segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

A cobra.

 
 
 

 
1 de Dezembro de 1933. Enquanto Portugal comemora o primeiro feriado da Restauração da Independência sob o manto do Estado Novo, Leni Riefenstahl dá início, com a projecção do filme A Vitória da Fé na enorme e importantíssima sala de cinema berlinense Ufa-Palast am Zoo, a uma das mais interessantes e duradouras discussões sobre a ética da estética. Nos últimos dias, através do YouTube (o canal em que perco mais tempo desde a transmissão na RTP2, tinha eu 13 anos, da telenovela Pantanal), visualizei novamente a obra da cineasta a quem chamo “a cobra”. E, como seria de esperar, voltei a assustar-me!
Passemos às explicações: tenho medo de cobras, quase fobia; no entanto, estranhamente (ou talvez não, a psicologia e a antropologia garantem ter explicações para o facto), raras vezes resisti a visitar os reptilários dos zoológicos ou mesmo aquelas exposições itinerantes de gosto duvidoso que trazem animais exóticos às nossas cidades. Com os filmes de Leni Riefenstahl é a mesma coisa. Sei que se trata de propaganda nazi e que me vou sentir desconfortável, mas, de vez em quando, lá sou apanhado pela minha mulher a olhar com ar envergonhado para um homem de bigodinho toothbrush a berrar entre archotes e suásticas.
 

Apaixonada pelas artes desde a infância, Leni Riefenstahl pintou, escreveu e dançou antes de se entregar ao cinema
 
O fascínio exercido pela estética totalitária, da arquitectura de Albert Speer às esculturas soviéticas de Vera Mukhina, é um bom exemplo de um trabalho bem feito, uma vez que a ideia era mesmo essa: fascinar. Como indica o título do ensaio que Susan Sontag escreveu em 1975 sobre Leni Riefenstahl, há, de facto, um fascinating fascism; e este está sempre pronto para “morder” os incautos.
 
EXPO 1937 e a mania das grandezas da Alemanha Nazi (pavilhão da esquerda) e da União Soviética (pavilhão da direita)
 
 
Aprofundemos então, como verdadeiros herpetólogos, a história da “cobra”. Nascida em 1902, entra na 7ª arte pela porta da interpretação, participando como actriz em várias películas do “cinema alpino alemão”. A fama que procurava, incluindo a internacional, apareceu rapidamente. Este estilo – o filme de montanha –, muito famoso na Alemanha de Weimar, mostrava esquiadores e trepadores em heróicas batalhas contra uma natureza grandiosa e fotografada de modo espectacular. À distância, consegue-se identificar neste género um idealismo, entusiamo e espírito anti-racionalista que já não anunciava nada de bom.
 
Leni em 1929 no “filme de montanha” O inferno branco de Piz Palü
 
Os estúdios alemães, com a produtora UFA à cabeça, eram nessa época uma “fábrica de sonhos” de nível mundial (provavelmente a única rival de Hollywood), onde realizadores brilhantes tais como Ernst Lubitsch ou F. W. Murnau tinham lançado algumas das suas obras-primas, ainda hoje presentes no panteão das glórias do cinema.
 
