DUAS DAS MINHAS LEITURAS ESSENCIAIS:
I ) COMO CONHECI D. QUIXOTE
II) O VERTIGINOSO JORGE LUÍS BORGES
D. Quixote, por Amadeo
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I
Como conheci D.Quixote e o confundi com outro
cavaleiro
“Sancho Pança
(…) conseguiu, ao longo de anos, devorando histórias de bandidos, romances de
cavalaria, durante noites e vigílias, tirar inteiramente de si o seu demónio. Fê-lo
tão bem que este – que mais tarde se chamou Dom Quixote −, se lançou então sem
freio na mais loucas aventuras (….). Sancho Pança, talvez movido por um certo
sentimento de responsabilidade, Sancho Pança, que era um homem independente,
seguiu calmamente D. Quixote nas suas aventuras e tirou delas, até ao fim da
sua vida, uma grande e útil distracção.”
Franz Kafka, A Muralha da China e outras histórias.
Com a preocupação de
registar todos os modelos mais excelsos de literatura lida desde os anos de
meninice passados em Joanesburgo, seria preciso fazer, antes de mais, uma
referência especial a duas obras encadernadas, de grande porte e muitíssimo
ilustradas pelo mesmo artista – só mais tarde saberia o seu nome,
Gustave Doré –, livros que não li na altura, mas que durante algum tempo
julguei constituírem volumes de aventuras de uma só figura, um cavaleiro que,
numa delas usava uma farda mais vistosa, montava um cavalo garboso e, na outra,
ia escarranchado numa pileca magra, envergando uma armadura grotesca, quando na
verdade esses livros de capas garridas, folhas espessas e inúmeras ilustrações
que me deslumbravam e divertiam, eram duas obras distintas, a segunda dos
começos do século XVII e a primeira no século seguinte, protagonizadas por dois cavaleiros bastante
diferentes, um fidalgo manchego, de barbicha comprida e olhos tristes e um
barão germânico, um oficial parlapatão chamado Münchhausen,[1] cujas
aventuras, combates, viagens e estórias fantásticas nada tinham de comum com as
do primeiro, a não ser a errância permanente e batalhas sem fim contra inimigos
implacáveis – gigantes, feiticeiros, aristocratas malévolos, carcereiros, dum
lado, ou exércitos inteiros de turcos. O
facto de serem desenhados pelo mesmo artista e as suas viagens abordarem casos
extraordinários, e andando os dois cavaleiros sempre a combater, levara-me ao
engano de os tomar como o mesmo herói.
Só muitos anos depois, leria
na excelente tradução de Aquilino as aventuras de Dom Quixote da Mancha,
distinguindo-as de vez das do barão intrujão cujo cavalo fora cortado ao meio e
voltara a ter coladas as duas partes, ficando no meio delas uma semente de
árvore que, entretanto, haveria de crescer, ou, durante um nevão nas estepes
russas, o seu cavaleiro atara as rédeas a uma haste que emergia da neve, de
modo que, ao acordar no dia seguinte, o alemão se achou no meio duma praça de
aldeia e viu o seu corcel dependurado no topo do catavento duma igreja
recoberta pela neve caída na véspera. De qualquer modo, a figura de Quixote
criada por Cervantes pertenceria ao panteão da consciência europeia como um
nome absolutamente central, cimeiro, na cultura e na mitologia mundial,[2] como
o cavaleiro do ideal, emblema da “doce e louca sabedoria”, da “bondade
fraternal, evangélica” dos homens, ao mesmo tempo que, sendo “cómico,
verdadeiro e familiar, corajoso e mestre de ironia (…), cobre todo o universo
com um véu de delicado pudor”, como o definiu Jean Cassou. Contudo, D. Quixote,
