quarta-feira, 17 de junho de 2015

D. Quixote e Borges.




DUAS   DAS   MINHAS  LEITURAS    ESSENCIAIS:
 I ) COMO  CONHECI  D. QUIXOTE  
II) O VERTIGINOSO  JORGE LUÍS BORGES

 

 

 

D. Quixote, por Amadeo
 
 
 
I
 

Como conheci D.Quixote e o confundi com outro cavaleiro

 

“Sancho Pança (…) conseguiu, ao longo de anos, devorando histórias de bandidos, romances de cavalaria, durante noites e vigílias, tirar inteiramente de si o seu demónio. Fê-lo tão bem que este – que mais tarde se chamou Dom Quixote −, se lançou então sem freio na mais loucas aventuras (….). Sancho Pança, talvez movido por um certo sentimento de responsabilidade, Sancho Pança, que era um homem independente, seguiu calmamente D. Quixote nas suas aventuras e tirou delas, até ao fim da sua vida, uma grande e útil distracção.”

Franz Kafka, A Muralha da China e outras histórias.

 

 

 

Com a preocupação de registar todos os modelos mais excelsos de literatura lida desde os anos de meninice passados em Joanesburgo, seria preciso fazer, antes de mais, uma referência especial a duas obras encadernadas, de grande porte e muitíssimo ilustradas pelo mesmo artista – só mais tarde saberia o  seu nome,  Gustave Doré –, livros que não li na altura, mas que durante algum tempo julguei constituírem volumes de aventuras de uma só figura, um cavaleiro que, numa delas usava uma farda mais vistosa, montava um cavalo garboso e, na outra, ia escarranchado numa pileca magra, envergando uma armadura grotesca, quando na verdade esses livros de capas garridas, folhas espessas e inúmeras ilustrações que me deslumbravam e divertiam, eram duas obras distintas, a segunda dos começos do século XVII e a primeira no século seguinte,  protagonizadas por dois cavaleiros bastante diferentes, um fidalgo manchego, de barbicha comprida e olhos tristes e um barão germânico, um oficial parlapatão chamado Münchhausen,[1] cujas aventuras, combates, viagens e estórias fantásticas nada tinham de comum com as do primeiro, a não ser a errância permanente e batalhas sem fim contra inimigos implacáveis – gigantes, feiticeiros, aristocratas malévolos, carcereiros, dum lado, ou exércitos inteiros de  turcos. O facto de serem desenhados pelo mesmo artista e as suas viagens abordarem casos extraordinários, e andando os dois cavaleiros sempre a combater, levara-me ao engano de os tomar como o mesmo herói.

