domingo, 29 de junho de 2014

Violência doméstica.



 





O livro não é recente mas o Malomil, temos pena, também não é uma montra de novidades. Publicado em 2006 pela The MIT Press, Domesticity at War, de Beatriz Colomina, é obra que merece brevíssima nota (uma recensão a sério, aqui). Os Cold War Studies estão, já há algum tempo, em grande voga nos meios académicos. O nome de John Gaddis – e o seu já clássico sobre a Guerra Fria, até editado entre nós – impõe-se a todos quantos se interessem por conhecer melhor aquela age of anxiety. Será que já saímos totalmente dela? Beatriz Colomina não responde à questão – nem, se quisesse, seria capaz de o fazer. O seu livro tem um propósito mais circunscrito e, por isso mesmo, particularmente apelativo. Beatriz Colomina, professora de arquitectura em Princeton, analisa o modo como a guerra – em especial, a Guerra Fria – nos entrou portas adentro. Nos Estados Unidos, mais do que noutros lados. Mas ninguém ficou indiferente às transformações impostas pelo surdo conflito entre dois grandes blocos. O que deve o Bairro dos Olivais, por exemplo, à disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética?
 
 

Martha Rosler, Cleaning The Drapes
(da série House Beautiful. Bringing War Home), 1969-72
 
 
           Colomina conduz-nos por vários pontos, desde a Dymaxion Deployment Unit, uma casa de ferro planeada para servir de abrigo nuclear, aos modelos de urbanismo e everyday life de Charles e Ray Eames, passando pelos inúmeros produtos e materiais que foram criados no contexto da guerra e posteriormente adaptados a usos domésticos. O livro, atenção, não analisa apenas o mais óbvio, isto é, as formas, por vezes caricatas e risíveis, como os ocidentais, em particular os norte-americanos, experienciaram a ansiedade de um  iminente Inverno atómico (li, não sei bem onde, que um míssil esteve prestes a ser disparado por se ter detectado uma intrusão numa base militar americana; no final, descobriu-se que era um urso castanho que por ali andava, a tentar pular a cerca e armado em pardo). A obra de Colomina é mais vasta, procurando abracar diversas facetas da cultura do pós-guerra. Com apontamentos curiosíssimos – por exemplo, sobre o modo como os americanos vêem o relvado (o lawn à frente de cada casa ou o logradouro) como um direito inalienável e um local patriótico. Isso explica muita coisa: o cuidado com a relva bem aparada, o tiro dado no intruso que inadvertidamente atravessa o quintal das traseiras. A domesticidade tornou-se uma arma, uma arma de defesa ou de arremesso no contexto da Guerra Fria. Um território inexpugnável, o abrigo mas também o ponto de irradiação propagantística de uma cultura e de um estilo de vida, supostamente «melhores» do que os do inimigo. A diferença entre público e privado esbateu-se a partir do momento em que, paradoxalmente, se elevou o lar a último reduto de paz radiosa e baby-boomer mas, em simultâneo, a montra de exposição opulenta da superioridade do american way of life. De súbito, os americanos preocuparam-se em ter casas práticas e funcionais, passaram a cuidar mais da aparência dos seus interiores, num misto de sofisticação apressada e exibicionismo para os vizinhos da frente ou para os colegas de escritório do marido. O livro conjuga bem com outro, de Victoria de Grazia, Irresistible Empire. Já não conjuga tão bem com o que disse Hannah Arendt sobre as origens do totalitarismo; este começa quando se esbatem as fronteiras entre público e privado. Mas isso são contas de outro rosário. Livro muito bom, com um senão: para fazer uma coisa «diferente», a obra é apresentada num «pack» com dois livrinhos. O texto em baixo, as imagens no bloquinho de cima. A legibilidade sai muito castigada. Às tantas, desiste-se de acompanhar a leitura com as visão das imagens (por sinal, muito boas). Já não é a primeira vez que a The MIT Press gosta de se aventurar nestas obras «giras», provavelmente pensando que assim os leitores se sentem mais atraídos para comprar, folhear… mas não ler. É pena. Mas, num balanço global, Domesticity at War é um livro que merece e justifica a nossa melhor atenção, na companhia da série de criações de Martha Rosler, nos anos 60 e 70, intitulada Home Beautiful. Bringing the War Home.
 
 

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