a partir da sua segunda saída como cavaleiro andante, iria doravante sempre acompanhado
dum alter ego com o qual, ao longo do
resto das aventuras e desventuras de ambos, intercambia as suas qualidades e
sensibilidades, o seu aio Sancho Pança, esse “Sancho-Charlot que edificas como
un Diós a bofetadas/ Sancho que todo lo aguantas”(Gabriel Celaya). Tal como
Ulisses ou Hamlet, o herói de Cervantes pertence ao património essencial da
cultura universal e da sabedoria humanas, de mesmo que ao cerne da consciência
europeia, sendo o magro e alucinado fidalgo manchego inseparável do seu gordo
aio sem metafísica – mas que se iria quixotizando
ao longo das suas aventuras, a ponto de se assumir como um novo “cavaleiro da
triste figura” quando este, contrito e desiludido no seu leito de morte, afirma
já não ler louco e chamar-se, na verdade, Alonso Quijano –, já que os dois
formam, no sua permanente dialéctica de antíteses, contradições e disputas a
figura mesma da humanidade total: após o falecimento do seu amo, Sancho
descobriria que herdara a fé e o sonho
daquele. Franz Kafka, numa parábola talmudista, imaginou este homo duplex de outra maneira, acima averbada
em epígrafe, considerando que foi o
aldeão da Mancha chamado Sancho Pança que, à força de devorar histórias de
bandidos e romances de cavalaria, arrancou de si o demónio que o habitava.[3] E
este, chamado mais tarde Quixote, lançou-se sem freio nas maias doidas
aventuras, o que levou o bom rústico castelhano, movido por um certo sentimento
de responsabilidade (ou de remorso?, acrescentaríamos nós), seguiu calmamente o
seu demónio até ao fim da sua
vida, dessas aventuras tirando “uma grande
e útil distracção.”
O facto de um autor como
Graham Greene os ter reinventado no século passado, o cavaleiro como um pobre
cura de aldeia premiado com um título eclesiástico (romance Monsehor Quixote, 1982), e Sancho como
um alcalde comunista do lugarejo,
atravessando de novo a Espanha, agora de
automóvel, deixando em casa a pileca do primeiro e o burrico do segundo, em
novas aventuras que actualizam, no pós-franquismo, a eterna estória picaresca
de dois amigos que chocam com a maldade e a dureza das autoridades,
demonstrando que o duo cervantino está na base essencial da nossa alma como símbolos
intemporal que é da nossa psique humana. A minha permanente devoção pelo
romance do Quixote e do seu aio levar-me-ia, naturalmente, a procurar no
romance picaresco espanhol, sobretudo
desde o Lazarillo de Tormes, o
Gúzman de Alfarache e a História
da Vida do Buscão, o complemento do quixotismo, num registo também
tipicamente espanhol, ou seja, como a descrição realista do mundo de maldade,
injustiça, fome, solidão e falsidade que autores castelhanos como o anónimo
autor de Larazillo, assim como Mateo
Alemán, Quevedo e outros denunciaram com uma franqueza e uma audácia que se
antecipava à voga do realismo no romance europeu do século XIX.
Jorge Luis Borges
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II
Jorge Luis
Borges
“(…) quando
falo de Europa, não me refiro a uma simples entidade geográfica; falo de algo que
para mim está vivo. Quero dizer com isso que tenho sangue espanhol, sangue
britânico, sangue português, sangue judeu e, de forma muito mais afastada (…),
sangue francês, normando para ser preciso.”
Jorge Luis
Borges, “Porque me sinto europeu”, 1985.
