durante os quais a sua função simbolizadora permanece, ao arrepio de mutações que lhe deviam decretar a caducidade como símbolo social.
Figura cultural e psíquica colectiva, símbolo dum Nós nacional, duma personalidade base, dum ethos tipicamente luso, o Zé pertence à história das mentalidades: ele é mito e imaginário, nossa imaginação e afectividade, modelo nacional e figura historicamente situada, tradução. profunda de sonhos, obsessões, anseios, tropismos, fobias, medos, aspirações, paixões, rotinas, etc.. Modelo de cultura, protótipo de alma civilizacional e de mentalidade, espécie de anti-Fausto e anti-Camões, o Zé pode ser encontrado na síntese de alguns defeitos e qualidades que de certo modo batalham na sua alma, já que o seu perfil anímico não é tão linear e unidimensional como à primeira vista pode parecer. Homem crédulo e incrédulo, submisso e revoltado, humilde e orgulhoso, abúlico e voluntarioso, indiferente e compassivo, egoísta e dadivoso, azedo e bonacheirão, o Zé opera diversas coincidências de opostos que nem sempre têm a sua realização dialéctica: uma vez por outra, a História solicita-o para além da sua esfera de rotinas e regularidades anímicas, e vemo-lo então transviado, excessivo, autenticamente trans-figurado. Advertira-o Ramalho Ortigão: ele deseja atirar a albarda ao ar e tem do Estado e do Governo ideias demasiado vagas, embora possa explodir de quando em vez, em certos “dias tempestuosos” chamados revoluções...E esta antítese quietude/explosão não foi precisamente apontada por Keyserling  como uma das características fundamentais do carácter português?



