impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 88 - WYNTON MARSALIS
…e
depois houve o incidente entre Wynton Marsalis e Miles Davis no Festival Internacional
de Jazz Vancouver em 1986, uma ocorrência irrelevante, incongruente e momentânea,
que se tornou histórica não pelo que nela sucedeu mas pelo que simbolizou.
Talvez tenha sido comparável no jazz à relampejante e hostil troca de palavras
entre Wittgenstein e Karl Popper, em que aquele não chegou a dar com um
atiçador de lareira na cabeça deste.
O
rastilho do que deflagrou nesse dia, nesse palco, fora aceso anos antes, quando
um moço de 19 anos irrompeu na ribalta com assombro e desassombro, de imediato inflamando
uma controvérsia como há muito não acontecia e clivando as placas tectónicas do
jazz. Foi isto em 1982, um ano depois de Ronald Reagan ser eleito, marco que os
antagonistas de Wynton Marsalis gostam de evocar. Para lembrar comoção
equiparável seria preciso retroceder às catacumbas do Minton’s Playhouse,
quando nos idos de 40 os boppers rugiram debaixo do som das bombas do Eixo,
antes de estarrecerem o mundo à luz do dia; ou à aparição de Ornette Coleman no
Five Spot Café em 1959, anunciando alvíssaras por um novo jazz.
Acrescentando
à inevitável temeridade da juventude, Wynton Marsalis supunha-se infuso de um
suplemento de patronímia por ser nativo da cidade santa do jazz de Nova
Orleães, além de ser o primogénito do legendário professor de piano Ellis
Marsalis, cujo prestígio, antes da fama do filho, infelizmente não desbordava
as fronteiras municipais. O debutante trompetista não exibiu porém esta herança
como um fardo ou uma regalia, mas antes como uma responsabilidade histórica da
qual devia estar à altura, o que era reiterado num politizado apreço por fatos
completos e gravatas de seda italiana, em contraste com as indumentárias
espalhafatosas dos artistas pop e rock ou com o estilo no limiar do andrajoso
dos contestatários.
O
que trazia Wynton Marsalis de novo? Nada, precisamente. Ou seja, em vez da
habitual e protocolar ruptura inovadora, o que ele propunha era a restauração
da primazia absoluta do swing e do mais lídimo classicismo melódico, rítmico e
harmónico. Novidade era, pois, que ele exprimisse o jazz não como crítica
sistemática (e sistémica, que também fica bonito) mas como consolo e exaltação,
uma perspectiva que se perdera nas circunvoluções da década de 70. Entendido
quase como provocação ao anti-status, acusado de se haver regularizado como o
novo status, era o facto de Marsalis operar esta regeneração com os argumentos
do modernismo: dar um, dois, ou três passos atrás, para, de maneira muito
leninística, proceder bastantes mais em frente.
Do
ponto de vista da técnica instrumental, do conhecimento musical e da
impregnação da cultura jazzística Wyton Marsalis era um prodígio de virtuosismo,
nivelável com Mozart (assim exageravam os seus prosélitos). No encadeado de
frases de um solo, o seu trompete sincopava como o de Louis Armstrong, estugava
em acelerações à maneira de Dizzy, convocava os preceitos melódicos dos blues e
do swing e era capaz de entre dois compassos transitar de um padrão harmónico
para outro, como se ouvira Ornette Coleman fazer – tudo isto demorando mais
tempo aqui a descrever do que ele a tocar.
Uma
unânime ovação declarou Wynton Marsalis como o delfim da linhagem dinástica do
trompete (King Oliver – Louis Armstrong – Roy Eldridge – Dizzy Gillespie –
Miles Davis – e o aspirante Eric Dolphy) pronto a ser entronizado. Com ele o
jazz, que alguns davam como moribundo, entraria, literalmente, na sua era
renascentista. A Marsalis não lhe faltava, até, bardo e escudeiro na pessoa do
sulfuroso crítico Stanley Crouch que por ele pintou a manta. Em 1986 haveria de
incendiar a cidadela do jazz com o libelo “On the Corner: the Sellout of Miles
Davis” que em resumo, invectivava o Imperador de ofender a integridade do swing
ao ter adoptado a batida quadrada do funk, denunciando-o como corrupto e
traidor ao jazz. Miles retorquiu com o azedume e a sobranceria que lhe eram
conhecidos.
Estava-se
então nisto aquando o Festival de Vancouver em Junho de 1986. Perante uma
plateia entusiástica e repleta Miles Davis desvendava os temas do seu próximo
disco “Tutu”. Eis senão quando Wynton Marsalis sobe impromptu ao palco, desafiando-o para uma jam session. Várias testemunhos
têm desmentido que Miles lhe terá vituperado um “fuck off”, sequer que tenha
tentado socá-lo. O certo é que a banda interrompeu o concerto e Wynton
despachou, sozinho, um punhado de frases sem resposta, antes de retirar.
