Fotografia de Sean Sheridan, aqui
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Foi
raptado mais um empresário em Maputo, prática que vem sofisticando a natureza
do crime em Moçambique. A novidade dos últimos dias foi a de a vítima ter sido
um empresário português branco. Talvez não seja por acaso que, até agora, o
grupo mais vulnerável a tal prática tenha sido o dos islâmicos de origem
asiática. Veremos o que ocorrerá, de agora em diante, com a minoria portuguesa
branca em Moçambique, sociedade em que certas modas pegam depressa, como os
próprios raptos. Talvez também não seja por acaso que a vulnerabilidade possa
pairar longe de empresários chineses ou da elite empresarial negra moçambicana,
ainda que também estes não estejam absolutamente imunes aos raptos. Mas o nível
de incidência comparativa entre diferentes segmentos ético-raciais terá
certamente razões explicativas. Ignorar este dado significa obliterar uma peça
importante na compreensão do assunto. Avento, por isso, a hipótese de poder
existir, nas lógicas do fenómeno dos raptos em Moçambique, alguma associação
com as atitudes políticas dos que controlam o estado. Tais atitudes oscilam
entre um extremo de relacionamento desfavorável (ou distante), o que deixa uns
grupos étnico-raciais minoritários mais vulneráveis, e um extremo de
relacionamento favorável (ou preferencial), o que deixa outros grupos
étnico-raciais mais protegidos. Para além de se tratar de pessoas-alvo ricas, o
tempo permitirá aferir a validade de outras lógicas. De qualquer modo, existem
indícios, mesmo que para já frágeis, de os raptores manifestarem tendências selectivas
na escolha da pertença étnica ou racial das vítimas. Ou seja, o volume das
contas bancárias das vítimas, sendo o atributo central em situações de raptos
que visam obter valores monetários elevados em troca do resgate, pode não
minimizar necessariamente outros atributos. Por seu lado, o contexto social
onde tais práticas ocorrem é sempre relevante, o que implica ter em atenção ao
modo como se processa a integração das minorias étnicas e raciais nas
sociedades de acolhimento, bem como a natureza e os efeitos sociais, mesmo que
indesejáveis, dos discursos e demais atitudes das elites dominantes. E para
percebermos os últimos devemos prestar atenção ao que é manifesto (por hábito
dominado pelo politicamente correcto) e sobretudo às inconfessadas fórmulas
latentes (onde, muitas vezes, se jogam as cargas agressivas). De resto, as
interpretações do lado problemático dos fenómenos étnicos e raciais continuarão
fragilizadas enquanto aprioristicamente se persistir em circunscrevê-los a
determinadas sociedades (em geral ocidentais), apenas a determinadas minorias
(em geral não-brancas), apenas a pessoas de determinado estatuto socioeconómico
(os pobres). Sociedades maioritariamente negras, como a moçambicana; minorias
raciais não-negras, como a portuguesa branca ou islâmica asiática; ou
indivíduos pertencentes a classes médias e altas (de acordo com os padrões das
sociedades de acolhimento, não necessariamente das sociedades de origem) –
deveriam também captar muito mais a atenção dos que pretendem compreender o
mundo de hoje. É plausível a tese da existência de sociedades fortemente
escrutinadas ao nível do tratamento conferido às minorias raciais e étnicas (e
bem!), como as europeias, comparativamente a outras que são muito mais
raramente escrutinadas a este mesmo nível. A propósito, e não se trata de mero
detalhe face ao que está em causa, existem sintomas evidentes de
anti-portuguesismo nos discursos e demais atitudes de uma parte das elites
moçambicanas, em particular as ligadas ao poder político do estado, contudo
tais atitudes tendem a inverter-se à medida que descemos na hierarquia social.
Escrito em linguagem elementar, a comunidade portuguesa branca tende a ser forte
entre os pobres moçambicanos, a grande maioria da população, e tende a
revelar-se demasiado fraca entre os ricos moçambicanos, a esfera
decisiva do poder. Daí que o termo xenofobia seja inadequado, mas não
dispomos de outro. Suponho que algo de equivalente possa estar a ocorrer
noutros contextos africanos. Quanto à comunidade islâmica de origem asiática (monhés,
na designação depreciativa), a tendencial ostracização revela-se socialmente
mais transversal a elites e gente comum, em Moçambique. Neste caso, de mais
longa duração histórica em diversos países africanos, a realidade revela a
necessidade de um escrutínio bem mais apurado desde já, precisamente porque o
fenómeno vai transitando do período colonial para o pós-colonial em fórmulas
reinventadas. Em geral, sobre os monhés alimentam-se uns quantos estereótipos
(como associá-los, por atacado nos discursos de senso comum, a determinados
tipos de criminalidade), mas que podem acima de tudo significar a procura de um
bode expiatório vulnerável para descartar males de muitos outros. Em suma, as
questões sensíveis que afectam as minorias étnicas e raciais em sociedades
maioritariamente negras são assuntos a que as universidades e a comunicação
social deveriam prestar muito mais atenção, viciados que estão em modelos de
pensamento do século XX. São eles que impedem que se compreenda muito melhor o
século XXI, um século substantivamente distinto do século que lhe antecedeu.
Essa é a fonte de demasiadas incongruências, demasiados olhares selectivos,
demasiadas dualidades de critérios, demasiadas incompreensões. Ajustar, o
melhor possível, o pensamento à realidade vivida é uma incontornável ambição
dos que se interessam pelos destinos do mundo.
Gabriel Mithá Ribeiro
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