Metropolis (1927) de Fritz Lang, uma produção da UFA
 
Nos anos 30, com a aproximação e chegada de Hitler à Chancelaria, fogem da Alemanha um grande número de actores e directores (o realizador Fritz Lang e a actriz Marlene Dietrich são os nomes mais famosos de uma extensa lista), mas tal não afectou em nada o ímpeto cinematográfico do regime.
Mal tomou posse como Ministro da Propaganda, Goebbels ordenou às empresas americanas de filmes com instalações na Alemanha que despedissem todos os colaboradores de raça judia. Em seguida, reuniu as principais figuras do sector para lhes indicar quais os filmes que seriam apoiados pelo Reich. Nesse encontro, deu alguns exemplos de filmes que admirava e cujos exemplos deveriam ser seguidos pela Indústria. O Couraçado Potemkine, de Sergei Eisenstein, foi um dos mais dissecados.
Realizado em 1925, conta a história do motim ocorrido em 1905 a bordo do navio de guerra Potemkin, quando a tripulação se revolta contra os oficiais da Marinha Czarista. A transposição para o cinema deste facto histórico da Rússia pré-revolucionária deu origem a um filme duplamente famoso: pelas técnicas usadas tornou-se num marco histórico da sétima arte; pelo contexto em que foi apresentado ficou registado na história da propaganda. Joseph Goebbels considerava O Couraçado Potemkin um filme soberbo e declarava que “qualquer pessoa que não tivesse convicções políticas fortes podia transformar-se num Bolchevique depois de o ver”. E, acrescento eu, se essa visualização ocorresse às 8 da noite, no fim de um dia de trabalho, o momento identificado pelos psicólogos nazis da sua equipa como mais propício para persuadir uma alma, talvez se transformasse até num sósia do próprio Lenine.
O filósofo Walter Benjamim, conhecido por ter escrito um dos ensaios com melhor título de sempre (A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica), descreveu o fascismo como “a estetização da política”. De facto, num dos primeiros manuais de propaganda produzidos pelo Partido Nazi, no final dos anos 20, existe um capítulo específico dedicado à utilização das artes, da pintura ao cinema, passando pela fotografia, literatura, teatro, escultura, música e arquitectura. E a lição foi tão bem aprendida que durante os 15 anos seguintes, entre obras produzidas anteriormente e obras encomendadas para esse efeito, pouca coisa escapou ao abraço propagandístico. Foi feita a apologia de uma “nova interpretação” dos pintores do romantismo alemão (Caspar David Friedrich, principalmente), da arquitectura do Império Romano (Hitler descreve-a no Mein Kampf como um símbolo de poder), da literatura de Friedrich Nietzsche, e da música clássica alemã (suspeita-se que as peças de Wagner foram usados em Dachau com o objectivo de “reeducar” prisioneiros). Hitler dizia que “pelo uso sagaz e contínuo da propaganda, um povo até pode ser levado a confundir céu com inferno, ou vice-versa”, e o seu omnipresente ministro da pasta gabava-se de conseguir provar, através da repetição e da manipulação psicológica, que “um quadrado é na realidade um triângulo”. Assim sendo, como é fácil de ver por estas frases, valia tudo!
 
A “força” da música de Wagner faz parte do imaginário popular: Woody Allen fez humor com o assunto, dizendo que ouvir Wagner lhe dava vontade de conquistar a Polónia, e, em Apocalypse Now, o “excêntrico” Bill Kilgore utiliza a Cavalgada das Valquírias para motivar as suas tropas e exercer guerra psicológica sobre o inimigo
 
Assim que conquista o poder, Hitler dirige-se à jovem cineasta Leni Riefenstahl dizendo-lhe que gostaria que o filme A Vitória da Fé (que seria filmado em Nuremberga no ano de 1933, durante o 5º congresso do partido) fosse feito por um artista; o führer queria algo que transcendesse o vulgar documentário e via nela esse talento. A admiração era mútua, uma vez que ela o via como um orador brilhante, capaz de hipnotizar qualquer pessoa (mais tarde, muitos usariam essa desculpa para justificar a adesão ao nazismo).  
A convenção de 1933, cenário da rodagem da produção, contou com a participação de mais de trezentas mil pessoas, entre os camisas-castanhas das SA de Röhm, os camisas-negras das SS de Himmler, forças armadas convencionais e cidadãos em geral. O projectista-chefe do comício foi Speer, o arquitecto do regime, que transformou Nuremberga num palco de teatro. O seu projecto institucionalizou a “estética fascista”, muito embora a maioria dos elementos (marchas, archotes, bandeiras) tivessem saído da imaginação de Goebbels. Leni e Speer idealizaram uma iluminação baseada em holofotes de cinema e um palco elevado que seria fundamental para o tipo de filmagem executada – sempre de baixo para cima, mantendo Hitler no alto e distante. Leni confessou que pretendia “impressionar de uma forma arrebatadora”.
 
