É hoje lançado, na Cinemateca Portuguesa, Angola, o nascimento de uma nação − O Cinema
do Império, coordenado por Maria do Carmo Piçarra e Jorge António, primeiro
volume de uma trilogia dedicada ao cinema angolano. A palavra a Carmo Piçarra:
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− De que tratarão os
próximos volumes?
Os próximos volumes terão como subtítulos "O
cinema da libertação" e "O cinema da independência",
respectivamente. "O cinema da libertação", que será lançado em
Novembro em Luanda, resultou da necessidade de racionalizar os textos
resultantes de uma primeira pesquisa sobre o cinema feito em Angola antes da
independência do país. O material recolhido tornava um primeiro volume
excessivamente volumoso. Decidimos, pois, num primeiro volume colocar os
ensaios mais directamente enquadráveis na propaganda política e económica
anterior à independência e reunir três entrevistas a personalidades − João Silva, Francisco Castro Rodrigues
e Manuel Fonseca − que testemunham
sobre a emergência da produção cinematográfica feita especificamente em Angola,
a emergência do cineclubismo e o seu papel na luta pela independência de Angola
e, finalmente, sobre a frequência do circuito comercial de cinema. Esta
separação do "cinema da libertação" surge artificialmente mas creio
que a organização dos materiais em dois livros os valorizou. "O cinema da
libertação" inclui um ensaio, de Joana Pimentel, sobre a colecção de
filmes feitos em Angola detida pela Cinemateca Portuguesa; outro, por Paulo
Cunha, que caracteriza o surgimento do cineclubismo em Angola; um ensaio sobre
o cinema amador, da autoria do investigador brasileiro Jorge Cruz, que inicia
uma linha de pesquisa com este estudo; um outro ensaio, pelo investigador
brasileiro Leandro Mendonça, sobre os modos de produção em Angola e,
finalmente, uma texto de minha autoria sobre o cinema militante, em que comento
as reportagens internacionais feitas em Angola reportando o ponto de vista dos
movimentos de libertação mas também os filmes de Sarah Maldoror que adapta, com
Mário Pinto de Andrade, para o cinema obras literárias de Luandino Vieira. O
último volume, "O cinema da independência", está a ser organizado e
abordará finalmente aquilo que pode chamar-se um "cinema angolano"
após a panorâmica, em dois volumes, relativa à pré-história do que pode
eventualmente definir-se como um cinema que se realiza a partir de uma nação,
Angola.
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− O livro que vai ser lançado
compõe-se de vários textos? Quais são e que conclusão geral se pode tirar desta
obra?
"O cinema do império" integra cinco ensaios.
O primeiro, relativo à propaganda política do salazarismo, é de minha autoria e
nele integro, além da análise de filmes, a análise de documentação descoberta
no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e outra que se encontrava ainda
classificada, no Arquivo Histórico Diplomático, relativa aos filmes de
Jean-Noel Pascal Angot que propôs, com sucesso, directamente a Salazar a
aprovação de um "plano metrópole" e um "plano ultramar"
para a realização de documentários de propaganda em instâncias internacionais.
O historiador Tiago Baptista escreve sobre os filmes de ficção rodados − em
geral apenas parcialmente − em Angola antes de 1975 enquanto Paulo Martins, que
se doutorou com uma tese sobre os filmes industriais feitos pelos autores do
Cinema Novo português, analisa os filmes da propaganda económica realizados a
partir da década de 50. Desafiei José da Costa Ramos a escrever sobre o cinema
da Diamang porque a sua formação em fotografia, geografia e economia lhe
permitiria fazer um bom estudo de caso. Além do visionamento de filmes feitos
visando o "cinema para indígenas" da companhia mas também dos filmes
de propaganda para o projecção exterior, assinados por Baptista Rosa, Costa
Ramos consultou minuciosamente os relatórios de administração da empresa para
entender o papel que o cinema terá desempenhado como acto de gestão e promoção
empresarial. Finalmente, a historiadora de arte Teresa Castro reflecte sobre o
carácter dos filmes feitos no âmbito de missões científicas nacionais e internacionais.
Trata-se de uma pesquisa detalhada no âmbito da qual a autora visitou arquivos
no Reino Unido, Suíça e Itália além da pesquisa feita em Portugal.
