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de Dezembro de 1933. Enquanto Portugal comemora o primeiro feriado da
Restauração da Independência sob o manto do Estado Novo, Leni Riefenstahl dá
início, com a projecção do filme A
Vitória da Fé na enorme e importantíssima sala de cinema berlinense Ufa-Palast
am Zoo, a uma das mais interessantes e duradouras discussões sobre a ética da estética. Nos últimos dias, através
do YouTube (o canal em que perco mais
tempo desde a transmissão na RTP2, tinha eu 13 anos, da telenovela Pantanal),
visualizei novamente a obra da cineasta a quem chamo “a cobra”. E, como seria
de esperar, voltei a assustar-me!
Passemos
às explicações: tenho medo de cobras, quase fobia; no entanto, estranhamente
(ou talvez não, a psicologia e a antropologia garantem ter explicações para o
facto), raras vezes resisti a visitar os reptilários dos zoológicos ou mesmo
aquelas exposições itinerantes de gosto duvidoso que trazem animais exóticos às
nossas cidades. Com os filmes de Leni Riefenstahl é a mesma coisa. Sei que se
trata de propaganda nazi e que me vou sentir desconfortável, mas, de vez em
quando, lá sou apanhado pela minha mulher a olhar com ar envergonhado para um
homem de bigodinho toothbrush a
berrar entre archotes e suásticas.
Apaixonada
pelas artes desde a infância, Leni Riefenstahl pintou, escreveu e dançou antes
de se entregar ao cinema
O
fascínio exercido pela estética totalitária, da arquitectura de Albert Speer às
esculturas soviéticas de Vera Mukhina, é um bom exemplo de um trabalho bem
feito, uma vez que a ideia era mesmo essa: fascinar. Como indica o título do
ensaio que Susan Sontag escreveu em 1975 sobre Leni Riefenstahl, há, de facto,
um fascinating fascism; e este está
sempre pronto para “morder” os incautos.
EXPO
1937 e a mania das grandezas da Alemanha Nazi (pavilhão da esquerda) e da União
Soviética (pavilhão da direita)
Aprofundemos
então, como verdadeiros herpetólogos, a história da “cobra”. Nascida em 1902,
entra na 7ª arte pela porta da interpretação, participando como actriz em várias
películas do “cinema alpino alemão”. A fama que procurava, incluindo a
internacional, apareceu rapidamente. Este estilo – o filme de montanha –, muito
famoso na Alemanha de Weimar, mostrava esquiadores e trepadores em heróicas
batalhas contra uma natureza grandiosa e fotografada de modo espectacular. À
distância, consegue-se identificar neste género um idealismo, entusiamo e
espírito anti-racionalista que já não anunciava nada de bom.
Leni
em 1929 no “filme de montanha” O inferno
branco de Piz Palü
Os
estúdios alemães, com a produtora UFA à cabeça, eram nessa época uma “fábrica
de sonhos” de nível mundial (provavelmente a única rival de Hollywood), onde realizadores
brilhantes tais como Ernst Lubitsch ou F. W. Murnau tinham lançado algumas das
suas obras-primas, ainda hoje presentes no panteão das glórias do cinema.
Metropolis
(1927) de Fritz Lang, uma produção da UFA
Nos
anos 30, com a aproximação e chegada de Hitler à Chancelaria, fogem da Alemanha
um grande número de actores e directores (o realizador Fritz Lang e a actriz
Marlene Dietrich são os nomes mais famosos de uma extensa lista), mas tal não
afectou em nada o ímpeto cinematográfico do regime.
Mal
tomou posse como Ministro da Propaganda, Goebbels ordenou às empresas
americanas de filmes com instalações na Alemanha que despedissem todos os
colaboradores de raça judia. Em seguida, reuniu as principais figuras do sector
para lhes indicar quais os filmes que seriam apoiados pelo Reich. Nesse encontro, deu alguns exemplos de filmes que admirava e
cujos exemplos deveriam ser seguidos pela Indústria. O Couraçado Potemkine, de Sergei Eisenstein, foi um dos mais
dissecados.