Soldado Chveik 

Desenho de J. Lada 


4. O Zé como totem nacional

Talvez só assim compreendamos que um povo pacífico, indolente, preguiçoso, acanhado, rotineiro, tímido e quase que abúlico, apegado ao seu torrão natal, avesso a aventuras e atrevimentos, receando e voltando até as costas ao mar que o acompanha de norte a sul, pouco propenso a imaginar sistemas e ideias espaços metafísicos, ou paraísos perfeitos (não temos, como comunidade cogitante, aversão as sumptuosas arquitecturas da Imaginação e da Estética moral a que chamamos, desde Thomas Morus, Utopias – não somos um povo que curiosamente nunca produziu ínsulas imaginárias, embora as andássemos sacando do mar desde o séc. XV?), talvez só assim, dizíamos, compreendamos que esse mesmo povo tivesse realizado a esgotante gesta de quinhentos, tivesse dilatado os horizontes físicos e morais do mundo e, feito nauta intrépido, aventureiro temerário, explorador, homem de ciência ou missionário, tivesse calcorreado universos em busca de inacessíveis e fantásticas Novas Jerusaléns – lançando-se a gente lusa pelo mundo, como dizia ainda o citado autor da Análise Espectral da Europa, como pelouros de um canhão espalhados pelo planeta, numa explosão que disseminou Vascos da Gama, Mendes Pinto, Joões de Castro, Garcias de Orta e outros andarilhos, navegadores. [7] Em suma, um acervo de contradições psicológicas (dando a este tempo um sentido grupal e histórico) que estão na base da figura afinal complexa e até enigmática deste estereótipo que tão claramente se distancia de outros émulos em categoria ou funções de estereotipia, os John Bull [8] – “João Toruo”, o taurino britânico, e Tio Sam [9] – este duo anglo-saxónico mais conforme a identificar-se com o governo de cada um dos seus respectivos países –, Sancho Pança – e o seu alter-ego, o nobre cavaleiro Dom Quixote –, Miguel Alemão (deutscher Michel) – espécie de conformado Zé Povinho teutónico –, soldado Chveik – um “imbecil épico” muito mais matreiro ou manhoso do que a sua nativa estupidez deixaria supor, especialmente apto a lidar com ocupantes estrangeiros da pátria checa, fossem eles austríacos, alemães ou  soviéticos... –, e outros que, a bem ou a mal, definiram psicologias, e comportamentos históricos de povos como o inglês, o americano, o espanhol, o alemão, o checo, etc.
Com o Zé, criado por Bordalo Pinheiro, tocamos, é certo, na essência caricatural do portuguesismo, do «Homo Lusitanus», ainda que sob o registo do burlesco e da sátira, marcado embora pelo momento histórico em que nasce (como já atrás se disse, ele surge vestido e concebido como imutável da cabeça aos pés, desde a primeira vez que os prelos o parturejaram na Lanterna Mágica desse ano de 1875): ele é Portugal, um certo Portugal ou uma certa maneira psicológica e realista de retratar o Português com muitos defeitos (e algumas virtudes também) devidamente realçados ou caricaturados, com o seu atraso económico-social (daí a sua extracção camponesa, o seu ar de laparoto, sintetizando, dest’arte, a imensa maioria do país rural, o sector primário, cujo peso era esmagador na pirâmide do nosso oitocentos, ultrapassando os 60 % em 1890, quando a Inglaterra nos desfechava a clavina do Ultimato, obrigando-nos a defender com unhas e dentes o que nos restava do destroçado Mapa Cor de Rosa), a inércia duma vida produtiva feita de frus­trações e revoluções industriais falhadas, uma certa menoridade cultural e cívica, um ser duplamente diminuído no seu irónico (ou carinhoso) rebaixamento onomástico: um José Povo que deu em Zé Povinho, um ridicularizado “Soberano” − como o legendava o seu criador, com a simbólica albarda atrás de si, as mão metidas no bolso, a cabeça ligeiramente inclinada para o lado e um sorriso triste de circunstância, daguerreótipo realista do Zé no Álbum das Glórias de Setembro de 1882, forma irónica de o mostrar como pseudo-detentor da Soberania, sendo esta suposta residir nesse mesmo Povo soberano desde que os vintistas importaram para esta desolada Baratária os vistosos ideais da Revolução Francesa e a sua panóplia europeia de Direitos, Liberdades e Garantias, por esse nobre ideário sofrendo amargos exílios nas Franças, Inglaterras e Açores, passando, depois, as passas do Algarve, desembarcando no Mindelo, resistindo no Porto sitiado aos milhares de baionetas do usurpador D. Miguel (as tais oitenta mil lâminas que Herculano, numa imagem forte, dizia que os malhados tiveram de partir uma a uma – «Uns a tinham visto de perto a face da democracia ; tinham-na visto por entre a selva de oitenta mil baionetas que fora preciso quebrar-lhe nas mãos para a liberdade triunfar (...)» (A Voz do Profeta, in Opúsculos) – e lutando ainda por muitos anos para que, um dia, os bacharéis lusitanos pudessem piar no parlamento e o povinho fruir da excelsa benesse do sufrágio (ainda que censitário) do consabido «sistema que felizmente nos rege», como diziam os Acácios e Abranhos deste país.



Zé Povinho dorme, des. de H. Collomb
(postal ilustrado)