A principal conclusão que se pode tirar desta obra é que há
um processo de rememoração que se impõe, assim como um trabalho paciente e mais
aprofundado de pesquisa em arquivos que estão dispersos. É necessário proceder
a um inventário das fontes existentes e seria desejável criar uma base de dados
que pudesse disponibilizar online o arquivo − colonial / pós-colonial. O cinema
e os documentos que explicam os modos e condições de produção dos filmes podem
ajudar-nos a conhecermo-nos melhor. A recolha de memórias − ao jeito do que
Joaquim Furtado fez com A Guerra − é também fundamental. Importa também alargar
esta pesquisa a outros países de língua portuguesa.
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− Percebe-se a tentação de
evocar Griffith no título. No entanto, até que ponto o cinema feito em
Angola durante o Estado Novo - de que trata este volume - não sobrepôs a
vertente «imperial» à vertente «nacional»? Melhor dizendo, não se pode dizer
que o cinema feito em Angola naquela época era justamente «antinacional»? Ou,
pelo contrário, terá dado um contributo para a formação de uma identidade
angolana?
Sobrepôs certamente. Era certamente "antinacional".
A própria necessidade de Angola se afirmar como nação deriva disso mesmo. Aliás
a forma de organização dos estados como nação foi imposta pelos países
colonialistas e os movimentos de libertação tiveram que sustentar a criação de
uma nação precisamente para a legitimidade da sua luta ter um enquadramento em
termos de Sociedade das Nações. Esta trilogia faz-se uma panorâmica sobre
"o nascimento da nação (Angola)" no cinema. A nação surge como um
artifício legitimador necessário. Se pode dizer-se que a independência é um
marco no reconhecimento da mesma não podemos, julgo, pensá-la sem a ver em
perspectiva, sem olhar para a sua "genealogia" no cinema. No título
não há só a tentação de evocar Griffith. Por detrás está uma ideia de Jean-Michel
Frodon da sua obra "La projection nacionale. Cinéma et nation": é que
cinema e nação partilham a mesma natureza, a projecção. Ambos dependem dela
para existirem.
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− Pode dizer-se que esta
cinematografia era «angolana», pelo menos na temática? Pelo menos, é isso que
parece depreender-se do título... No entanto, afirma-se no livro, logo a abrir,
que «durante décadas não existiu cinema angolano»...
Não creio que se possa dizer que a cinematografia fosse
"angolana". Nos primeiros filmes há um interesse pela paisagem mas
vagamente há um olhar para quem habita a paisagem. Só com a afirmação da
retórica luso-tropical e o início da guerra colonial se começa a olhar para as
pessoas - não apenas os negros mas mesmo para os colonos - e, ainda assim, para
sustentar a interacialidade existente. Durante décadas não existiu, de facto,
"cinema angolano". O título é uma provocação. E não é - num certo
sentido, a afirmação de uma nação angolana faz-se contra a projecção que o
império faz de Angola através do "cinema do império".
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− Peço desculpa por insistir nesta
pergunta, mas o que existia era «cinema português feito em Angola», ou não? E,
nesse caso, nota-se que o olhar é ainda um olhar colonial ou há concessões à
identidade angolana? O cinema era colonial ou chegou a ser colonialista?
O que existia até às décadas de 50, 60 era um
"cinema português feito em Angola". Com a emergência do cineclubismo,
que promoveram o uso do cinema como uma arma política contra o imperialismo e
iniciaram cursos de formação em fotografia e cinema amador; com a banalização
dos formatos cinematográficos para amadores, há a preocupação de começar a
fazer um cinema angolano. Por exemplo, a revista do cineclube do Huambo, no
início da década de 60, publica artigos de balanço sobre o cinema que está a
ser feito e sobre o cinema especificamente angolano que é necessário começar a
fazer.
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António Lopes Ribeiro, O Feitiço do Império (1940)
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− Que contributo terá dado esta
cinematografia para o projecto político do imperialismo colonial? Teve um
impacto real, efectivo, na formação de um certo imaginário? E onde, em
particular: na metrópole ou em Angola?
Deu um enorme contributo. O cinema foi instrumentalizado, a
partir da década de 50 mas sobretudo na década de 60, para veicular uma
retórica luso-tropical simplicada, despojada nomeadamente de certos elementos
relativos à importância da mestiçagem que Freyre valoriza desde a década de 30.
Há um imaginário que perdura numa certa ideia de lusofonia e sobretudo numa
vulgata do senso comum sobre o menor racismo do povo português que foi
projectado através do cinema (mas não só). Creio que esse imaginário perdurou
sobretudo em Portugal mas procurou-se − com algum êxito − projectá-lo
internacionalmente, no Brasil, muito particularmente mas também nos países
membro das Nações Unidas, através de filmes feitos por Jean-Noel Pascal Angot e
Jean Leduc, sobre os quais se desconhecia, até esta pesquisa, terem sido feitos
no âmbito de um plano de propaganda aprovado pelo próprio Salazar, cuja
negociação inclui todos os ministérios e que foi intermediada por César Moreira
Baptista.