Só muitos anos depois, leria na excelente tradução de Aquilino as aventuras de Dom Quixote da Mancha, distinguindo-as de vez das do barão intrujão cujo cavalo fora cortado ao meio e voltara a ter coladas as duas partes, ficando no meio delas uma semente de árvore que, entretanto, haveria de crescer, ou, durante um nevão nas estepes russas, o seu cavaleiro atara as rédeas a uma haste que emergia da neve, de modo que, ao acordar no dia seguinte, o alemão se achou no meio duma praça de aldeia e viu o seu corcel dependurado no topo do catavento duma igreja recoberta pela neve caída na véspera. De qualquer modo, a figura de Quixote criada por Cervantes pertenceria ao panteão da consciência europeia como um nome absolutamente central, cimeiro, na cultura e na mitologia mundial,[2] como o cavaleiro do ideal, emblema da “doce e louca sabedoria”, da “bondade fraternal, evangélica” dos homens, ao mesmo tempo que, sendo “cómico, verdadeiro e familiar, corajoso e mestre de ironia (…), cobre todo o universo com um véu de delicado pudor”, como o definiu Jean Cassou. Contudo, D. Quixote, a partir da sua segunda saída como cavaleiro andante, iria doravante sempre acompanhado dum alter ego com o qual, ao longo do resto das aventuras e desventuras de ambos, intercambia as suas qualidades e sensibilidades, o seu aio Sancho Pança, esse “Sancho-Charlot que edificas como un Diós a bofetadas/ Sancho que todo lo aguantas”(Gabriel Celaya). Tal como Ulisses ou Hamlet, o herói de Cervantes pertence ao património essencial da cultura universal e da sabedoria humanas, de mesmo que ao cerne da consciência europeia, sendo o magro e alucinado fidalgo manchego inseparável do seu gordo aio sem metafísica – mas que se iria quixotizando ao longo das suas aventuras, a ponto de se assumir como um novo “cavaleiro da triste figura” quando este, contrito e desiludido no seu leito de morte, afirma já não ler louco e chamar-se, na verdade, Alonso Quijano –, já que os dois formam, no sua permanente dialéctica de antíteses, contradições e disputas a figura mesma da humanidade total: após o falecimento do seu amo, Sancho descobriria que  herdara a fé e o sonho daquele. Franz Kafka, numa parábola talmudista, imaginou este homo duplex de outra maneira, acima averbada em  epígrafe, considerando que foi o aldeão da Mancha chamado Sancho Pança que, à força de devorar histórias de bandidos e romances de cavalaria, arrancou de si o demónio que  o habitava.[3] E este, chamado mais tarde Quixote, lançou-se sem freio nas maias doidas aventuras, o que levou o bom rústico castelhano, movido por um certo sentimento de responsabilidade (ou de remorso?, acrescentaríamos nós), seguiu calmamente o seu demónio até ao fim da sua vida,  dessas aventuras tirando “uma grande e útil distracção.”

O facto de um autor como Graham Greene os ter reinventado no século passado, o cavaleiro como um pobre cura de aldeia premiado com um título eclesiástico (romance Monsehor Quixote, 1982), e Sancho como um alcalde comunista do lugarejo, atravessando de novo a Espanha,  agora de automóvel, deixando em casa a pileca do primeiro e o burrico do segundo, em novas aventuras que actualizam, no pós-franquismo, a eterna estória picaresca de dois amigos que chocam com a maldade e a dureza das autoridades, demonstrando que o duo cervantino está na base essencial da nossa alma como símbolos intemporal que é da nossa psique humana. A minha permanente devoção pelo romance do Quixote e do seu aio levar-me-ia, naturalmente, a procurar no romance picaresco espanhol, sobretudo  desde o Lazarillo de Tormes, o Gúzman de Alfarache  e a História da Vida do Buscão, o complemento do quixotismo, num registo também tipicamente espanhol, ou seja, como a descrição realista do mundo de maldade, injustiça, fome, solidão e falsidade que autores castelhanos como o anónimo autor de Larazillo, assim como Mateo Alemán, Quevedo e outros denunciaram com uma franqueza e uma audácia que se antecipava à voga do realismo no romance europeu do século XIX.

 

 



Jorge Luis Borges
 
 
 
II

 Jorge Luis Borges

 

 

“(…) quando falo de Europa, não me refiro a uma simples entidade geográfica; falo de algo que para mim está vivo. Quero dizer com isso que tenho sangue espanhol, sangue britânico, sangue português, sangue judeu e, de forma muito mais afastada (…), sangue francês, normando para ser preciso.”

Jorge Luis Borges, “Porque me sinto europeu”, 1985.