Realizado
em 1925, conta a história do motim ocorrido em 1905 a bordo do navio de guerra Potemkin, quando a tripulação se revolta
contra os oficiais da Marinha Czarista. A transposição para o cinema deste
facto histórico da Rússia pré-revolucionária deu origem a um filme duplamente
famoso: pelas técnicas usadas tornou-se num marco histórico da sétima arte;
pelo contexto em que foi apresentado ficou registado na história da propaganda.
Joseph Goebbels considerava O Couraçado
Potemkin um filme soberbo e declarava que “qualquer pessoa que não tivesse
convicções políticas fortes podia transformar-se num Bolchevique depois de o ver”.
E, acrescento eu, se essa visualização ocorresse às 8 da noite, no fim de um
dia de trabalho, o momento identificado pelos psicólogos nazis da sua equipa
como mais propício para persuadir uma alma, talvez se transformasse até num sósia
do próprio Lenine.
O
filósofo Walter Benjamim, conhecido por ter escrito um dos ensaios com melhor
título de sempre (A Obra de Arte na Era
da sua Reprodutibilidade Técnica), descreveu o fascismo como “a estetização
da política”. De facto, num dos primeiros manuais de propaganda produzidos pelo
Partido Nazi, no final dos anos 20, existe um capítulo específico dedicado à
utilização das artes, da pintura ao cinema, passando pela fotografia,
literatura, teatro, escultura, música e arquitectura. E a lição foi tão bem
aprendida que durante os 15 anos seguintes, entre obras produzidas
anteriormente e obras encomendadas para esse efeito, pouca coisa escapou ao
abraço propagandístico. Foi feita a apologia de uma “nova interpretação” dos
pintores do romantismo alemão (Caspar David Friedrich, principalmente), da
arquitectura do Império Romano (Hitler descreve-a no Mein Kampf como um símbolo de poder), da literatura de Friedrich
Nietzsche, e da música clássica alemã (suspeita-se que as peças de Wagner foram
usados em Dachau com o objectivo de “reeducar” prisioneiros). Hitler dizia que “pelo
uso sagaz e contínuo da propaganda, um povo até pode ser levado a confundir céu
com inferno, ou vice-versa”, e o seu omnipresente ministro da pasta gabava-se
de conseguir provar, através da repetição e da manipulação psicológica, que “um
quadrado é na realidade um triângulo”. Assim sendo, como é fácil de ver por
estas frases, valia tudo!
A
“força” da música de Wagner faz parte do imaginário popular: Woody Allen fez
humor com o assunto, dizendo que ouvir Wagner lhe dava vontade de conquistar a
Polónia, e, em Apocalypse Now, o
“excêntrico” Bill Kilgore utiliza a Cavalgada
das Valquírias para motivar as suas tropas e exercer guerra psicológica
sobre o inimigo
Assim que conquista o poder, Hitler dirige-se à jovem cineasta
Leni Riefenstahl dizendo-lhe que gostaria que o filme A Vitória da Fé (que seria filmado em Nuremberga no ano de 1933, durante
o 5º congresso do partido) fosse feito por um artista; o führer queria algo que transcendesse o vulgar documentário e via
nela esse talento. A admiração era mútua, uma vez que ela o via como um orador
brilhante, capaz de hipnotizar qualquer pessoa (mais tarde, muitos usariam essa
desculpa para justificar a adesão ao nazismo).
A
convenção de 1933, cenário da rodagem da produção, contou com a participação de
mais de trezentas mil pessoas, entre os camisas-castanhas das SA de Röhm, os
camisas-negras das SS de Himmler, forças armadas convencionais e cidadãos em
geral. O projectista-chefe do comício foi Speer, o arquitecto do regime, que transformou
Nuremberga num palco de teatro. O seu projecto institucionalizou a “estética
fascista”, muito embora a maioria dos elementos (marchas, archotes, bandeiras)
tivessem saído da imaginação de Goebbels. Leni e Speer idealizaram uma
iluminação baseada em holofotes de cinema e um palco elevado que seria
fundamental para o tipo de filmagem executada – sempre de baixo para cima,
mantendo Hitler no alto e distante. Leni confessou que pretendia “impressionar
de uma forma arrebatadora”.
