O jornalista e escritor francês Lucien Deslinières gostava de sonhar a
utopia mas nunca a conseguiu viver. Em 1899 publicou, com um esperançoso
título, L´Application du Système
Collectiviste, conseguindo, antes de ter aplicado o que quer que seja,
encontrar motivo para preencher 544 páginas. Jean Jaurès, que escreveu o
prefácio, dizia justamente: até agora os socialistas proibiram-se de descrever
com precisão a sociedade futura; finalmente, surge Deslinières, o qual no seu
livro demonstra com toda a força como será abundante a produção colectivista. O
problema foi passar à prática: Deslinières tentou estabelecer uma quinta colectivista
no México, mas falhou; depois, passou-lhe pela cabeça repetir a tentativa na
União Soviética, tendo sido comissário para a agricultura na Ucrânia, em 1920,
onde quis aplicar as suas ideias, mas falhou devido, afirma-se candidamente, a
falta de … dinheiro. Voltou a França, onde ainda teve coragem, e encontrou
editor, para publicar, em 1923, um livro com um título ultra-optimista: “La production intensive.” Há quem nunca aprenda …
Em 1908, Deslinières tinha publicado o primeiro volume (não consta que
tenha havido segundo) do seu Projet de
Code Socialiste, que ofereceu à S.F.I.O. (Section Française de
l´Internationale Ouvrière), para que o partido tivesse disponível “uma organização social no momento em que
quaisquer circunstâncias, que precipitassem os acontecimentos, como, por
exemplo, uma grande guerra europeia, lhe facilitassem apossar-se do poder
político”. Uma guerra parecia, pois, a oportunidade azada para a revolução
socialista.
No entanto, os socialistas sentiam-se presos por um dilema: por um lado,
a guerra poderia conduzir à queda definitiva do capitalismo, pelo que, mesmo
não a provocando, os revolucionários nada deviam fazer para a evitar; no
entanto, também tinham a consciência de que o conflito poderia ser uma
calamidade, na qual os trabalhadores seriam os que mais sofreriam, pelo que os
socialistas deviam recorrer a todos os meios possíveis para eliminar a
possibilidade de guerra.
Também os governos enfrentavam um grave dilema: sem um significativo
suporte popular, dificilmente um governo arriscaria tomar o caminho da guerra;
ora, face ao crescente peso eleitoral dos socialistas, como se poderia ter a
certeza, quando se tivesse de tomar a decisão fatal, que os cidadãos estariam
dispostos a marchar para a frente de batalha?
Assim, no caminho para a Grande Guerra, a atitude dos trabalhadores e,
em particular, das suas organizações profissionais e políticas na eventualidade
de um conflito, constituía o principal temor dos governantes. No Império
Austro-húngaro e na Rússia, é certo, sindicatos e partidos socialistas
relativamente fracos não preocupavam seriamente aqueles que viam no conflito
uma oportunidade para consolidar o império e o seu poder. Já os Governos
francês e alemão estavam confrontados com os dois maiores partidos socialistas
existentes, formalmente revolucionários, e, juntamente com o Governo britânico,
com movimentos sindicais poderosos. As suas tomadas de posição em caso de
guerra eram muito importantes, porventura decisivas para o sucesso dos respectivos
países no conflito que se adivinhava. Por isso, a análise prévia sobre as
possíveis reações dos partidos e dos sindicatos quando confrontados com uma
guerra real determinaria o modo como os governantes enfrentariam a crise.
Quanto menor a incerteza maior seria a liberdade de acção dos governos.
No fundo, a grande
questão era saber se as várias comunidades políticas em confronto tinham sabido
encontrar resposta para uma pergunta: como tornar credível um Estado que vai
pedir às pessoas a quem não dá de que viver que vão morrer para a defender?
.
.