 

 

Um outro nome importante entre aqueles a que dedico uma verdadeira veneração, precisa ainda de ver referido, de fascínio perante os seus prodigiosos dotes de poeta, filósofo, ensaísta e contista: o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), o mais universal e o mais europeu dos escritores e visionários latino-anericanos, autor de obras que teríamos de classificar de vertiginosas, devido à sua prodigiosa capacidade de narrar estórias mescladas de uma cultura ímpar, com múltiplas raízes religiosas, nomeadamente judaicas, o que se torna evidente em obras do género fantástico como Ficciones, O Aleph ou O Livro do Seres imaginários. Um texto como “A escritura de Deus”, sobre um índio encarcerado numa prisão na qual está também cativo um jaguar em cuja pele está gravada uma sentença mágica que Deus ali escreveu para conjurar os males que ocorressem no final dos tempos, e que só um eleito a poderia um dia ler, é um exemplo desta arte da vertigem de Borges. Nutro conto, o da assombrosa descoberta do mítico Aleph numa cave da rua Garay, em Buenos Aires, encontramos uma pequena esfera furta-cores, de intolerável fulgor, com dois ou três centímetros de diâmetro, embora contivesse nele todo o universo, como o mar, a alvorada e a tarde, as multidões da América, um labirinto quebrado, todos os espelhos do planeta, os desertos equatoriais, um exemplar da primeira edição inglesa de Plínio, cavalos numa praia do mar Cáspio, sobreviventes duma batalha, tigres, símbolos, exércitos,  todas as formigas que há na terra, a circulação do seu próprio sangue, a engrenagem do amor e a  modificação da morte, podendo ver-se nesse Aleph a terra e na terra de novo o Aleph, a sua cara e as suas vísceras, “vi  a tua cara e senti a tua vertigem e chorei, porque os meus olhos tinham visto esse objecto secreto e conjectural que nenhum homem olhara, o inconcebível universo”.

Por fim, mencionemos nas Ficciones, de Borges, um conto não menos vertiginoso “O milagre secreto”, a estória dum poeta checo, chamado Hadlik, com cerca de 40 anos e de ascendência judia, autor de alguns livros e dum drama em verso, Os Inimigos, poema inacabado, faltando escrever dois actos. Uma vez sonhara que se escondera numa biblioteca, e quando lhe perguntavam o que é que procurava, respondeu: “Procuro Deus”. O bibliotecário redarguiu-lhe que Deus estava numa das letras das páginas de um dos quatrocentos mil tomos da biblioteca. Entrou então um leitor que devolveu ao funcionário um atlas. O poeta, abriu-o e viu um mapa da Índia e bruscamente tocou numa das letras mínimas do livro, ouvindo então uma voz ubíqua que lhe disse: “O tempo de um trabalho foi outorgado.” Agora, condenado à morte pelos nazis como resistente, Hadlik esperava o fuzilamento no pátio da prisão dum quartel. E o poeta recordou-se que, uma vez, sonhara que falara com Deus na escuridão, pedindo-lhe que, para poder terminar o seu  drama em verso inacabado, precisava de um ano de tempo para o fazer, solicitando: “Outorga-me esses dias,. Tu de Quem são os séculos e o tempo.”

Chegado à hora da execução, o poeta perfilou-se, encostado à parede e ficou à espera dos tiros do pelotão, enquanto uma pesada gota de chuva lhe tombava na face, rolando lentamente pela sua bochecha. O sargento vociferou a ordem final e, nesse momento exacto, o universo físico parou. Numa ardósia do pátio do quartel, uma abelha projectava uma sombra fixa. Hadlik tentou gritar, mas nenhuma sílaba lhe saiu daa boca. Compreendeu que estava paralisado. Pensou depois que o tempo parara. Decidiu pôr â prova essa hipótese, lembrando-se duma écloga de Virgílio, e, por fim, dormiu um período indeterminado de tempo. Ao acordar, o mundo continuava imóvel e igual: a gota de água ainda estava na sua bochecha e a abelha no pátio permanecia imóvel. Recordou-se então que pedira a Deus que lhe desse um ano de tempo para terminar o seu drama em verso e compreendeu então que este operara um milagre secreto, dando-lhe um ano de duração. Hadlik decidiu então terminar o poema, mentalmente, urdindo no tempo que lhe restava o seu elevado labirinto invisível de palavras, refazendo o terceiro acto, apagando alguns símbolos, abreviando e omitindo passagens, ampliando outras. E a certa altura deu como completo o seu texto, faltando-lhe apenas resolver um único epíteto, o que fez. A gota de água resvalou-lhe então pela bochecha, iniciou um grito enlouuqecido, mexeu a cara e uma quádrupla descarga atingiu-o, matando-o.

