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Começámos a falar sobre política dentro da igreja com o
agente da polícia que guardava o templo. Esta conversa decorreu entre mim, o
padre e o polícia.
Falámos sobre a grande traição dos líderes da Irmandade
Muçulmana e o que eles fizeram durante a revolução de 25 de Janeiro em 2011: contactar
membros do Hamash para coordenar a sua entrada no Egipto e fazer fugir os
prisioneiros islamistas da prisão. Na altura, ninguém se apercebeu deste facto,
pois todos estavam mais ocupados com os acontecimentos e as reivindicações da
revolução de 25 de Janeiro, cuja prioridade era a demissão de Mubarak.
A estratégia da Irmandade Muçulmana depois da demissão de
Mubarak consistia sempre em ameaçar o Conselho das Forças Armadas. Isto começou
desde a sua exigência para alterar a Constituição, para que pudessem fazer uma Constituição
à medida dos seus interesses até Morsi ganhar as eleições presidenciais.
Lembro-me muito bem do dia em que se anunciou o resultado
final das eleições presidenciais. Foi um dia de terror. No caso de Morsi perder
as eleições, havia a expectativa de que todo o Egipto ficaria em ruínas. Todos
os funcionários saíram do trabalho ao meio-dia. Ninguém estava na rua na hora
do anúncio dos resultados, excepto os manifestantes da Praça Tahrir, que são
membros ou apoiantes da Irmandade Muçulmana. Mal foi anunciado o resultado,
toda a gente ficou contente e saiu para a rua para festejar a vitória de Morsi,
incluindo os revolucionários, pois o outro candidato era uma figura cimeira do antigo
regime e durante a campanha dissera que o seu modelo era Mubarak. Os revolucionários
escolheram o menos mau…
Antes do dia 30 de Junho, costumava assistir à
manifestação em frente do Ministério da Cultura porque fora indigitado um novo
ministro islamista para essa pasta. Era uma manifestação da elite egípcia: todas
as pessoas ligadas à cultura, actrizes, realizadores, escritores, artistas
plásticos. O ministro não conseguiu entrar no Ministério e foi obrigado a trabalhar
a partir de outro lugar. O slogan de
que mais gostei era «Morsi, Morsi, acorda, 30 de Junho é o teu último dia!».
Havia sempre concertos de todos os tipos durante a noite, os jovens costumavam
ficar ao lado da estrada a mostrar a propaganda da campanha rebelde aos que
passavam de carro. De vez em quando, um carro parava para assinar o documento dos
rebeldes. Os manifestantes cantavam o hino nacional e canções patrióticas com
grande entusiasmo.
Adorei esta manifestação por uma razão muito simples: a
Embaixada de Portugal fica do outro lado do Ministério da Cultura. Era fascinante
ver a bandeira de Portugal acima destas manifestações. Adorava olhar para a
bandeira portuguesa para cima e tive vontade de declarar aos manifestantes que
o povo português apoiava a manifestação. Até tive a ideia de cantar o fado…
Antes do dia 30 de Junho fui para a casa assistir às notícias
e debates pela televisão. Tinha a convicção de que não só iria ocorrer a queda
do regime do Morsi mas também o fim da Irmandade Muçulmana no Egipto e no mundo
árabe. Devo confessar que não era entusiasta desta revolução, como todos os egípcios,
porque, para mim, o Egipto já não é verdadeiramente o meu país.
Como referi atrás, a estratégia da
Irmandade Muçulmana e dos seus apoiantes consistia sempre em ameaçar todos. A
Irmandade Muçulmana fez uma aliança com antigos terroristas. Até se costumava
dizer que Morsi era o patrocinador do terror no Egipto. Conseguiram todos os
seus meios graças ao Conselho das Forças
Armadada. Voltaram a usar a mesma estratégia antes do dia 30 de Junho, mas, felizmente,
não conseguiram aterrorizar o povo egípcio porque o povo egípcio não teme ninguém
e não aceita que o ameacem. Todos os apoiantes de Morsi disseram que o Egipto iria
ficar em ruínas se Morsi se demitisse do poder e que nunca iria haver
estabilidade política no país.
Chegou o dia 30 e houve a maior manifestação de sempre na
história do Egipto. Todas as praças e
ruas do Egipto estavam cheias, e não apenas a Praça Tahrir. Uma avenida muito
grande em frente do palácio presidencial no Cairo ficou completamente cheia.