5. Evolução simbólica do Zé Povinho

O Zé foi criado há mais de 130 anos e, nessa medida, detém uma invejável longevidade simbólica e popular, o que mostra, desde logo, que tem sabido resistir heroicamente – da sua especial heroicidade peculiar, a Resistência Passiva (como o sublinhou Leite de Vasconcelos) –  como símbolo do nosso modo de ser e pensar, do nosso comportamento e da nossa Ética colectiva, para não falar da nossa Política. Antes de mais, ele é, desde a primeira vez que apareceu numa ilustração da Lanterna Mágica, um produto directo do Fisco – tido como expressão evidente do esbulho, do arbítrio e da violência sobre o cidadão inerme e impecunioso, todos esses pobres pulhas que somos – e adversário neurasténico e permanente de todos os que governam, ainda que seja incapaz de teorizar sobre a estrutura da Polis ou imaginar sequer, como labrego iletrado que é (em 2011, ainda tínha­mos, cá dentro, 5% de ignaros totais), uma forma de a melhorar ou substituir por outra, já que lhe falta de todo qualquer inclinação crítica cogitativa.
Muito ao invés do seu quase contemporâneo do Tricentenário, o insigne Bardo que gravou no mármore perene da Epopeia os nossos feitos ligados à Expansão marítima e às Descobertas de outros mundos para além da nossa península nativa, o Zé nunca se propôs então, nem alguma vez se lembraria depois, ao longo de mais do que um século de vida, de se oferecer como espelho excelso do País: criação realista de um membro dessa geração que fez as Conferências do Casino e sonhou com um impossível socialismo proudhoniano – ou, pelo menos, em grau mais exequível e mais modesto, limpar as estrebarias políticas dos nossos Áugias com a barrela titânica da reforma republicana −, o Zé é um estereótipo satírico concebido para epitomizar a inércia, o desconforto atávico e o cepticismo pirrónico dos Portugueses diante do regime constitucional, ainda que o Zé Povinho depressa se autonomizasse do seu criador para voar com asas próprias: nas mãos de ma plêiade de cartoonistas talentosos, muitos deles actuando durante a efémera e frágil I República – o que provava que ele não se limitava a ser um guerrilheiro republicano, uma vez que da sua máscara ele se serviam também artistas talassas (v.g., Alonso, Colaço, Silva Monteiro, Hipólito Collomb, Almada Negreiros, em jornais satíricos hostis ao regime implantado em 1910, tais como O Talassa, O Petardo, Papagaio Real, Os Ridículos, etc., embora um semanário de caricaturas como O Zé [10] mantivesse ao longo desse período um Zé de veia retintamente republicana) –, vegetando depois, durante meio século, sob a férrea censura salazarista-marcelista, até que, abolido de vez o ríspido Lápis Azul ditatorial que tantas décadas o aferrolhara, os continuadores e herdeiros da criação simbólica de Rafael Bordalo Pinheiro retomaram nos nossos dias a sua persona, como João Abel Manta, António, Rui Pimentel e outros, ele depressa se impunha como aquilo que continua a ser, isto é, um símbolo do Português, Portugal em pessoa, feito grotesca e ridícula figura visível, escarninha e escarnecida, respondendo com o seu brutal e irado gesto obsceno ao malocchio das inúmeras e constantes vicissitudes e misérias que vai sofrendo, através do Fisco ou doutras formas de ser albardado pelas mãos do Estado e pelas intermináveis formas que resultam dos desmandos de quem o desgoverna, desse usurpador que se intitula Soberano, remetendo o pobre Zé ao estatuto de diminutivo desprezível e desprezado. Deixando aos demais as tarefas intelectuais de formular uma estratégia superior de réplica política ou cultural aos abusos de que é vítima inerme, o Zé contenta-se em resistir pela forma tradicional e peculiar da resistência passiva e, nas ocasiões mais abrasivas ou intoleráveis, pela explosão gestual, pelo colérico manguito que tudo resume.