Um outro nome importante
entre aqueles a que dedico uma verdadeira veneração, precisa ainda de ver
referido, de fascínio perante os seus prodigiosos dotes de poeta, filósofo,
ensaísta e contista: o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), o mais
universal e o mais europeu dos escritores e visionários latino-anericanos,
autor de obras que teríamos de classificar de vertiginosas, devido à sua
prodigiosa capacidade de narrar estórias mescladas de uma cultura ímpar, com
múltiplas raízes religiosas, nomeadamente judaicas, o que se torna evidente em
obras do género fantástico como Ficciones,
O Aleph ou O Livro do Seres imaginários. Um texto como “A escritura de Deus”,
sobre um índio encarcerado numa prisão na qual está também cativo um jaguar em
cuja pele está gravada uma sentença mágica que Deus ali escreveu para conjurar
os males que ocorressem no final dos tempos, e que só um eleito a poderia um
dia ler, é um exemplo desta arte da vertigem
de Borges. Nutro conto, o da assombrosa descoberta do mítico Aleph numa cave da
rua Garay, em Buenos
Aires , encontramos uma pequena esfera furta-cores, de
intolerável fulgor, com dois ou três centímetros de diâmetro, embora contivesse
nele todo o universo, como o mar, a alvorada e a tarde, as multidões da
América, um labirinto quebrado, todos os espelhos do planeta, os desertos
equatoriais, um exemplar da primeira edição inglesa de Plínio, cavalos numa
praia do mar Cáspio, sobreviventes duma batalha, tigres, símbolos,
exércitos, todas as formigas que há na
terra, a circulação do seu próprio sangue, a engrenagem do amor e a modificação da morte, podendo ver-se nesse
Aleph a terra e na terra de novo o Aleph, a sua cara e as suas vísceras,
“vi a tua cara e senti a tua vertigem e
chorei, porque os meus olhos tinham visto esse objecto secreto e conjectural
que nenhum homem olhara, o inconcebível universo”.
Por fim, mencionemos nas Ficciones, de Borges, um conto não menos
vertiginoso “O milagre secreto”, a estória dum poeta checo, chamado Hadlik, com
cerca de 40 anos e de ascendência judia, autor de alguns livros e dum drama em
verso, Os Inimigos, poema inacabado,
faltando escrever dois actos. Uma vez sonhara que se escondera numa biblioteca,
e quando lhe perguntavam o que é que procurava, respondeu: “Procuro Deus”. O
bibliotecário redarguiu-lhe que Deus estava numa das letras das páginas de um
dos quatrocentos mil tomos da biblioteca. Entrou então um leitor que devolveu
ao funcionário um atlas. O poeta, abriu-o e viu um mapa da Índia e bruscamente
tocou numa das letras mínimas do livro, ouvindo então uma voz ubíqua que lhe
disse: “O tempo de um trabalho foi outorgado.” Agora, condenado à morte pelos
nazis como resistente, Hadlik esperava o fuzilamento no pátio da prisão dum
quartel. E o poeta recordou-se que, uma vez, sonhara que falara com Deus na
escuridão, pedindo-lhe que, para poder terminar o seu drama em verso inacabado, precisava de um ano
de tempo para o fazer, solicitando: “Outorga-me esses dias,. Tu de Quem são os
séculos e o tempo.”
Chegado à hora da
execução, o poeta perfilou-se, encostado à parede e ficou à espera dos tiros do
pelotão, enquanto uma pesada gota de chuva lhe tombava na face, rolando
lentamente pela sua bochecha. O sargento vociferou a ordem final e, nesse
momento exacto, o universo físico parou. Numa ardósia do pátio do quartel, uma
abelha projectava uma sombra fixa. Hadlik tentou gritar, mas nenhuma sílaba lhe
saiu daa boca. Compreendeu que estava paralisado. Pensou depois que o tempo
parara. Decidiu pôr â prova essa hipótese, lembrando-se duma écloga de Virgílio,
e, por fim, dormiu um período indeterminado de tempo. Ao acordar, o mundo
continuava imóvel e igual: a gota de água ainda estava na sua bochecha e a
abelha no pátio permanecia imóvel. Recordou-se então que pedira a Deus que lhe
desse um ano de tempo para terminar o seu drama em verso e compreendeu então
que este operara um milagre secreto, dando-lhe um ano de duração. Hadlik
decidiu então terminar o poema, mentalmente, urdindo no tempo que lhe restava o
seu elevado labirinto invisível de palavras, refazendo o terceiro acto,
apagando alguns símbolos, abreviando e omitindo passagens, ampliando outras. E
a certa altura deu como completo o seu texto, faltando-lhe apenas resolver um
único epíteto, o que fez. A gota de água resvalou-lhe então pela bochecha,
iniciou um grito enlouuqecido, mexeu a cara e
uma quádrupla descarga atingiu-o, matando-o.