Hitler
e Ernst Röhm aparecem várias vezes
juntos n´A Vitória da Fé,
o que levou a que quase todas as cópias do filme fossem destruídas pelos nazis após
a queda em desgraça do líder das SA (Röhm foi executado em 1934 durante a purga
da “noite das facas longas”)
Embora
Leni sempre se tenha referido ao seu trabalho como puro documentário, a organização
e filmagem de cenas depois do encerramento do comício não deixam grandes
dúvidas quanto ao carácter do filme. Speer voltou a criar o cenário de
Nuremberga num estúdio e certos discursos voltaram a ser gravados com nova
iluminação. Alguns jovens bem-parecidos das SA e das SS foram filmados e
incluídos posteriormente como parte da reacção aos discursos. Tudo isto é referido
por Speer nas suas memórias, publicadas em 1969 (Por dentro do III Reich).
Riefenstahl a dar ordens a membros do partido
Nazi durante as filmagens d´A Vitória da
Fé. Uma mulher entre homens, que não era para brincadeiras (dizem as
más-línguas que por ter as “costas bem quentes”)
A
imprensa alemã glorificou A Vitória da Fé
como um “documentário triunfante”, que mostrava a transição do Partido para o
Estado, mas o jornal inglês London
Observer não foi em cantigas: caracterizou-o como “uma longa apoteose do
espírito cesarista” que mostra bem “o espírito intoxicante que se vive na
Alemanha por estes dias”. É de realçar que os ingleses sabiam do que falavam:
uns anos antes, durante a Guerra dos Boers, utilizaram diversos filmes para
promover a sua causa, sendo alguns dos quais filmagens documentais genuínas e
outros meros filmes forjados!
O
filme de Riefenstahl foi visto por vinte milhões de alemães, entre projecções
em salas de cinema, escolas, ginásios e salões comunitários. Na altura talvez
tenha parecido arrasador e assustador, mas 16 meses depois, passou a concorrer,
em termos de inocência, com as fitas de Walt Disney! No dia 28 de Março de 1935
estreia em Berlim O Triunfo da Vontade, mostrando
ao mundo que A Vitória da Fé não
tinha passado de um simples “ensaio”. Sobre esta produção megalómana Goebbels é
peremptório: “quem tenha visto e sentido o rosto do führer n´O Triunfo da Vontade nunca o esquecerá. Há-de persegui-lo nos dias,
nos sonhos, na vontade, como uma chama silenciosa, queimando no interior da
alma”.
A
realização foi planeada durante meses e contou com recursos praticamente
ilimitados, concedidos directamente por Hitler. O próprio Goebbels sentiu-se
ultrapassado pela relação directa entre os dois. A equipa de produção era
constituída por quase 200 pessoas e incluía fotógrafos aéreos, consultores de
propaganda do Partido e uma equipa de som de 13 pessoas! Um grupo de trabalho desta
dimensão não tinha precedentes em qualquer parte do mundo. A conhecida frase de
Orson Welles – “um escritor precisa de uma caneta, um pintor de um pincel e um
realizador de um exército” – podia ter sido dita para retratar este projecto.
O Triunfo da Vontade (1935)
Já
no pós-guerra a realizadora afirmou que O
Triunfo da Vontade “não contém uma única cena reconstruída. Tudo nele é
verdade. É história. Puramente um filme histórico”. Numa entrevista concedida aos
Cahiers du Cinéma, Leni defendeu a
pureza do seu trabalho e o seu carácter totalmente independente da propaganda.
“Nenhuma cena foi encenada” - disse com veemência - “tudo é genuíno. E não
existem comentários tendenciosos pela simples razão que não existem quaisquer
comentários”.
Não
podemos negar que as inovações introduzidas por Riefenstahl nos filmes de
Nuremberga demonstram o seu génio artístico, que era, de facto, invulgar: as
filmagens aéreas, as filmagens efectuadas sobre carris e em plataformas
elevatórias, ou a utilização de patins nos operadores de câmara para filmagens
em movimento, são disso prova inequívoca. Mas o registo puramente documental
defendido por Leni é completamente desmontado pelos relatos de Speer, que
assegura que algumas cenas foram ensaiadas mais de 50 vezes e refeitas até à
perfeição. Os remorsos do arquitecto podem-no ter levado a exagerar, talvez
tenham sido “só” 20 vezes, ou talvez 10; de qualquer forma, não foi certamente
um documentário “BBC Vida Selvagem” que ali foi filmado. Tudo naquela convenção
aconteceu para usufruto das câmaras. Nas palavras de Sontag, “as imagens não
são simplesmente a gravação da realidade; a “realidade” foi construída para
servir a imagem”.