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− Tudo sugere que a primeira abordagem
terá sido documental e só na década de quarenta se trilham os caminhos da
ficção. O que ditou esta mudança? Além disso, não parece que a mudança tenha
sido total, pois o documentalismo persistiu enquanto o «ficcionalismo», por
assim dizer, entrou em declínio a partir de certa altura, ou não?
Não houve uma inflexão no sentido de produzir ficção a
partir da década de 40. Há de facto o esforço, singular, para realizar
"Feitiço do Império", o que, creio, foi decorrente da preocupação com
a salvaguarda das colónias perante os riscos de invasão no âmbito de novo
conflito mundial. Porém, também esse filme de ficção − que só parcialmente usa
imagens filmadas em Angola − é feito para potenciar as imagens captadas pela
Missão Cinegráfica às Colónias, de 1938, que fixa a primeira viagem de um
Presidente da República português, Carmona, às colónias e recolhe imagens para
vários documentários que irão estreando ao longo do início da década de 40 e em
função da gestão da película que a rarefacção desta, por causa da guerra
mundial, implicava. Só no final da década de 60, início da década de 70 se
acentua o interesse do cinema de ficção por Angola. Tal decorre do crescimento
económico da então colónia, do surgimento de produtoras de cinema e do
acréscimo de salas de cinema, ligados por sua vez à enorme popularidade do
cinema num território onde − é preciso recordar − não havia televisão.
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− O cinema então produzido era feito a
partir de Lisboa, não havendo iniciativas oriundas de Angola, certo? Porque é
que a colónia portuguesa, sobretudo a partir de certa altura, não
produziu cinema próprio?
Na década de 50 houve iniciativas a partir de Angola, com o
João Silva − que propõe ao CITA a criação de Actualidades de Angola − e com o
António de Sousa − que acaba por dividir com Silva a produção das mesmas. São
ambos considerados pioneiros do cinema feito em Angola embora se trate de
cinema de propaganda, pago por entidades oficiais. Sousa acaba por ir tentando
criar produtoras e assina a realização de vários documentários turísticos e de
propaganda económica. Na entrevista a João Silva publicada neste primeiro
volume pode ler-se sobre isto. No segundo volume, Joana Pimentel analisa com
algum detalhe a produção de filmes por António de Sousa. Entretanto, na década
de 70, a Telecine África também anima a produção local de documentários.
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− Quanto à questão dos
públicos. O cinema desta época tinha como destinatários os habitantes em
Portugal metropolitano ou os que viviam em Angola?
Ambos. Havia filmes de propaganda feitos a pensar mais
especificamente nas audiências metropolitanas (as actualidades "Imagens de
Portugal" e vários documentários de propaganda política, turística,
através das produções do Centro de Informação Turística de Angola) e sobretudo
militar, após a eclosão da guerra) mas havia alguma produção destinada aos
colonos (como as "Actualidades de Angola"). Não havia, em geral,
produção visando o público negro excepto o cinema militante que entretanto
surge e é produzido na clandestinidade ou o caso específico de um "cinema
para indígenas", como o promovido pela Diamang. Como referi antes, porém,
estas audiências não eram as únicas que importavam ao regime salazarista. A
produção de Pascal Angot foi mostrada em festivais internacionais, na ONU,
UNESCO, Unicef e, através de um acordo com a Paramount, difundida por todo o
mundo nas actualidades desta "major".
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Filme de Sarah Maldoror, aqui
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− Há algum despertar de um
«cinema negro» com o surgimento dos movimentos independentistas? Ou, por outras
palavras, como reage o cinema ao surgimento do independentismo? Ignora-o,
procura combatê-lo?
Sim, há. Os filmes de Sarah Maldoror, que conheceu Mário
Pinto de Andrade na URSS quando ela lá estudava cinema, são "cinema
negro" e no feminino. Maldoror é hoje considerada a matriarca do cinema
africano. O MPLA também teve o seu cinema de propaganda. Tanto quanto possível
procurei pesquisá-lo e o resultado poderá ser lido no segundo volume da
trilogia.
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− Por último: o que vamos ter nos
próximos volumes?
Como disse,
os próximos volumes terão como subtítulos "O cinema da libertação" e
"O cinema da independência".
António Araújo
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