6. O estatuto sociológico do Zé


Ao criar o Zé Povinho no derradeiro quarto de século de oitocentos, Rafael teve a intuição notável ou a perspicácia de lhe dar, desde logo, um estatuto sociológico que fazia dele a expressão patente e claramente identificável do sector rural português, dominante na pirâmide social de então, uma vez que o sector primário (a agricultura) ocupava, em 1890, 61% no sector da população economicamente activa,  contra 18,4% no secundário (indústria) e 20,6 % no terciário (serviços), situação que era acompanhada, desde 1878, por uma estarrecedora percentagem de analfabetismo geral dos quatro milhões e meio de portugueses desse período, evoluindo com atroz lentidão nos anos seguintes: 74.1% (1900), 69,1% (1911), 66,2% (1920), 66,3% (1930),48,8% (1940), 41,5% (1950), 31,3% (1960), 25,6% (1970), 11,2% (1991) e 9% (2001).  Deste modo, o Zé era, de facto, um homem rural, um emblema do sector primário esmagadoramente dominante nas actividades económicas da população activa, o que se iria perpetuar por mais umas décadas, ao longo dos dois regime políticos seguintes, a I República e a Ditadura: o sector primário situar-se-ia nos 49,1% da população em 1950, contra 24,6% no secundário e 26,3% no terciário, evoluindo muito lentamente nas décadas seguintes, com 43,9 (1960). Seria preciso esperar pelo ano de 1981 – após o 25 de Abril, portanto -, para que o primário cedesse a hegemonia no sector activo mais numeroso da população, pois nesse ano a sua percentagem desceria para 19%, contra 39% no secundário e 425% no terciário. Por outras palavras, só nesse ano o Zé seria finalmente arredado da cúspide da pirâmide para que o sector activo dominante fosse, doravante, o terciário, com o qual começa, de modo cada vez mais notório, a imparável terciarização da sociedade lusa : 49% em 1991 e 62, 8% em 2001.
         Dito de outra forma, o Zé deixou de ser rural só desde 1981, ano em que, pela primeira vez, deixa de representar a hegemonia como sector de agente predominante da actividade económica. Resumindo, em 1875, ao estrear-se no palco social e político da Lanterna mágica, o Zé era um homem rústico que vinha à cidade, à “arcada”(como então s e dizia), para observar o cenário da política, sendo assaltado pelo Estado – o terciário -, que desde então, ainda que minoritário, representava a burguesia predominante no país real. Os políticos que o assaltavam com o imposto  − o primeiro ministro (Fontes), o rei (D. Luís) e o ministro da Fazenda (Serpa Pimentel) e o comandante da Guarda Municipal (o barão de Rio Zêzere) eram a classe dos homens cultos e poderosos que geriam o país, o governavam. O choque ente o Zé e essa casta tinha, em suma, um conteúdo sociológico e simbólico que levaria mais de um século a desaparecer e deixar de ser emblemático. O fundo étnico do Zé salvou-o de deixar de ter conteúdo realista ou real. E se ainda o estudamos, é porque nele se continua a manifestar algo que não envelhece  − o psiquismo do Português tal e qual, a sua mentalidade.


Desenho de António 


7. O Zé como totem nacional

De qualquer modo, mau grado a sua lenta perda de conteúdo sociológico – notemos que a única tentativa icónica e onomástica de lhe alterar o apelido e o estatuto social foi praticada pelo cartoonista Hipólito Collomb ao chamar-lhe “Povão” (em 1917 e 1918, nas páginas do Século Cómico, suplemento d’ O Século) e ao dar-lhe um vestuário de acordo com o esse aburguesamento ou upgrade social, [11] o Zé manteria até aos nossos dias, com ligeiras adaptações “darwinianas”, um ar inconfundível de labrego, de rústico analfabeto e rude, já como Zé ´Pagante ou Zé da Espiga ou o Zé da Albarda que viera do campo para a cidade dos políticos para ser assaltado pelo Fisco, sovado pela polícia e cavalgado por mandões e tiranetes das mais desvairadas espécies, O seu conteúdo simbólico manter-se-ia, todavia, central e invariável, como totem do modo-de-ser nacional, do nosso psiquismo e comportamento. Em termos psicofísicos ou morfológicos, aí o temos de chapéu braguês, camisa rude desabotoada, calças de pano com rasgões, colete de campónio e botas velhas. No físico e na indumentária, o Zé seria sempre o rural que desce à Cidade, de sorriso amarelo e triste, de mãos nos bolsos, ligeiramente inclinado para o lado, cabelo desgrenhado, barba rala por fazer, pele curtida e morfologia pesado, de esqueleto forte, musculado, entroncado. Psicossomaticamente, portanto, um pícnico, oscilando entre a alegria e a tristeza, extrovertido e melancólico, eufórico e agitado ou ensonado. De novo, seria Hipólito Collomb, numa série de postais coloridos, sem data, dos “Sete Pecados mortais” (representando os principais políticos da I República) que representaria a Preguiça como um Zé Povinho dormindo, esse velho vício que praticava e pelo qual há muito Rafael Bordalo Pinheiro simbolizava a sua apatia e alheamento em relação ao espectáculo da política e do desgoverno nacionais. [12]
 Em suma, o Zé, não obstante as suas metamorfoses aparentes ao longo de vários regimes históricos, manter-se-ia de algum modo inalterável como um símbolo teimoso que, para além de uma abundante produção em cerâmica popular (mas que nunca mereceu o estudo de alguém) solicita ainda e sempre a sua presença como estereótipo nacional através do qual uma geração incessantemente renovada de cartoonistas o vai utilizando como porta-voz e emblema duma coriácea resistência – sempre passiva, raras vezes explosivamente colérica através do gesto desabrido do Manguito, o tal “gesto do Zé”, dito de modo perifrástico. Emblema do modo de ser português, conformista, conformado, apático, resignado, o nosso Zé nunca foi capaz de transcender esse pesadelo monótono chamado História, já que nunca logrou transformar a sua vontade de protesto e revolta em Destino nacional, a sua esperança em política realizada, tornada efectiva, inserta na praxis. Talvez por essa razão a passagem dos anos não faça envelhecer o Zé, já que ele resiste, passivamente como é seu sestro, a todas as mudanças e metamorfoses da realidade. Ele é, nesta medida, essencialmente não-dialéctico.