O
elevador instalado num dos gigantescos mastros permitiu uma filmagem aérea
sobre as massas presentes no 6º congresso do NSDAP. Nada faltou a Leni na produção d´O Triunfo da Vontade
Apesar
de ter perdido vários “julgamentos” da opinião pública (também ganhou alguns,
note-se), a realizadora nunca foi condenada nos julgamentos reais a que foi
sujeita. Prevaleceu a ideia da naïveté
política e de uma vida dedicada à sétima arte, sem percepção do contributo prestado
à glorificação de um regime monstruoso. Ao contrário do que seria de esperar, a
proximidade temporal dos factos não a prejudicou aos olhos dos juízes. Na verdade,
muitos artistas do passado dedicaram algumas das suas obras à propaganda e
trabalharam para patronos com segundas intenções, sem que isso tenha retirado
grandeza a essas obras e sem que os respectivos artistas tenham ficado com o
seu nome misturado com as segundas intenções dos patrocinadores. Com o passar
dos anos diminuem as hipóteses de se detectarem os conteúdos propagandísticos
dos trabalhos, ficando apenas à vista a sua vertente estética, por vezes
sublime. Leni não contou com esta “ajuda” e mesmo assim safou-se. Outros
realizadores ligados ao nazismo não tiveram a mesma sorte e acabaram condenados
como criminosos de guerra.
A
crítica reconhece O Triunfo da Vontade.
Os
prémios que recebeu foram usados por Leni Riefenstahl na defesa da sua imagem
como uma simples artista
Sendo
sem dúvida a mais famosa, Leni Riefenstahl não foi a única cineasta do regime.
A percepção da importância do cinema pelos ideólogos do nacional-socialismo era
demasiado grande para que estes se contentassem com uma única figura. Conheciam
bem a história desta arte e sabiam que ela tinha sido usada como “catalisador
de vontades” desde o seu aparecimento (a título de exemplo, o primeiro filme a
ser produzido na Rússia, em 1896, retratava a coroação do Czar Nicolau II; Trotsky,
uns anos mais tarde, chegou a afirmar que o cinema substituiria a religião e a
vodka nos hábitos do povo).
Na
década de 30, Fritz Hippler, colaborador da Secção do Filme no Ministério da
Propaganda (e mais tarde responsável pela fita O Eterno Judeu, um dos mais notórios filmes anti-semitas realizados
na Alemanha), publica um ensaio intitulado O
filme como uma arma. Aí defende que de todos os meios de propaganda
disponíveis, o filme era sem dúvida o mais poderoso e o que provocava um efeito
mais intenso no povo, pois enquanto a palavra transmitida oralmente ou por
escrito estava dependente do contexto e da qualidade do orador, o filme
conjugava a imagem e o som obtendo uma persuasão máxima. Hippler recorre ao
texto de 1916 da autoria do pioneiro do cinema alemão Metzter (The Film as a Means of Political Advertising),
para mostrar que este já defendia que os responsáveis alemães deveriam começar
a “atingir as massas” usando a imagem. Na opinião de Metzter, os inimigos da Alemanha
na I Guerra Mundial já dispunham da “arma cinematográfica”, enquanto os alemães
ainda não usavam devidamente as suas potencialidades propagandísticas.
O
ensaio de Hippler é bastante claro relativamente ao investimento do III Reich no cinema. Pelas contas
apresentadas pelo próprio, em 1934, 413 em cada 1000 ingleses iam ao cinema
todas as semanas enquanto na Alemanha esse número se situava nos 86 por cada
1000. No entanto, em 1937 a Alemanha ultrapassava a Inglaterra como o país
europeu com mais salas de cinema e neutralizava a diferença no número de
espectadores. A frase final do texto resume o pensamento do Ministério da
Propaganda: “aumentar o número de espectadores de cinema está entre as tarefas
mais importantes da política de cinema alemã, e dessa forma será aumentada a
eficácia do filme na propaganda e na iluminação popular”. Como “recompensa” pelos
seus serviços “em prol da arte”, os Aliados ofereceram a Fritz Hippler, em
1948, uma estadia de dois anos na prisão por crimes de guerra. Em regime TI, esperamos
nós.
