Por
estes dias voltaram a agitar-se, em Moçambique, ameaças endémicas de regresso
às armas entre irmãos. Não são tanto os episódios em si que captam a
minha atenção, antes o contexto em que se inserem. Nos discursos da rua, no
debate público corrente, nos registos de imagens que circulam no espaço público
e publicado, nas tendências da investigação universitária, na comunicação
social, na ligação entre a literatura e o senso comum, nas conversas entre
amigos – mais do que o manifesto, fica bem mais saliente o não-dito, o
recalcado. Os moçambicanos dão a ideia de partilhar uma propensão para
obliterar a parte sensível da história recente do seu país, a que tem a ver com
a crueldade da guerra civil (1976-1992). Tal atitude colectiva revela-se
sensivelmente distinta das diversas modalidades de exorcismo, sendo as mais
eficazes as que se organizam em torno da racionalização e debate filosófico e
histórico (no sentido nobre dos termos, isto é, tanto quanto possível
politicamente descomprometidos) sobre a natureza do mal e do mal absoluto nas
relações humanas, como tentou Hannah Arendt. E o caso de Moçambique não é para
menos. No rescaldo da guerra civil, em números imprecisos, reportaram-se um
milhão de mortos (isso mesmo!), três a cinco milhões de deslocados, alguns
distritos do país completamente despovoados e marcas de destruição material
demasiado óbvias por todo o extenso território nacional. Foram dezasseis anos
de uma sempre crescente devastação. Nada que se compare, em dimensão, aos bem
mais badalados dez anos anteriores de luta armada de libertação nacional, na
versão moçambicana, ou guerra colonial, na versão portuguesa (1964-1974). Neste
caso, as cifras apontam para cerca de três mil militares do exército colonial
português mortos, a que se devem acrescentar os guerrilheiros da Frelimo e
civis, total de vítimas que, no entanto, ficou muitíssimo distante das cifras
da posterior guerra civil; os seus efeitos terão sido também muitíssimo mais
circunscritos a nível geográfico; e o período desta primeira guerra
correspondeu ao momento de maior transformação positiva na então colónia, ao
nível das relações humanas ou da edificação material. Desse modo, a atitude
dominante entre os moçambicanos é mais ou menos como se, na Europa, os sistemas
político, institucional, social, cultural, económico não resultassem do
exorcismo do conflito mais recente, a segunda guerra mundial (1939-1945), mas
ainda derivassem do modo como se saiu da grande guerra, a primeira (1914-1918).
Esta teve quatro anos de duração, nove a dezanove milhões de vítimas mortais e
uma devastação material ainda assim circunscrita. A segunda guerra mundial
ampliou a natureza do mal a todos os níveis, incluindo nos seus fundamentos
ideológicos: seis anos de conflito (nove de incluirmos a guerra civil de
Espanha, 1936-1939), cinquenta a setenta milhões de vítimas mortais e
estendeu-se de modo bem devastador para além da Europa. De onde resulta a
constatação de a sociedade moçambicana, ao longo de duas décadas de paz, tudo
ter feito e continuar a fazer para não enxergar o elefante que está perto (a
guerra civil pós-colonial), persistindo em entreter-se com um sem-número de
detalhes da formiga que paira um pouco mais distante (a luta armada de
libertação nacional/guerra colonial). Talvez sintomas de distúrbio neurótico
colectivo. É difícil ser taxativo nas explicações desta situação. Avanço apenas
com hipóteses: (i) as forças políticas directamente envolvidas na guerra, ainda
dominantes, para a sua legitimação não manifestam grande interesse em destapar
os véus desses tempos; (ii) os intelectuais, em geral, e os académicos da área
das ciências sociais e humanidades, em particular, terem-se deixado envolver
numa certa inércia que os faz não serem capazes ou serem impedidos – as duas
