sexta-feira, 5 de julho de 2013

Moçambique: notas de campo (12).












Por estes dias voltaram a agitar-se, em Moçambique, ameaças endémicas de regresso às armas entre irmãos. Não são tanto os episódios em si que captam a minha atenção, antes o contexto em que se inserem. Nos discursos da rua, no debate público corrente, nos registos de imagens que circulam no espaço público e publicado, nas tendências da investigação universitária, na comunicação social, na ligação entre a literatura e o senso comum, nas conversas entre amigos – mais do que o manifesto, fica bem mais saliente o não-dito, o recalcado. Os moçambicanos dão a ideia de partilhar uma propensão para obliterar a parte sensível da história recente do seu país, a que tem a ver com a crueldade da guerra civil (1976-1992). Tal atitude colectiva revela-se sensivelmente distinta das diversas modalidades de exorcismo, sendo as mais eficazes as que se organizam em torno da racionalização e debate filosófico e histórico (no sentido nobre dos termos, isto é, tanto quanto possível politicamente descomprometidos) sobre a natureza do mal e do mal absoluto nas relações humanas, como tentou Hannah Arendt. E o caso de Moçambique não é para menos. No rescaldo da guerra civil, em números imprecisos, reportaram-se um milhão de mortos (isso mesmo!), três a cinco milhões de deslocados, alguns distritos do país completamente despovoados e marcas de destruição material demasiado óbvias por todo o extenso território nacional. Foram dezasseis anos de uma sempre crescente devastação. Nada que se compare, em dimensão, aos bem mais badalados dez anos anteriores de luta armada de libertação nacional, na versão moçambicana, ou guerra colonial, na versão portuguesa (1964-1974). Neste caso, as cifras apontam para cerca de três mil militares do exército colonial português mortos, a que se devem acrescentar os guerrilheiros da Frelimo e civis, total de vítimas que, no entanto, ficou muitíssimo distante das cifras da posterior guerra civil; os seus efeitos terão sido também muitíssimo mais circunscritos a nível geográfico; e o período desta primeira guerra correspondeu ao momento de maior transformação positiva na então colónia, ao nível das relações humanas ou da edificação material. Desse modo, a atitude dominante entre os moçambicanos é mais ou menos como se, na Europa, os sistemas político, institucional, social, cultural, económico não resultassem do exorcismo do conflito mais recente, a segunda guerra mundial (1939-1945), mas ainda derivassem do modo como se saiu da grande guerra, a primeira (1914-1918). Esta teve quatro anos de duração, nove a dezanove milhões de vítimas mortais e uma devastação material ainda assim circunscrita. A segunda guerra mundial ampliou a natureza do mal a todos os níveis, incluindo nos seus fundamentos ideológicos: seis anos de conflito (nove de incluirmos a guerra civil de Espanha, 1936-1939), cinquenta a setenta milhões de vítimas mortais e estendeu-se de modo bem devastador para além da Europa. De onde resulta a constatação de a sociedade moçambicana, ao longo de duas décadas de paz, tudo ter feito e continuar a fazer para não enxergar o elefante que está perto (a guerra civil pós-colonial), persistindo em entreter-se com um sem-número de detalhes da formiga que paira um pouco mais distante (a luta armada de libertação nacional/guerra colonial). Talvez sintomas de distúrbio neurótico colectivo. É difícil ser taxativo nas explicações desta situação. Avanço apenas com hipóteses: (i) as forças políticas directamente envolvidas na guerra, ainda dominantes, para a sua legitimação não manifestam grande interesse em destapar os véus desses tempos; (ii) os intelectuais, em geral, e os académicos da área das ciências sociais e humanidades, em particular, terem-se deixado envolver numa certa inércia que os faz não serem capazes ou serem impedidos – as duas possibilidades alimentam-se mutuamente – de autonomizar o discurso analítico ou filosófico, por um lado, do discurso político ou ideológico, por outro, ambos legítimos, mas cada um no seu espaço; e (iii) a restante sociedade, por seu lado, alimenta um compromisso tácito com o silenciamento do lado traumático da história recente, a forma possível de garantir a paz imediata, atitude compreensível e legítima, contando que cada dia de paz reforce globalmente o valor da Paz enquanto entidade abstracta. Para além dos dois primeiros pontos, também o último suscita interrogações por dele resultar a possibilidade de estarmos perante um recalcamento mal sucedido de um mal maior que, por isso, paira endémico, o que significa que pode voltar. Neste contexto, quem dialoga com as pessoas comuns é provável que ouça episódios horrorosos ocorridos durante a guerra civil: a mulher grávida violada, esventrada e o feto jogado contra uma árvore; a criança amassada num pilão (utensílio moçambicano que serve de moagem); o indivíduo coagido a disparar contra a própria família; partes de corpos intencionalmente amputadas e deixadas em carne viva; gente simples indiscriminadamente morta, cujos corpos foram abandonados ao ar-livre em povoações ou caminhos; pedaços de corpos e sangue dispersos pelo que restava de viaturas ou de carruagens de comboios; gente obrigada a dormir diariamente nas matas e a esconder os seus parcos alimentos e bens, enterrando-os; populações inteiras forçadas a migrar em condições de fome e de miséria absoluta; etc., etc. Mas essas descrições pouco valor histórico e civilizacional terão se não forem racionalmente enquadradas e socialmente interiorizadas. O pior é se, nesse processo, se transformam em armas perigosas porque utilizadas enquanto argumentos de uma disputa política sempre na fronteira da guerra. Portanto, são vários os dilemas deste drama. É uma sociedade onde mesmo quando se encontra uma ou outra pessoa comum adulta que descreve o horror – atitude em si de assinalar –, depois essa mesma pessoa pode revelar-se incapaz de ir além do nível descritivo, isto é, manifestar dificuldades sérias em avançar para os níveis explicativo, interpretativo ou avaliativo, os da dimensão humana e política das causas e natureza do mal. Mesmo quando alguns indivíduos comuns vão por aí torna-se difícil, para quem os escuta, articular as incongruências dos seus raciocínios. Noutras situações, um simples diálogo pode ficar bloqueado quando o interlocutor tentar convocar o tema da guerra civil. E, acima de tudo, nas cabeças de muitos e muitos jovens pouco mais existe do que uns laivos de conhecimentos demasiado genéricos sobre mais uma guerra no seu país que terá acontecido antes de nascerem, como as outras. A guerra mais devastadora de que há memória em Moçambique, em muitas cabeças acaba assim remetida para uns zunzuns; eles lá [os do poder] é que sabem o que aconteceu e os porquês daquilo aí; isso da guerra é qualquer coisa que não queremos mais. Esta é, precisamente, a nuvem que esconde todos os perigos. Ela não está tanto nas cabeças, almas e atitudes dos que sentiram na pele os horrores desses tempos. Estes jamais os esquecerão. O lado intrigante do fenómeno reside muito mais na incapacidade que a sociedade está a revelar em transmitir as memórias da hecatombe na sua plenitude às gerações que se seguem e que, no tipo de sociedade em causa, se renovam rapidamente. Pior se tivermos em conta o facto de os mais velhos irem sendo sepultados com as suas memórias, mas que são memórias de todos. Portanto, uma parte decisiva da sociedade está a ser deixada do lado de fora da herança pesada de um fenómeno humanamente devastador. Por isso mesmo, os mais novos vão ficando libertos de quaisquer remorsos ou complexos de culpa herdados dos seus progenitores ou dos seus antepassados. Mas tais sentimentos são absolutamente decisivos na instituição da ordem moral de qualquer sociedade, como bem explicou Sigmund Freud (cf. Totem e Tabu, 1912-1913). Daí que a consciência da natureza do mal, de um mal que chegou ao limite do mal absoluto, possa acabar relativizada, desvalorizada, esquecida, ignorada a cada nova geração. É precisamente esta atitude que mantém a porta sempre aberta para que, um dia, voltem a existir predisposições (sociais, culturais, morais) para que o mal e o mal absoluto regressem. Mesmo que não se saiba quando. Se a história serve para alguma coisa, servirá certamente para alimentar, nas sociedades, a ideia de um pânico moral transversal à condição social dos indivíduos e às gerações. De resto, a consolidação do sentido do humano é muito mais produto de experiências colectivamente vividas de forma directa, depois exorcizadas pela racionalização do mal, do que produto de males transpostos de uns contextos para outros, por isso mesmo males abstractos. Para estes africanos comuns os horrores do nazismo ou do estalinismo serão quase inimagináveis, na melhor das hipóteses fenómenos muito distantes. Por isso, como em todas as situações, a consciência dos horrores da casa valerão sempre muitíssimo mais no caminho de consolidação do respeito pela dignidade da vida e pela integridade de cada um. Por tudo o que referi, fico com a ideia de que os conflitos e outras violências que infelizmente, e de forma cíclica, assolam o continente africano resultam, pelo menos em parte, do facto dos antecedentes de tais fenómenos não terem ficado suficientemente gravados nas memórias das novas gerações. A transmissão das memórias pelo rio da história parece que às vezes falha, muito em especial quando nesse rio correu muito sangue de disputas entre irmãos, disputas que quase sempre se sucedem após o parricídio do colono. Freud explicou.
 