 

 

João Medina





[1] Karl Friedrich Hieronimus, barão de Münchhausen (1720-1797) existiu de facto, sendo um oficial alemão ao serviço dos russos, tendo combatido contra os turcos em 1740. Nostálgico das suas aventuras e guerras, teria contado a vários amigos as suas proezas, verdadeiras ou falsas, narrativas que Rudolph Erich Raspe coligiu e publicou em inglês, em 1785, obra que o escritor alemão Gottfried Bïrger traduziu e acrescentando-lhe novos episódios, publicada em 1785. Em França, Théophile  Gautier (Filho) traduziu e editou essa obra em 1862, ilustrada por Gustave Doré, embora sem o episódio do cavalo cortado ao meio e depois reconstituído, além de outros textos. Utilizámos a edição francesa publicada pela editor José Corti, Aventures du Baron de Münchhausen, Paris, 1998, com um erudito posfácio de André Tisssier (pp.153-186), ilustr. com desenhos de G.Doré e outras imagens de edições russas, francesas, etc.
 


[2] Num nº especial da revista Clio, vol. 13, Lisboa 2005, inteiramente organizado por mim, dedicado ao 4º centenário da edição da parte I do D.Quixote, abro com um artigo intitulado “Gustave Doré, (re)inventor do «Quixote»”, loc.cit., pp.11-34, com várias ilustrações de Doré dedicadas ao livro cervantino e à Aventuras do Barão de Münchhausen , estas nas pp.29-30 (o cavalo do barão,  cortado ao meio e depois com as duas metades coladas) e 33(o barão acorda de manhã, descobrindo o cavalo preso ao cata-vento da igreja local, que durante a noite fora recoberta de neve). Voltei a Cervantes no meu ensaio De Homero a Kafka, passando por Cervantes e  Nietzsche…,revista Clio, nº 11. 2004, separata, maxime pp.42-5479-80 (bibliografia). Conviria acrescentar que a leitura assídua do livro cervantino me levou a encher a minha biblioteca de diversas edições críticas dessa obra, em castelhano. Por mera sorte, só depois de tanta pesquisa cervantina, me sucedeu ler a tradução lusa dos irmãos Castilho, versão pedestre que convém evitar, sobretudo se comparada com o esforço heróico e bem sucedido de Aquilino em tornar lusas as palavras castelhanas do Quixote.
 


[3] Na tradição dos judeus askenazes, na qual o autor d’A Metamorfose se criou, é possível que Kafka concebesse este demónio como um dibbuk que demoniacamente se introduz nas pessoas e as domina – embora Sancho conseguisse expulsá-lo de si. O dibbuk significava, assim, na tradição judaica de leste, um espírito que se introduzia numa pessoa viva e que doravante assombrava, a possessão de alguém por um entidade alheia, em geral a alma de um defunto, e  que só um rabino especial poderia exorcismar.  Esta figura do folclore judeu das comunidades de Europa oriental teve a sua primeira expressão literária na famosa peça do escritor, etnógrafo e político S. Ansky (1863-1920), O Dibbuk ou entre dois Mundos, representada em Varsóvia no ano em que o seu autor faleceu. Woody Allen menciona este mito de possessão demoníaca no seu filme Love and Death.(1977). O escritor judeu francês Romain Gary dedicou-lhe um romance, A Dança de Gengis Cohn (1967), no qual o antigo comandante dum campo de concentração é assombrado pela alma de uma das suas vítimas.

1 comentário:

  1. Borges para mim é sobretudo o conto:Os Imortais que contem(em minha opinião) mais sabedoria do que a maior parte do resto da literatura

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