Monte Estoril, Setembro de 2011


João Medina





Desenho de Rui Pimentel, 2001




Bibliografia:

-João Medina,-“John Bull and Zé Povinho. The clash between two national stereotypes. A centennial remembrance of the 1890 British Ultimatum to Portugal”, revista Islenha, Funchal, nº 10, Janeiro/Junho de 1990, pp.19-34. -“O Gesto do Zé Povinho, da figa ao manguito”, Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – UNL, Lisboa, 1992-1993,  separata, pp.219-230, -“O Zé Povinho estereótipo nacional: a autocaricatura do «Homo lusitanus»”, in João Medina (dir. de). História de Portugal dos Tempos pré-históricos aos nossos Dias, Amadora, Ediclube, s.d.(1993, reed, em 1998 e 2002), vol. XV, pp.49-181  (inclui-se aqui o estudo acima citado, “O gesto do Zé Povinho – da figa ao manguito”, pp.115-126, com numerosas fotos de peças de cerâmica, já  publicado na Revista da Faculdade Ciências Humanas e Sociais).  -“Zé Povinho e Camões. Dois pólos da prototipia nacional”, revista Colóquio Letras, nº 92, Lisboa, Setembro de 1986, pp.11-21, ilustr. -Zé Povinho sem Utopia, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2004, .ilustr. -Portuguesismo(s), (Acerca da identidade nacional). Ensaio sobre as imagens de marca identitárias, os emblemas, os mitos e outros símbolos nacionais seguido de O ZÉ POVINHO, ESTEREÓTIPO NACIONAL E AUTOCARICATURA DO PORTUGUÊS DESDE 1875, L:isboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2006, ilustr,. maxime. pp.206-215). -Caricatura em Portugal. Rafael Bordalo Pinheiro, Pai do Zé Povinho, Lisboa, Edições Colibri, 2008, ilustr.