Hitler e Ernst Röhm aparecem várias vezes juntos n´A Vitória da Fé, o que levou a que quase todas as cópias do filme fossem destruídas pelos nazis após a queda em desgraça do líder das SA (Röhm foi executado em 1934 durante a purga da “noite das facas longas”)
 
       Embora Leni sempre se tenha referido ao seu trabalho como puro documentário, a organização e filmagem de cenas depois do encerramento do comício não deixam grandes dúvidas quanto ao carácter do filme. Speer voltou a criar o cenário de Nuremberga num estúdio e certos discursos voltaram a ser gravados com nova iluminação. Alguns jovens bem-parecidos das SA e das SS foram filmados e incluídos posteriormente como parte da reacção aos discursos. Tudo isto é referido por Speer nas suas memórias, publicadas em 1969 (Por dentro do III Reich).
 
 
 Riefenstahl a dar ordens a membros do partido Nazi durante as filmagens d´A Vitória da Fé. Uma mulher entre homens, que não era para brincadeiras (dizem as más-línguas que por ter as “costas bem quentes”)  
 
        A imprensa alemã glorificou A Vitória da Fé como um “documentário triunfante”, que mostrava a transição do Partido para o Estado, mas o jornal inglês London Observer não foi em cantigas: caracterizou-o como “uma longa apoteose do espírito cesarista” que mostra bem “o espírito intoxicante que se vive na Alemanha por estes dias”. É de realçar que os ingleses sabiam do que falavam: uns anos antes, durante a Guerra dos Boers, utilizaram diversos filmes para promover a sua causa, sendo alguns dos quais filmagens documentais genuínas e outros meros filmes forjados!  
       O filme de Riefenstahl foi visto por vinte milhões de alemães, entre projecções em salas de cinema, escolas, ginásios e salões comunitários. Na altura talvez tenha parecido arrasador e assustador, mas 16 meses depois, passou a concorrer, em termos de inocência, com as fitas de Walt Disney! No dia 28 de Março de 1935 estreia em Berlim O Triunfo da Vontade, mostrando ao mundo que A Vitória da Fé não tinha passado de um simples “ensaio”. Sobre esta produção megalómana Goebbels é peremptório: “quem tenha visto e sentido o rosto do führerO Triunfo da Vontade nunca o esquecerá. Há-de persegui-lo nos dias, nos sonhos, na vontade, como uma chama silenciosa, queimando no interior da alma”.
        A realização foi planeada durante meses e contou com recursos praticamente ilimitados, concedidos directamente por Hitler. O próprio Goebbels sentiu-se ultrapassado pela relação directa entre os dois. A equipa de produção era constituída por quase 200 pessoas e incluía fotógrafos aéreos, consultores de propaganda do Partido e uma equipa de som de 13 pessoas! Um grupo de trabalho desta dimensão não tinha precedentes em qualquer parte do mundo. A conhecida frase de Orson Welles – “um escritor precisa de uma caneta, um pintor de um pincel e um realizador de um exército” – podia ter sido dita para retratar este projecto.
 

O Triunfo da Vontade (1935)
 
          Já no pós-guerra a realizadora afirmou que O Triunfo da Vontade “não contém uma única cena reconstruída. Tudo nele é verdade. É história. Puramente um filme histórico”. Numa entrevista concedida aos Cahiers du Cinéma, Leni defendeu a pureza do seu trabalho e o seu carácter totalmente independente da propaganda. “Nenhuma cena foi encenada” - disse com veemência - “tudo é genuíno. E não existem comentários tendenciosos pela simples razão que não existem quaisquer comentários”.
            Não podemos negar que as inovações introduzidas por Riefenstahl nos filmes de Nuremberga demonstram o seu génio artístico, que era, de facto, invulgar: as filmagens aéreas, as filmagens efectuadas sobre carris e em plataformas elevatórias, ou a utilização de patins nos operadores de câmara para filmagens em movimento, são disso prova inequívoca. Mas o registo puramente documental defendido por Leni é completamente desmontado pelos relatos de Speer, que assegura que algumas cenas foram ensaiadas mais de 50 vezes e refeitas até à perfeição. Os remorsos do arquitecto podem-no ter levado a exagerar, talvez tenham sido “só” 20 vezes, ou talvez 10; de qualquer forma, não foi certamente um documentário “BBC Vida Selvagem” que ali foi filmado. Tudo naquela convenção aconteceu para usufruto das câmaras. Nas palavras de Sontag, “as imagens não são simplesmente a gravação da realidade; a “realidade” foi construída para servir a imagem”. 
 