Além
do aumento exponencial das salas de cinema propriamente ditas, a nazificação
pelo cinema foi feita recorrendo a outros métodos: cerca de 2/3 das 60.000
escolas alemãs contavam com salas de projecção, além das muitas sessões realizadas
em ginásios, centros comunitários, fábricas e instalações militares.
O
investimento gigantesco do III Reich
no cinema ainda consegue surpreender os investigadores contemporâneos. Já em
2010, Philippe Mora, um realizador australiano, encontrou em Berlim filmes
rodados antes da II Guerra Mundial em formato 3D. Os filmes, de conteúdo
propagandístico, com imagens do quotidiano alemão, são datados de 1936 e foram
encontrados em ficheiros federais alemães. É de realçar que o formato 3D só se
tornou conhecido nos EUA em 1952, ou seja, 16 anos depois! "Os filmes, com
a duração de 30 minutos, foram rodados em 35 milímetros, aparentemente com um
prisma colocado à frente das lentes", disse Mora à revista Variety, acrescentando que “a qualidade
dos filmes é fantástica". No seu julgamento em Nuremberga, Albert Speer salientou:
"A ditadura de Hitler foi a primeira ditadura de um Estado industrial, uma
ditadura que, para dominar o seu próprio povo, se serviu perfeitamente de todos
os meios técnicos”.
A
propaganda através do cinema tinha prioridade máxima na Alemanha. Mesmo nos
anos finais da II Guerra Mundial, enquanto escolas e fábricas encerravam, os
cinemas continuavam em funcionamento, e em Berlim, as unidades anti-aéreas
foram colocadas especificamente a proteger as salas. A sua utilização pelos
nazis não se resumia à propaganda directa mas destinava-se igualmente ao
entretenimento das massas e como um instrumento de fuga da realidade. Goebbels
afirmava que uma das causas da derrota alemã na I Guerra Mundial tinha sido o
falhanço do regime em sustentar e manter em níveis elevados a moral dos
cidadãos, e durante a II Guerra Mundial apostou fortemente na distribuição de
musicais ligeiros e comédias. Alejandro Pizarroso Quintero, um académico madrileno
que se dedicou à investigação destes fenómenos, considera que “esta função de
escape é também um instrumento de propaganda, sobretudo como inibidora de
qualquer propaganda contrária”.
O
Ministério da Propaganda exigia controlar todos os guiões previamente, impondo
imediatamente as mudanças consideradas necessárias; naturalmente, a nacionalização
de quase toda a indústria foi apenas uma questão de tempo, e no início da
guerra já as grandes empresas do sector - Ufa, Tobis e Bavaria - estavam nas
mãos do Estado. Até esse passo ser dado eram concedidos subsídios mediante uma
classificação dos filmes, sendo o grau mais elevado atribuído aos filmes que
exaltassem os valores raciais e transmitissem os princípios morais e políticos
do Reich. Na década de 40 só três
companhias de cinema mantinham algum grau de autonomia, uma das quais a de Leni
Riefenstahl. E a generosidade de Hitler levou-o a presentear igualmente outros
povos com as maravilhas da 7ª arte. Entre outras ruindades, após as invasões
fizeram questão de exibir aos noruegueses as filmagens do blitzkrieg sobre os polacos.
As
teorias raciais do nacional-socialismo não foram esquecidas pela sétima arte. Algumas
das mais famosas películas alemãs desta época estão directamente relacionadas
com a propaganda anti-semita. Para além do já referido Fritz Hippler e
respectivo Eterno Judeu, salienta-se
igualmente o realizador Veit Harlan e o seu Judeu
Süss. Os argumentos eram simples: a decadência moral dos judeus e a
imutabilidade das suas (horríveis) características.
O Eterno Judeu
(1940) de Fritz Hippler. A figura representada no cartaz é todo um programa
A
obra de Harlan foi vista por vinte milhões de alemães (numa população total de
setenta milhões!) e segundo alguns relatos, depois de assistirem ao filme, alguns
espectadores em estado de excitação iam pelas ruas em perseguição de judeus. A
eficácia propagandística era tal que o chefe das SS, Heinrich Himmler, obrigava
os seus membros a verem o filme.