possibilidades alimentam-se mutuamente – de autonomizar o discurso analítico ou
filosófico, por um lado, do discurso político ou ideológico, por outro, ambos
legítimos, mas cada um no seu espaço; e (iii) a restante sociedade, por seu
lado, alimenta um compromisso tácito com o silenciamento do lado traumático da
história recente, a forma possível de garantir a paz imediata, atitude
compreensível e legítima, contando que cada dia de paz reforce globalmente o
valor da Paz enquanto entidade abstracta. Para além dos dois primeiros pontos,
também o último suscita interrogações por dele resultar a possibilidade de
estarmos perante um recalcamento mal sucedido de um mal maior que, por isso,
paira endémico, o que significa que pode voltar. Neste contexto, quem dialoga
com as pessoas comuns é provável que ouça episódios horrorosos ocorridos
durante a guerra civil: a mulher grávida violada, esventrada e o feto jogado
contra uma árvore; a criança amassada num pilão (utensílio moçambicano que
serve de moagem); o indivíduo coagido a disparar contra a própria família;
partes de corpos intencionalmente amputadas e deixadas em carne viva; gente
simples indiscriminadamente morta, cujos corpos foram abandonados ao ar-livre
em povoações ou caminhos; pedaços de corpos e sangue dispersos pelo que restava
de viaturas ou de carruagens de comboios; gente obrigada a dormir diariamente
nas matas e a esconder os seus parcos alimentos e bens, enterrando-os;
populações inteiras forçadas a migrar em condições de fome e de miséria
absoluta; etc., etc. Mas essas descrições pouco valor histórico e
civilizacional terão se não forem racionalmente enquadradas e socialmente
interiorizadas. O pior é se, nesse processo, se transformam em armas perigosas
porque utilizadas enquanto argumentos de uma disputa política sempre na fronteira
da guerra. Portanto, são vários os dilemas deste drama. É uma sociedade onde
mesmo quando se encontra uma ou outra pessoa comum adulta que descreve o horror
– atitude em si de assinalar –, depois essa mesma pessoa pode revelar-se
incapaz de ir além do nível descritivo, isto é, manifestar dificuldades sérias
em avançar para os níveis explicativo, interpretativo ou avaliativo, os da
dimensão humana e política das causas e natureza do mal. Mesmo quando alguns
indivíduos comuns vão por aí torna-se difícil, para quem os escuta, articular
as incongruências dos seus raciocínios. Noutras situações, um simples diálogo
pode ficar bloqueado quando o interlocutor tentar convocar o tema da guerra
civil. E, acima de tudo, nas cabeças de muitos e muitos jovens pouco mais
existe do que uns laivos de conhecimentos demasiado genéricos sobre mais uma
guerra no seu país que terá acontecido antes de nascerem, como as outras. A
guerra mais devastadora de que há memória em Moçambique, em muitas cabeças
acaba assim remetida para uns zunzuns; eles lá [os do poder] é
que sabem o que aconteceu e os porquês daquilo aí; isso da guerra é
qualquer coisa que não queremos mais. Esta é, precisamente, a nuvem
que esconde todos os perigos. Ela não está tanto nas cabeças, almas e atitudes dos
que sentiram na pele os horrores desses tempos. Estes jamais os esquecerão. O
lado intrigante do fenómeno reside muito mais na incapacidade que a sociedade
está a revelar em transmitir as memórias da hecatombe na sua plenitude às
gerações que se seguem e que, no tipo de sociedade em causa, se renovam
rapidamente. Pior se tivermos em conta o facto de os mais velhos irem sendo
sepultados com as suas memórias, mas que são memórias de todos. Portanto, uma
parte decisiva da sociedade está a ser deixada do lado de fora da herança
pesada de um fenómeno humanamente devastador. Por isso mesmo, os mais novos vão
ficando libertos de quaisquer remorsos ou complexos de culpa herdados dos seus
progenitores ou dos seus antepassados. Mas tais sentimentos são absolutamente