 
O elevador instalado num dos gigantescos mastros permitiu uma filmagem aérea sobre as massas presentes no 6º congresso do NSDAP. Nada faltou a Leni na produção d´O Triunfo da Vontade
 
           Apesar de ter perdido vários “julgamentos” da opinião pública (também ganhou alguns, note-se), a realizadora nunca foi condenada nos julgamentos reais a que foi sujeita. Prevaleceu a ideia da naïveté política e de uma vida dedicada à sétima arte, sem percepção do contributo prestado à glorificação de um regime monstruoso. Ao contrário do que seria de esperar, a proximidade temporal dos factos não a prejudicou aos olhos dos juízes. Na verdade, muitos artistas do passado dedicaram algumas das suas obras à propaganda e trabalharam para patronos com segundas intenções, sem que isso tenha retirado grandeza a essas obras e sem que os respectivos artistas tenham ficado com o seu nome misturado com as segundas intenções dos patrocinadores. Com o passar dos anos diminuem as hipóteses de se detectarem os conteúdos propagandísticos dos trabalhos, ficando apenas à vista a sua vertente estética, por vezes sublime. Leni não contou com esta “ajuda” e mesmo assim safou-se. Outros realizadores ligados ao nazismo não tiveram a mesma sorte e acabaram condenados como criminosos de guerra.
 
A crítica reconhece O Triunfo da Vontade.
Os prémios que recebeu foram usados por Leni Riefenstahl na defesa da sua imagem como uma simples artista
 