[1] O soldado Chveik é uma personagem literária criada pelo romancista checo Jarolav Hasek (1883-1923), como figura central dos romances O bom soldado Chveik (1920-21) e As últimas Aventuras do bom Soldado Chveik (póst.). Estas aventuras tiveram um ilustrador famoso, Josef Lada (Hrvsice, 1887- Praga, 1957), que muito ajudaria a tornar célebre o “imbecil épico” checo alistado no exército austro-húngaro durante a primeira Guerra Mundial, conflito no qual actua como uma misto de D.Quixote nacionalista e manhoso ou Sancho diabólico que se finge imbecil até ao ponto de exasperar os militares seus superiores. A primeira tradução portuguesa deste romance de Jasek, a defeituosa versão de Alexandre Cabral, intitula-se O valente Soldado Chveik, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1971. Esta edição, sucessivamente reeditada depois,  não ilustrada, não diz de que língua foi feita esta versão. Felizmente, porém, saiu recentemente uma outra trad. lusa a partir do checo, feita por Lumir Nahodil, com o título d’Os Destinos do Bom Soldado Svjek durante a Guerra Mundial, Lisboa, Tinta da China, 2012, 880 p, com as ilustrações de Lada. Reiner. The good Soldier Svejk, trad. de Cecil Parrott, Harmondswortk Penguin Books, 1974, ilustr. de J.Lada.
[2] Giulio Cesare Croce (San Giovanni in Persicetto,1550 - Bolonha, 1609), escritor e cantor italiano que escreveu em italiano e dialecto bolonhês, dando forma a histórias cómicas populares, de fundo medieval, de Bertoldo  e do seu filho Bertoldinho, assim como da mãe deste último, Marcolfa, que ele recitava, acompanhando-as de instrumentos musicais, em feiras populares, em linguagem desbragada, publicando-as em  1606.  
[3] José Leite de Vasconcelos (1858-1941), no vol. IV da sua Etnografia portuguesa (Lisboa, Imprensa Nacional, 1958), considerando o Zé Povinho como um exemplo de bondade e tolerância (op.cit., p. 494), afirma: «Na resistência passiva, os portugueses são heróicos. Hão-de fugir ao imposto de todas as formas» (ibidem, pp. 541-2).
[4] O Miguel Alemão é um dos mais antigos estereótipos nacionais europeus, uma vez que esta figura simbólica popular surge no séc.XVI e continua ainda hoje a ser utilizada como representação totémica dos Alemães. Tal como o nosso Zé, o Miguel Alemão é um homem do povo, um labrego ignaro, especialmente utilizado pela sátira, com presença activa na caricatura política desde o séc.XIX. O seu nome é uma adaptação de Miguel, sendo o São Miguel o padroeiro do povo germânico. Plebeu, vitima dos poderosos, o Miguel Alemão surge nos meados do séc.XVI, trajando uma jaqueta curta, com um boné de ponta (o “Zippelmütze”, um gorro de borla na ponta), calças afuniladas, presença detectável pelo menos desde 1541 em caricaturas e adágios coligidos em folhetos de sentenças populares. Em suma, um camponês sem letras, um tanto néscio, personificando, além do mais, a idiossincrasia germânica, o que, no séc.XIX, lhe dará um gabarito simbólico importante, porquanto passa a simbolizar o bom povo alemão vitimado pelos poderosos: com as guerras napoleónicas e, depois, com a revolução de 1848, o Miguel Alemão torna-se proverbial e comum como totem popular. O jornal satírico Der Wahre Jacob, criado em 1884 ( duraria até 1933), de tendência socialista, surgindo com regularidade a simbolizar o alemão.
[5] Veja-se o nosso estudo «Zé Povinho e Camões. Dois pólos da prototipia nacional», revista Colóquio Letras, nº 92,  Lisboa, Julho de 1986, pp.11-21, ilustr.
[6] Veja-se Desmond Morris et alii, Gestures. Their origins and distribution, Nova Iorque, Stein and Day, 1979; ilustr.; pp.80-92. Quanto à situação geográfica do manguito e ao seu significado, Morris refere o caso português, traduzindo cruamente o seu significado: “f..!.”, “mandar para o c...”, “vai-te lixar!”(p.96). Em Espanha, a expressão para manguito é “corte de manga”, “toma!”.(loc.cit.): veja-se Juan Manuel Olivar, Dicionario de Argot, Madrid, Sena, 1986 : “Corte de mangas: gesto ofensivo que consiste en flexionar un brazo, al tiempo que se golpea con la outra mano a la altura de la parte superior del codo.” No Diccionario de Argot español de Victor León (Madrid, Alianza Editorial, 1980, p.56): “Corte de mangas: gesto ofensivo que se hace extendiendo el dedo medio entre el índice y el corazón doblados de una mano, al tiempo que con la otra se golpea la sangradura del brazo opuesto.”(mistura de figa e de manguito). No livro O Animal humano (Lisboa, Gradiva, 1996), Desmond Morris ocupa-se também do gesto, referindo a sua utilização entre nós (pp. 23-27).