O
disco “J Mood”, datado desse ano, é exemplar da vitalidade e da efervescência
que Marsalis devolveu ao jazz. Regressar à tradição demonstrava-se como
prosseguir um caminho interrompido por desvios que redundaram em impasses,
havendo nele ainda muito que progredir.
Mas,
ao ferir dois alvos com um tiro, o jazz de fusão e o free jazz, Marsalis
levantou veemente relutância, sobretudo nos meios em que o progressismo era
entendido como fruto de uma determinação história. Por outras palavras: foi
denunciado como impostor e reaccionário e pouca ilibação lhe deu o reclamado
vínculo a uma negritude originária, segundo a qual os vanguardismos musicais
que contagiavam o jazz louvavam-se nas experiências musicais contemporâneas
europeias, preterindo as raízes afro-americanas em que se fundava.
Assim
como não há sol sem lua, no lado escuro do movimento desencadeado por Wynton
Marsalis o que parecia virtude transmutava-se em deformidade. Em vez de se
formalizar consagrando o seu estatuto no showbizz, como afortunadamente tinha
acontecido com Herbie Hancock ou Quincy Jones, Marsalis institucionalizou-se
com alguma petulância nas altas esferas da cultura formal, imolando o jazz na
Academia e na programação do Lincoln Center, a sala de concertos de música
erudita (à falta de melhor expressão) frequentada pelas classes altas e
sofisticadas. Quer dizer: com tanta vontade de restabelecer em vez de romper,
de se fazer respeitável em vez de se dar ao respeito, Wynton Marsalis havia
embalsamado o jazz, condenando-o a reproduzir-se e a repisar fórmulas, a trivializar-se
até à paródia ou à inanidade.
Live at the Village Vanguard
1999
Columbia
– 69876
Wyton
Marsalis (trompete); Wycliffe Gordon (trombone); Wessell Anderson (saxofone
alto), Todd Williams (clarinete, saxophone tenor e soprano), Victor Goines (clarinete,
saxophone tenor e soprano), Marcus Roberts (piano), Eric Reed (piano), Reginald
Veal (contrabaixo), Ben Wolfe (contrabaixo), Herlin Riley (bateria).
No
ocaso do século passado seria ainda impossível dar razão a estas reprovações
ouvindo a edição dos seus concertos ao vivo no Village Vanguard. Se o coleccionador
dispuser de tempo e vontade para se envolver demoradamente com Wynton Marsalis e
se não for demasiado materialista, isto é, se não relutar possuir música em
formato intangível e informático, então encontrará convertido em ficheiro pelo
preço de um singelo disco, os 7 CDs resultantes desses recitais, decorridos
entre 1990 e 1994 – uma irresistível pechincha!
As
sessões decorreram com casa lotada e entusiástica e os septetos liderados pelo trompetista
insuflaram-se de tal excitação, retribuindo com a inventividade das jam
sessions doutros tempos. Logo de abertura, depois de uma promissora
apresentação, dizendo aos espectadores que peçam café para se haverem com a
duração do recital, Wynton Marsalis ataca o tema “Cherokee”. Isto deve ser
ouvido como um manifesto, que numa cápsula de 7 minutos inscreve toda a
história estilística do jazz, não como uma súmula mas como um devir. As 6 horas
de música seguintes não desmerecem este impulso. “Foram os melhores tempos da
minha vida” confessaria o trompetista.
O
apogeu atingido em “Live at the Village Vanguard”, veio a saber-se já neste
século, foi provavelmente um canto do cisne. Acomodado, convencional e
cerimonioso, nunca mais Wynton Marsalis revelaria igual pujança. Pelo menos num
ponto os cépticos são indesmentíveis: afinal, até hoje nenhuma das suas
composições teve estofo para ascender ao estatuto de standard.
José Navarro de Andrade
Deste, e da família, tenho muita coisa.
ResponderEliminarVou publicar a trilogia "Thick in the South", "Uptown Ruler", "Levee Low Moan".
Eu gosto e gosto muito de um creio que Magic Hour?Para alem de ouro com "peças"clássicas.Uma boa familia.
ResponderEliminarTenho, se quiser diga, colocarei.
EliminarJá agora Fado Alexandrino, ponha também o "J Mood" que é dos meus favoritos. Um grande abraço aos dois.
ResponderEliminarAye Aye Sir.
ResponderEliminarDone.
Isto está a ficar uma jam session...
EliminarVou só fazer uma volta á página para confessar uma coisa.Há muitos discos que ficam assim como no limbo(sei que acabou)durante muito muito tempo e derrepente alguém lembra e aí ouve-se e puxa como é que tinha isto praí.Sei que acontece tambem convosco .Falo de GO-Dexter Gordom.Saltou da poeira para a vitrina quase permanente em troca com algum chato presumido que lá estava sem ser ouvido.Graças a vós senhores.Obrigado pela lembrança.
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