        Sendo sem dúvida a mais famosa, Leni Riefenstahl não foi a única cineasta do regime. A percepção da importância do cinema pelos ideólogos do nacional-socialismo era demasiado grande para que estes se contentassem com uma única figura. Conheciam bem a história desta arte e sabiam que ela tinha sido usada como “catalisador de vontades” desde o seu aparecimento (a título de exemplo, o primeiro filme a ser produzido na Rússia, em 1896, retratava a coroação do Czar Nicolau II; Trotsky, uns anos mais tarde, chegou a afirmar que o cinema substituiria a religião e a vodka nos hábitos do povo).
         Na década de 30, Fritz Hippler, colaborador da Secção do Filme no Ministério da Propaganda (e mais tarde responsável pela fita O Eterno Judeu, um dos mais notórios filmes anti-semitas realizados na Alemanha), publica um ensaio intitulado O filme como uma arma. Aí defende que de todos os meios de propaganda disponíveis, o filme era sem dúvida o mais poderoso e o que provocava um efeito mais intenso no povo, pois enquanto a palavra transmitida oralmente ou por escrito estava dependente do contexto e da qualidade do orador, o filme conjugava a imagem e o som obtendo uma persuasão máxima. Hippler recorre ao texto de 1916 da autoria do pioneiro do cinema alemão Metzter (The Film as a Means of Political Advertising), para mostrar que este já defendia que os responsáveis alemães deveriam começar a “atingir as massas” usando a imagem. Na opinião de Metzter, os inimigos da Alemanha na I Guerra Mundial já dispunham da “arma cinematográfica”, enquanto os alemães ainda não usavam devidamente as suas potencialidades propagandísticas.
         O ensaio de Hippler é bastante claro relativamente ao investimento do III Reich no cinema. Pelas contas apresentadas pelo próprio, em 1934, 413 em cada 1000 ingleses iam ao cinema todas as semanas enquanto na Alemanha esse número se situava nos 86 por cada 1000. No entanto, em 1937 a Alemanha ultrapassava a Inglaterra como o país europeu com mais salas de cinema e neutralizava a diferença no número de espectadores. A frase final do texto resume o pensamento do Ministério da Propaganda: “aumentar o número de espectadores de cinema está entre as tarefas mais importantes da política de cinema alemã, e dessa forma será aumentada a eficácia do filme na propaganda e na iluminação popular”. Como “recompensa” pelos seus serviços “em prol da arte”, os Aliados ofereceram a Fritz Hippler, em 1948, uma estadia de dois anos na prisão por crimes de guerra. Em regime TI, esperamos nós.
        Além do aumento exponencial das salas de cinema propriamente ditas, a nazificação pelo cinema foi feita recorrendo a outros métodos: cerca de 2/3 das 60.000 escolas alemãs contavam com salas de projecção, além das muitas sessões realizadas em ginásios, centros comunitários, fábricas e instalações militares.
       O investimento gigantesco do III Reich no cinema ainda consegue surpreender os investigadores contemporâneos. Já em 2010, Philippe Mora, um realizador australiano, encontrou em Berlim filmes rodados antes da II Guerra Mundial em formato 3D. Os filmes, de conteúdo propagandístico, com imagens do quotidiano alemão, são datados de 1936 e foram encontrados em ficheiros federais alemães. É de realçar que o formato 3D só se tornou conhecido nos EUA em 1952, ou seja, 16 anos depois! "Os filmes, com a duração de 30 minutos, foram rodados em 35 milímetros, aparentemente com um prisma colocado à frente das lentes", disse Mora à revista Variety, acrescentando que “a qualidade dos filmes é fantástica". No seu julgamento em Nuremberga, Albert Speer salientou: "A ditadura de Hitler foi a primeira ditadura de um Estado industrial, uma ditadura que, para dominar o seu próprio povo, se serviu perfeitamente de todos os meios técnicos”.
       A propaganda através do cinema tinha prioridade máxima na Alemanha. Mesmo nos anos finais da II Guerra Mundial, enquanto escolas e fábricas encerravam, os cinemas continuavam em funcionamento, e em Berlim, as unidades anti-aéreas foram colocadas especificamente a proteger as salas. A sua utilização pelos nazis não se resumia à propaganda directa mas destinava-se igualmente ao entretenimento das massas e como um instrumento de fuga da realidade. Goebbels afirmava que uma das causas da derrota alemã na I Guerra Mundial tinha sido o falhanço do regime em sustentar e manter em níveis elevados a moral dos cidadãos, e durante a II Guerra Mundial apostou fortemente na distribuição de musicais ligeiros e comédias. Alejandro Pizarroso Quintero, um académico madrileno que se dedicou à investigação destes fenómenos, considera que “esta função de escape é também um instrumento de propaganda, sobretudo como inibidora de qualquer propaganda contrária”.
        O Ministério da Propaganda exigia controlar todos os guiões previamente, impondo imediatamente as mudanças consideradas necessárias; naturalmente, a nacionalização de quase toda a indústria foi apenas uma questão de tempo, e no início da guerra já as grandes empresas do sector - Ufa, Tobis e Bavaria - estavam nas mãos do Estado. Até esse passo ser dado eram concedidos subsídios mediante uma classificação dos filmes, sendo o grau mais elevado atribuído aos filmes que exaltassem os valores raciais e transmitissem os princípios morais e políticos do Reich. Na década de 40 só três companhias de cinema mantinham algum grau de autonomia, uma das quais a de Leni Riefenstahl. E a generosidade de Hitler levou-o a presentear igualmente outros povos com as maravilhas da 7ª arte. Entre outras ruindades, após as invasões fizeram questão de exibir aos noruegueses as filmagens do blitzkrieg sobre os polacos.
        As teorias raciais do nacional-socialismo não foram esquecidas pela sétima arte. Algumas das mais famosas películas alemãs desta época estão directamente relacionadas com a propaganda anti-semita. Para além do já referido Fritz Hippler e respectivo Eterno Judeu, salienta-se igualmente o realizador Veit Harlan e o seu Judeu Süss. Os argumentos eram simples: a decadência moral dos judeus e a imutabilidade das suas (horríveis) características.