[7] H. von Keyserling, Analyse spectrale de l’Europe, p.230.
[8] Sobre  John Bull – especialmente o seu litígio com o Zé Povinho -, veja-se o nosso estudo Caricatura em Portugal. Rafael Bordalo Pinheiro, Pai do Zé Povinho, Lisboa, Colibri, 2008, ilustr., maxime pp.107-133. Veja-se ainda o nosso  artigo “John Bull and Zé Povinho. The clash between two national stereotypes. A centennial remembrance of the 1890 British Ultimatum to Portugal”, revista Islenha, Funchal, nº 10,  Janeiro/Junho de 1990, pp.19-34.
[9] A expressão “Uncle Sam” (Tio Sam) remonta ao período da Segunda Guerra da Independência norte-americana, este homem magro, de estatura considerável, desengonçado, cabelo comprido, barbicha de bode e fraque de asas-de-andorinha, com as listas e as estrelas no seu chapéu alto de cartola, que provém duma figura anterior, o “Irmão Jonathan”(Brother Jonathan), alcunha dada pelos ingleses aos revolucionários americanos, passando depois a simbolizar o mesmo país e os seus destemidos habitantes. No final da guerra, em 1812, a alcunha de Tio Sam parecia estar já consagrada, mantendo-se o estereótipo, assim referido, como um homem de características físicas e de indumentária fixas até aos nossos dias, constantemente retomado pelos cartoonistas domésticos e estrangeiros como um meio icónico fácil de designar a administração dos Estados Unidos, o fisco ou a política ianque, assim coimo o símbolo do povo americano ou, dum modo mais agressivo, uma conduta internacional imperialista e desprovida de escrúpulos. No século XIX, a caricatura do Tio Sam corria já nas gazetas, utilizada por cartoonistas como Sheba Smith (1792-1860) e, mais tarde, pelos seus grandes continuadores gráficos como Thomas Nast (1840-1902). Em 1917, a mais célebre atitude de Tio Sam é tornada cartaz incitando os mancebos voluntários a alistarem-se no exército americano, que nesse mesmo ano iria combater na Europa, ao lado dos Aliados, dando-lhes uma ajuda imensa na vitória do ano seguinte: esse cartaz era de James Montgomery Flagg (1877-1946), com um Tio Sam a apontar um dedo imperativo e a proclamar “Quero-te para o exército americano!” Na II Guerra Mundial, o estereótipo do Tio Sam prosseguiu a sua carreira de modo intenso, a ponto de, mais tarde, em 1961, o Congresso americano aprovar uma resolução considerando-o como um símbolo oficial nacional, ao lado da Estátua da Liberdade, da Águia heráldica e da bandeira das “stars and stripes”. Nesta medida, os Estados Unidos são o único país do mundo a dar foros de símbolo oficial ao seu estereótipo nacional. Os mais recentes cartoonistas americanos, como Tom Toles ou Kal (na revista The Economist) servem-se constantemente deste estereótipo como símbolo do Poder ou da Política Externa da nação americana.
[10] O Zé foi um semanário de caricaturas criado, na sequência do jornal O Xuão (1908-1910), em 1-XI-1910, durando até 1919, sendo dirigido e editado pelo mesmo Estêvão de Carvalho, assistido por Silva e Sousa como caricaturista principal.
[11] Veja-se, v.g., a caricatura de H.Collomb n’O Século cómico de 4-VI-1917, intitulada ”Ele é pão?!”, na qual se vê uma burguês de chapéu à moda, a tentar roer um pão que não passa dum corno, com esta legenda: “Zé Povão: /Há quem diga que o pão é de pau/ Ou de pez, à saída do forno, / Mas tão duro, tão rijo, tão mau / Não é pau nem é pez: é de…torno!”´
[12] Veja-se a dupla pág. do António Maria de  6-I-1881, de R. B. Pinheiro, no qual o Zé Povinho dorme deitado no chão, enquanto lhe passeiam pelo corpo todos os reis que houve em Portugal, desde Afonso Henriques a D.Luís (e o seu filho, o futuro D. Carlos): chama-se este cartoon a cores “O rol dos Santos Reis”.







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