João Medina
[1] Karl
Friedrich Hieronimus, barão de Münchhausen (1720-1797) existiu de facto, sendo
um oficial alemão ao serviço dos russos, tendo combatido contra os turcos em
1740. Nostálgico das suas aventuras e guerras, teria contado a vários amigos as
suas proezas, verdadeiras ou falsas, narrativas que Rudolph Erich Raspe coligiu
e publicou em inglês, em 1785, obra que o escritor alemão Gottfried Bïrger
traduziu e acrescentando-lhe novos episódios, publicada em 1785. Em França,
Théophile Gautier (Filho) traduziu e
editou essa obra em 1862, ilustrada por Gustave Doré, embora sem o episódio do
cavalo cortado ao meio e depois reconstituído, além de outros textos. Utilizámos
a edição francesa publicada pela editor José Corti, Aventures du Baron de Münchhausen, Paris, 1998, com um erudito
posfácio de André Tisssier (pp.153-186), ilustr. com desenhos de G.Doré e
outras imagens de edições russas, francesas, etc.
[2] Num nº
especial da revista Clio, vol. 13, Lisboa
2005, inteiramente organizado por mim, dedicado ao 4º centenário da edição da
parte I do D.Quixote, abro com um
artigo intitulado “Gustave Doré, (re)inventor do «Quixote»”, loc.cit., pp.11-34, com várias ilustrações
de Doré dedicadas ao livro cervantino e à Aventuras
do Barão de Münchhausen , estas
nas pp.29-30 (o cavalo do barão, cortado
ao meio e depois com as duas metades coladas) e 33(o barão acorda de manhã,
descobrindo o cavalo preso ao cata-vento da igreja local, que durante a noite
fora recoberta de neve). Voltei a Cervantes no meu ensaio De Homero a Kafka, passando por Cervantes e Nietzsche…,revista Clio, nº 11. 2004, separata, maxime
pp.42-5479-80 (bibliografia). Conviria acrescentar que a leitura assídua do
livro cervantino me levou a encher a minha biblioteca de diversas edições
críticas dessa obra, em
castelhano. Por mera sorte, só depois de tanta pesquisa
cervantina, me sucedeu ler a tradução lusa dos irmãos Castilho, versão pedestre
que convém evitar, sobretudo se comparada com o esforço heróico e bem sucedido
de Aquilino em tornar lusas as palavras castelhanas do Quixote.
[3] Na
tradição dos judeus askenazes, na qual o autor d’A Metamorfose se criou, é possível que Kafka concebesse este
demónio como um dibbuk que
demoniacamente se introduz nas pessoas e as domina – embora Sancho conseguisse
expulsá-lo de si. O dibbuk
significava, assim, na tradição judaica de leste, um espírito que se introduzia
numa pessoa viva e que doravante assombrava, a possessão de alguém por um
entidade alheia, em geral a alma de um defunto, e que só um rabino especial poderia
exorcismar. Esta figura do folclore
judeu das comunidades de Europa oriental teve a sua primeira expressão
literária na famosa peça do escritor, etnógrafo e político S. Ansky
(1863-1920), O Dibbuk ou entre dois Mundos, representada em
Varsóvia no ano em que o seu autor faleceu. Woody Allen menciona este mito de
possessão demoníaca no seu filme Love and
Death.(1977). O escritor judeu francês Romain Gary dedicou-lhe um romance, A Dança de Gengis Cohn (1967), no qual o
antigo comandante dum campo de concentração é assombrado pela alma de uma das
suas vítimas.
Borges para mim é sobretudo o conto:Os Imortais que contem(em minha opinião) mais sabedoria do que a maior parte do resto da literatura
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