 

O Eterno Judeu (1940) de Fritz Hippler. A figura representada no cartaz é todo um programa
 
          A obra de Harlan foi vista por vinte milhões de alemães (numa população total de setenta milhões!) e segundo alguns relatos, depois de assistirem ao filme, alguns espectadores em estado de excitação iam pelas ruas em perseguição de judeus. A eficácia propagandística era tal que o chefe das SS, Heinrich Himmler, obrigava os seus membros a verem o filme.
         Riefenstahl também foi acusada de contribuir para as teorias raciais do regime através da apologia da perfeição física presente no filme Olympia (1938), embora tenha beneficiado do facto de não ter ocultado nas suas filmagens as vitórias de Jesse Owens, o famoso atleta americano negro. Existem várias histórias sobre supostas discussões entre Leni e Goebbels, com a realizadora a resistir às pressões para eliminar Owens da edição final do filme, mas há quem defenda que este conflito nunca aconteceu, realçando que os objectivos que os nazis pretendiam alcançar com Olympia eram claros: construir uma imagem da Alemanha como um “país hospitaleiro, moderno, eficiente, uma nação pacífica de desporto e benigna”.
 
Jesse Owens pela lente de Riefenstahl. Esta fotografia foi vendida em 2011 pela leiloeira Christies por 6000 dólares   
 
         Na realidade, é bastante fácil defender a realizadora no caso concreto do trabalho que fez sobre os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936. O filme é avançadíssimo para a época, são usadas técnicas absolutamente inovadoras e ainda hoje a televisão apresenta visualmente o desporto através de alguns ensinamentos de Olympia. A própria revista Time, 60 anos depois da icónica capa sobre o fim da guerra na Europa (um Hitler riscado com um grande X vermelho), não teve qualquer problema em incluí-lo na lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos.
 
 
Olympia (1938): demasiado belo para ser boicotado
 
      Como observou Ian Kershaw, “com o fim de Hitler, os sinais exteriores do nacional-socialismo também desapareceram da face da terra, aparentemente da noite para o dia”. A “relação hipnótica, quase sensual” que Hitler criou (palavras de Kissinger), passou a justificar muitas das cumplicidades com a utopia revolucionária nacionalista do führer. Uma utopia que era fundamentalmente emocional e apoiada em variados “antis”: anti-racional, antiparlamentar, antiliberal, anti-individualista, antidemocrática, anti-intelectual. Os crimes eram assim “vendidos” como meros actos necessários para alcançar o bem comum e universal e seria a propaganda a tratar da “produção de consentimento” de que nos fala Chomsky.
         Os Aliados conheciam o poder propagandístico do cinema e não parece provável que este facto lhes tenha passado despercebido. Existe aliás um episódio do pós-guerra em que, de uma forma deliciosamente irónica, o feitiço se vira contra o feiticeiro: quando os soldados americanos entram no recinto de Nuremberga destinado aos comícios nazis registados pela lente de Riefenstahl, não resistem a gravar em filme o momento em que dinamitam a grande suástica que se erguia por cima do palanque do orador. Essa pequena película (que pode ser hoje vista no YouTube) constituiu uma peça de propaganda dos Aliados e foi usada maciçamente para divulgar a vitória militar obtida.
 
 
 

 
 
 
Para sorte de Leni Riefenstahl, os seus indesmentíveis dotes artísticos, associados ao “culto da beleza”, permitiram-lhe uma desnazificação sem danos de maior. Viu o “sol aos quadradinhos” até ao final dos julgamentos, mas livrou-se da dura realidade que a esperava caso lhe tivesse sido atribuída a prática de crimes de guerra. Ainda conseguiu lançar um filme – Tiefland (1954) – que tinha gravado, com recurso a prisioneiros de campos de concentração, durante a guerra; um documentário (dos “verdadeiros”, se é que existe essa categoria) sobre a vida subaquática; várias reportagens fotográficas (sobre os Jogos Olímpicos de 1972; sobre tribos africanas do Sudão; sobre recifes de corais); e um livro de memórias. Praticou mergulho desde os 70 até aos 94 anos de idade (falsificou a data de nascimento em documentos para conseguir ter acesso a licenças especiais que lhe permitissem mergulhar a grandes profundidades), sobreviveu a uma queda de helicóptero com 97, e morreu, no meio de projectos para regressar a um território sudanês mergulhado na guerra civil, com a bonita idade de 101. Que o meu fascínio fóbico pelas cobras em geral e por Leni Riefenstahl em particular dure assim tanto tempo, é o que peço ao Pai Natal nas festividades que se aproximam.
 
Sérgio Barreto Costa
 

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