A resposta seria dada em 1914. A iminência da guerra fez com que os
Governos francês e alemão adoptassem algumas medidas preventivas. O Ministério
do Interior francês elaborou uma lista − o célebre Carnet B −, onde se enumerava o nome dos sindicalistas e militantes
socialistas que considerava prioritário sujeitar a medidas de detenção em caso
de guerra. O governo alemão, pelos vistos mais confiante no patriotismo dos
seus “revolucionários”, limitou-se a desenvolver contactos regulares com alguns
socialistas que considerava mais susceptíveis de serem seduzidos por apelos
patrióticos: Gustav Noske foi convidado a visitar um navio de guerra enquanto
outro socialista, Albert Südekum, mantinha contactos regulares com o gabinete
do Chanceler Bethmann-Holweg como representante de Friedrich Ebert, líder do
SPD. É certo que em 1919, Noske, então no governo do SPD, usaria os Freikorps
para afogar no sangue a intentona spartaquista (Noske sobreviveria ao nazismo,
não sem passar por um campo de concentração). E Lenine, em Fevereiro de 1915,
escreveria um artigo no “Sotsial-Demokrat”
(não passa despercebida a ironia do nome do jornal) onde falava dos “Südekumes”: uma designação genérica
para todos os oportunistas sem escrúpulos e social-chauvinistas (a inventiva no
impropério sempre distinguiu os bolcheviques).
Na verdade, os sinais existentes davam alguma liberdade de acção aos
governos. Na França, temeu-se a quebra da unidade nacional quando do homicídio
de Jean Jaurès, em 31 de Agosto, na iminência da mobilização. Pois nada se
passou: poucos se juntaram às cerimónias fúnebres, não houve manifestações nem
a mínima alteração da ordem pública. Sentiu-se uma profunda emoção, mas esta
surgiu mais como uma marca da impotência perante a evolução dos acontecimentos,
já profundamente interiorizada na consciência dos franceses.
Para John A. Hall e John Ikenberry (em O Estado, Editorial
Estampa, Lisboa, 1990), decisivo nesta fase foi precisamente “o facto de a
elite política sentir que podia confiar nos trabalhadores no que diz respeito à
prática política com o estrangeiro...”. As discussões no seio da Segunda
Internacional tinham concluído sem que tivesse sido adotada uma posição clara,
definitiva e pronta a aplicar em caso de conflito: greve geral multilateral que
impediria o esforço de guerra. Quando os governantes ouviram os líderes operários
dizer que nenhuma garantia havia de que do outro lado da fronteira se fizesse
greve, puderam concluir que o movimento operário não estava unido, estando
contagiado pelo espírito patriótico de cada país. Perceberam então que os
operários fariam a guerra.
Quando todos partiram para a guerra, com entusiasmo, Aquilino Ribeiro,
que residia em Paris no início das hostilidades, ainda não se apercebera da
mudança de mentalidades. Em 2 de Agosto, escreveria no seu diário que os
operários,
“... rivalizavam (...) na febre de
defender a bandeira que (...) tempos antes atafulhavam nas sentinas (...). No
último congresso não preconizaram e votaram, para o caso de guerra, a greve
geral? Numa e noutra parte os socialistas marcharam para a hecatombe com a mansidão
de borregos.”
Começou então a
perceber-se que os operários fizeram a guerra porque o Estado lhes dava alguma
coisa que não queriam perder. Não eram mansos borregos, mas cidadãos que, acima
da consciência de classe, colocavam valores mais poderosos. Hobsbawn, assinalando que o exército francês contava
com até 13% de desertores e apenas foi confrontado com 1,3% em 1914, falou na “prova melancólica do sucesso da política
integradora da democracia.”
Depois, a estória foi outra: os operários sentiram-se enganados durante
a guerra, esquecidos depois desta. Em 1919, Clemenceau viveria em pânico
porque, enquanto negociava Versalhes, tinha um milhão de soldados entusiasmados
com experiências revolucionárias na Rússia, na Alemanha, na Hungria, esperando a
desmobilização de armas na mão. É bem verdade: há sempre que contar com o dia
de amanhã.
José Luís Moura Jacinto
Sem comentários:
Enviar um comentário