Riefenstahl
também foi acusada de contribuir para as teorias raciais do regime através da
apologia da perfeição física presente no filme Olympia (1938), embora tenha beneficiado do facto de não ter
ocultado nas suas filmagens as vitórias de Jesse Owens, o famoso atleta
americano negro. Existem várias histórias sobre supostas discussões entre Leni
e Goebbels, com a realizadora a resistir às pressões para eliminar Owens da
edição final do filme, mas há quem defenda que este conflito nunca aconteceu,
realçando que os objectivos que os nazis pretendiam alcançar com Olympia eram claros: construir uma imagem
da Alemanha como um “país hospitaleiro, moderno, eficiente, uma nação pacífica
de desporto e benigna”.
Jesse
Owens pela lente de Riefenstahl. Esta fotografia foi vendida em 2011 pela
leiloeira Christies por 6000 dólares
Na
realidade, é bastante fácil defender a realizadora no caso concreto do trabalho
que fez sobre os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936. O filme é avançadíssimo
para a época, são usadas técnicas absolutamente inovadoras e ainda hoje a televisão
apresenta visualmente o desporto através de alguns ensinamentos de Olympia. A própria revista Time, 60 anos depois da icónica capa sobre
o fim da guerra na Europa (um Hitler riscado com um grande X vermelho), não
teve qualquer problema em incluí-lo na lista dos 100 melhores filmes de todos
os tempos.
Olympia
(1938): demasiado belo para ser boicotado
Como
observou Ian Kershaw, “com o fim de Hitler, os sinais exteriores do
nacional-socialismo também desapareceram da face da terra, aparentemente da
noite para o dia”. A “relação hipnótica, quase sensual” que Hitler criou
(palavras de Kissinger), passou a justificar muitas das cumplicidades com a
utopia revolucionária nacionalista do führer.
Uma utopia que era fundamentalmente emocional e apoiada em variados “antis”: anti-racional,
antiparlamentar, antiliberal, anti-individualista, antidemocrática,
anti-intelectual. Os crimes eram assim “vendidos” como meros actos necessários
para alcançar o bem comum e universal e seria a propaganda a tratar da “produção
de consentimento” de que nos fala Chomsky.
Os
Aliados conheciam o poder propagandístico do cinema e não parece provável que
este facto lhes tenha passado despercebido. Existe aliás um episódio do
pós-guerra em que, de uma forma deliciosamente irónica, o feitiço se vira contra
o feiticeiro: quando os soldados americanos entram no recinto de Nuremberga
destinado aos comícios nazis registados pela lente de Riefenstahl, não resistem
a gravar em filme o momento em que dinamitam a grande suástica que se erguia
por cima do palanque do orador. Essa pequena película (que pode ser hoje vista
no YouTube) constituiu uma peça de
propaganda dos Aliados e foi usada maciçamente para divulgar a vitória militar
obtida.
Para
sorte de Leni Riefenstahl, os seus indesmentíveis dotes artísticos, associados
ao “culto da beleza”, permitiram-lhe uma desnazificação sem danos de maior. Viu
o “sol aos quadradinhos” até ao final dos julgamentos, mas livrou-se da dura
realidade que a esperava caso lhe tivesse sido atribuída a prática de crimes de
guerra. Ainda conseguiu lançar um filme – Tiefland
(1954) – que tinha gravado, com recurso a prisioneiros de campos de
concentração, durante a guerra; um documentário (dos “verdadeiros”, se é que
existe essa categoria) sobre a vida subaquática; várias reportagens
fotográficas (sobre os Jogos Olímpicos de 1972; sobre tribos africanas do Sudão;
sobre recifes de corais); e um livro de memórias. Praticou mergulho desde os 70
até aos 94 anos de idade (falsificou a data de nascimento em documentos para
conseguir ter acesso a licenças especiais que lhe permitissem mergulhar a
grandes profundidades), sobreviveu a uma queda de helicóptero com 97, e morreu,
no meio de projectos para regressar a um território sudanês mergulhado na guerra
civil, com a bonita idade de 101. Que o meu fascínio fóbico pelas cobras em
geral e por Leni Riefenstahl em particular dure assim tanto tempo, é o que peço
ao Pai Natal nas festividades que se aproximam.
Sérgio
Barreto Costa
Muito bom!! Parabéns pelo texto!
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