decisivos na instituição da ordem moral de qualquer sociedade, como bem
explicou Sigmund Freud (cf. Totem e Tabu, 1912-1913). Daí que a
consciência da natureza do mal, de um mal que chegou ao limite do mal absoluto,
possa acabar relativizada, desvalorizada, esquecida, ignorada a cada nova
geração. É precisamente esta atitude que mantém a porta sempre aberta para que,
um dia, voltem a existir predisposições (sociais, culturais, morais) para que o
mal e o mal absoluto regressem. Mesmo que não se saiba quando. Se a história
serve para alguma coisa, servirá certamente para alimentar, nas sociedades, a
ideia de um pânico moral transversal à condição social dos indivíduos e às
gerações. De resto, a consolidação do sentido do humano é muito mais produto de
experiências colectivamente vividas de forma directa, depois exorcizadas pela
racionalização do mal, do que produto de males transpostos de uns contextos
para outros, por isso mesmo males abstractos. Para estes africanos comuns os
horrores do nazismo ou do estalinismo serão quase inimagináveis, na melhor das
hipóteses fenómenos muito distantes. Por isso, como em todas as situações, a
consciência dos horrores da casa valerão sempre muitíssimo mais no caminho de
consolidação do respeito pela dignidade da vida e pela integridade de cada um.
Por tudo o que referi, fico com a ideia de que os conflitos e outras violências
que infelizmente, e de forma cíclica, assolam o continente africano resultam,
pelo menos em parte, do facto dos antecedentes de tais fenómenos não terem
ficado suficientemente gravados nas memórias das novas gerações. A transmissão
das memórias pelo rio da história parece que às vezes falha, muito em especial
quando nesse rio correu muito sangue de disputas entre irmãos, disputas que
quase sempre se sucedem após o parricídio do colono. Freud explicou.
Gabriel Mithá Ribeiro
Excelente reflexão sobre uma questão que, porém, penso não ser peculiar a Moçambique. Estamos presenciando actualmente, a cada dia, em diferentes países, o ressurgimento de perigosas tensões que ameaçam de regresso a um passado que deveria ser apagado de uma vez para sempre, não da memória e da História, mas da possibilidade de ressurreição. Por toda parte ainda proliferam neonazistas, neofascistas, neoestalinistas, neofranquistas, neo salazaristas... A alegre foto de um grupo de turistas em recente visita a Dachau, publicada um pouco antes neste blog, não é bem um indício dessa falta de real percepção dos horrores que aquele lugar deveria evocar-lhes?
ResponderEliminarObrigado. Indo de encontro ao que escreve, não saber viver no dia-a-dia com o passado, mesmo que «pesado», pode deixar-nos inconscientemente presos ao pior desse passado. Por isso, a história é o melhor lugar para irmos construindo a justiça, a liberdade e demais valores nobres.
EliminarCumprimentos,
Gabriel Mithá Ribeiro
Vejo com muita preocupação e apreensão os últimos acontecimentos que se têm passado na minha terra "Moçambique". Efectivamente como escreveu George Santayana "Quem não recorda o passado está condenado a repeti-lo".
ResponderEliminarQuanto ao trabalho que estás a desenvolver só tenho que dar-te os parabéns. Força e continua.
Um abraço
Luís Caramujo
Obrigado, Luís Caramujo. Os últimos dias têm estado calmos, mas os fantasmas continuam à solta.
ResponderEliminarAbraço,
Gabriel Mithá Ribeiro
Araújo: estás.te a bloguicidar? Estes textos matam o genial Malomil.
ResponderEliminarNão concordo. Acho que os textos de Mithá Ribeiro são extremamente bem redigidos e tratam de assuntos que nos devem preocupar a todos. Afinal, o Malomil me parece muito interdisciplinar. Aqui cabe de tudo, desde que não sejam idiotices. Você é muito implicante Anônimo. Seja mais tolerante.
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