Morumbala, 2009
Fotografia de Sean Sheridan, aqui
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Entre a guerra da secessão dos Estados Unidos da
América (1861-1865), a guerra civil de Espanha (1936-1939) ou a guerra civil de
Moçambique (1976-1992) – exemplos de tempos e espaços diversos –, sendo cada
caso específico nos seus elementos descritivos, essas e outras sociedades
partilham a inevitável necessidade de, em dados momentos das suas existências,
aprenderem por si mesmas a domesticar as marcas da violência que se estendem
muito para além da quietude das armas. Comparativamente aos Estados Unidos da
América ou a Espanha, Moçambique – o país onde estou – nem sequer se aproximou
da racionalização e pacificação do que aconteceu ao nível da interpretação
historiográfica, parte do trauma que se mantém recalcada. Remeterei, por isso,
apenas para as relações quotidianas nas quais se notam manifestações de uma
sociedade que vai aprendendo a libertar-se da anomia social gerada e legada
pelo conflito (cf. nota 12 desta série do Malomil sobre o elevadonível de destruição causado pela guerra). É por isso sintomático que paire
nesta sociedade um ostensivo orgulho macho, minúsculo mas útil fenómeno
do que vai restando do paroxismo do princípio do prazer próprio de
guerras e anomias. Manifesta-se amiúde nos discursos de senso comum, os mesmos
que deixam saliente a consciência de que a vida quotidiana, sobretudo nas
cidades, se debate com dificuldades resultantes de atitudes e comportamentos
individuais negativos. Reflectem-se na elevada criminalidade, no alcoolismo, na
desconfiança em transações aparentemente rotineiras, na falta de civismo, entre
outras situações. Como circulo com regularidade pelos bairros pobres das
periferias urbanas, não ignoro as consequências da ausência da figura paterna
em diversas famílias. Contudo, neste universo de paradoxos é comum as pessoas
fazerem piada sobre a casa um ou a casa dois, as casas das
respectivas mulheres e filhos que servem para medir, em quantidade, o
sucesso de um certo tipo de homens modernos, os que venceram na vida
depois da guerra civil, transformados em itinerantes entre os seus múltiplos
lares. Num anúncio de rádio a uma peça de teatro, o personagem dizia qualquer
coisa como: Esse motorista só me arranja problemas. Disse-lhe para ir deixar
o miúdo na casa dezasseis e ele foi deixar na casa seis. Confundiu o dezasseis
com o seis. Neste imbróglio, apesar de tudo, é ajustado situar os
referentes reguladores da ordem moral da sociedade moçambicana a meio caminho
entre o princípio do prazer (dominado pelo poder dos instintos que se
radicalizou com a guerra civil, a começar pela libertação do instinto primário
de matar que espoletou a libertação de outros instintos que aproximaram a
sociedade da anomia) e o princípio da realidade (sem abdicar do prazer,
obriga à repressão dos instintos primários e força os indivíduos a tolerar o
adiamento da satisfação dos instintos em geral). Sigo Freud. É pelo princípio
da realidade que captamos os fundamentos da ordem moral que sustentam a
viabilidade da ideia de comunidade e, portanto, da qualidade da vida em comum.
Desse modo, a ideia de civilização (palavra tornada incómoda) é mais filha do princípio
da realidade do que do princípio do prazer. E é verosímil considerar
que é o princípio da realidade que cada vez mais faz mover os
moçambicanos comuns, aqueles que querem encerrar os anos das trevas de
uma guerra civil que ameaça reacender-se. De qualquer modo, importa ter em
atenção que não são as tradições poligâmicas africanas que devem ser colocadas
no âmago da explicação do fenómeno dos homens de muitos lares. A
questão-chave é outra. É a de estamos perante um mundo de relações humanas
profundamente inovador. Por vezes, onde se destrói muito e violentamente o
génio humano tem o dom de aprender a reconstruir e a reinventar depressa. A
natureza regenerativa da longa guerra civil em Moçambique (1976-1992) implicou
a aceleração do cruzamento, peculiar na história, entre o pós-tradicional (a
filiação dos indivíduos às suas heranças ancestrais africanas é inevitável que
se reinvente no presente) e o pós-colonial (a herança cultural europeia não foi
renegada, pelo contrário, e a sua reinvenção segue em marcha acelerada no
presente). Se as sociedades são sempre produtos de toda a sua história, a
última guerra em Moçambique tornou para todo o sempre indissociável o que terá
sido na origem marcadamente distinto: as tradições ancestrais africanas, por um
lado, e o legado cultural da colonização europeia, por outro. Sem se entender
isto, não se entende a África da actualidade e do futuro. É por isso que a
sociedade moçambicana não passa por um período de indefinição, antes vive num
labirinto em busca de respostas a questões identitárias primordiais: quem
somos e o que somos nós, moçambicanos ou africanos de hoje. Também e
sobretudo porque as independências africanas que remontam há meio século, mais
do que resolver, semearam e ampliaram estas inquietações. Daí que o humor sobre
os homens de sucesso de muitos lares contenha também uma dimensão de
ridicularização de um tipo-macho socialmente desregulado. Perceber-se-á
melhor o assunto se se tiver em consideração a afirmação crescente das igrejas
cristãs ou cristãs-sincréticas (isto é, africanizadas), a resposta
possível das gentes comuns à descrença no estado enquanto entidade que poderia
funcionar como referente agregador na reinvenção da ordem moral. A terminar, é
provável que exista um intervalo geracional problemático, parte do segmento
daqueles que cresceram nos tempos da guerra civil e das suas sequelas mais
dolorosas, situação espelhada nos muitos (até há uns anos crianças) órfãos da
guerra. O tempo fará com que o que se destaca de disfuncional nessa geração vá
ficando no meio: entre os que cresceram antes da guerra (os da moral
do antigamente, na essência tradicional ou colonial) e os que vão crescendo
à medida que se vai encerrando o ciclo de anomia (os de uma ordem moral que
renasce com o contributo das muitas igrejas). Existem, por isso, razões para
antecipar um futuro melhor para esta África que inventa antídotos, mesmo que
por cima de recalcamentos, para as suas muitas, profundas e dolorosas feridas.
Convinha que os europeus percebessem que há uma parte da sua identidade e
cultura originárias que se tornaram, para todo o sempre, africanas. É a
história…
Gabriel Mithá Ribeiro
Já lá estive, é Morrumbala.
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