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 
 
 

6 comentários:

  1. Excelente reflexão sobre uma questão que, porém, penso não ser peculiar a Moçambique. Estamos presenciando actualmente, a cada dia, em diferentes países, o ressurgimento de perigosas tensões que ameaçam de regresso a um passado que deveria ser apagado de uma vez para sempre, não da memória e da História, mas da possibilidade de ressurreição. Por toda parte ainda proliferam neonazistas, neofascistas, neoestalinistas, neofranquistas, neo salazaristas... A alegre foto de um grupo de turistas em recente visita a Dachau, publicada um pouco antes neste blog, não é bem um indício dessa falta de real percepção dos horrores que aquele lugar deveria evocar-lhes?

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    1. Obrigado. Indo de encontro ao que escreve, não saber viver no dia-a-dia com o passado, mesmo que «pesado», pode deixar-nos inconscientemente presos ao pior desse passado. Por isso, a história é o melhor lugar para irmos construindo a justiça, a liberdade e demais valores nobres.
      Cumprimentos,
      Gabriel Mithá Ribeiro

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  2. Vejo com muita preocupação e apreensão os últimos acontecimentos que se têm passado na minha terra "Moçambique". Efectivamente como escreveu George Santayana "Quem não recorda o passado está condenado a repeti-lo".
    Quanto ao trabalho que estás a desenvolver só tenho que dar-te os parabéns. Força e continua.
    Um abraço
    Luís Caramujo

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  3. Obrigado, Luís Caramujo. Os últimos dias têm estado calmos, mas os fantasmas continuam à solta.
    Abraço,
    Gabriel Mithá Ribeiro

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  4. Araújo: estás.te a bloguicidar? Estes textos matam o genial Malomil.

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    1. Não concordo. Acho que os textos de Mithá Ribeiro são extremamente bem redigidos e tratam de assuntos que nos devem preocupar a todos. Afinal, o Malomil me parece muito interdisciplinar. Aqui cabe de tudo, desde que não sejam idiotices. Você é muito implicante Anônimo. Seja mais tolerante.

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