Esta avenida é como a Avenida da Liberdade, em Lisboa. Ninguém esperava que esta
grande massa de pessoas saísse para a rua, nem sequer as forças da oposição que
convocaram a manifestação. As Forças armadas fizeram tudo para proteger as
manifestações.
No dia seguinte, surgiu a declaração das Forças Armadas convocando
todas as forças políticas para se sentar à mesa e discutir os problemas e deram
48 horas para que isso acontecesse. A oposição não aceitou qualquer solução que
não fosse a demissão do Morsi, pois perderam toda a confiança nele e no seu
regime.
Toda a gente ficou extremamente feliz com esta declaração
das Forças Armadas e saiu para a rua para festejá-la. No dia seguinte, Morsi
fez um discurso horrível para o país, em que repetiu a palavra «legitimidade» 42
vezes. Disse que estava pronto a sacrificar a sua vida para poder proteger essa
legitimidade. No dia seguinte, o Conselho das Forças Armadas convocou todas as
forças políticas: a oposição, que nomeou Mohamed el Baradei, o Partido Salafista,
o xeque de al Azhar, os jovens que fizeram a campanha rebelde e também a Irmandade
Muçulmana, que rejeitou o convite . Passaram as 48 horas e toda a gente estava
à espera de ouvir uma declaração. Passaram mais horas e a reunião não
terminava. Num encontro na Casa da União Patriótica (El Sessy) o Ministro da Defesa fez o seu
histórico discurso, anunciando a suspensão da Constituição e a indigitação do
Presidente do Tribunal Constitucional como
Presidente temporário.
Houve uma alegria imensa nas ruas do Egipto. No momento
em que o ministro estava a proferir o discurso, foi ordenado o encerramento dos
canais islamistas, que ameaçavam matar e usar da violência no caso de deposição
de Morsi. Fui para a rua e vi como os jovens e muitas outras pessoas festejaram
a queda do regime da Irmandade Muçulmana.
Os
egípcios ficaram felizes, mas também os povos dos países do Golfo, pois havia um
grande conflito entre a Irmandade Muçulmana e esses países, com excepção do Qatar.
As grandes figuras da Irmandade Muçulmana costumavam insultar os povos destes
países, além de existir uma forte oposição da Irmandade Muçulmana às monarquias
dos países do Golfo. Toda a gente no Egipto e nos países de Golfo sentiu que o Egipto
regressara às mãos dos egípcios.
Devo reconhecer que as Forças Armadas tiveram grande
interesse em depor Morsi, pois ele e a Irmandade Muçulmana eram uma grande
ameaça para a segurança nacional. Os militares só precisaram que saíssem para a
rua muitas pessoas e isso acabou por acontecer. Saíram milhões de egípcios, quer
pessoas interessadas na política, quer pessoas comuns que sofreram imenso
durante o ano de Morsi por haver muitas problemas em tudo: no gás, na
electricidade, na água e na economia, além de Morsi destruir imenso a imagem do
Egipto no exterior.
Lembro-me de falar com um reformado num café sobre o Presidente
do Egipto. Disse que o Egipto não pode ser governado por um civil e que as
pessoas um dia irão beijar as mãos das Forças Armadas para que estas governem o
país. Foi isto que aconteceu. Agora toda a gente está à espera de um novo Presidente,
mas primeiro irão ser estabelecidas regras para a instauração da democracia,
que começam por uma Constituição, eleições parlamentares e depois eleições
presidenciais. O reformado afirmou ainda que irá aparecer, na altura certa, uma
pessoa que é ou foi das Forças Armadas. Na história recente, o Egipto foi
governado por três pessoas que pertenciam às Forças Armadas. Isto ao longo de
60 anos, menos o ano de Morsi, que foi o pior ano de sempre, um ano de pesadelo
para os egípcios. A experiência de Irmandade Muçulmana foi um mal inevitável. Ainda
bem que ocorreu naquela altura, e não agora depois. Toda a gente se apercebeu
das intenções da Irmandade Muçulmana e de como eles usaram a religião para atrair
imensas pessoas.
Devo dizer que há grande esperança e que tudo vai correr
bem. A esperança vem do entusiasmo e a sinceridade dos jovens que fizeram as
duas revoluções.
Samir H.
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