Ricardo Araújo Pereira termina o seu recente ensaio A doença, o sofrimento e a morte entram num
bar com uma exegese provocatória: Deus não aprecia o riso. Infelizmente
para o nosso humorista, o Criador, munido da sua omnipotência (mas deixando na
gaveta a omnibenevolência), resolveu provar-lhe que há um erro na sua análise.
E foi assim que, no pináculo da efémera glória terrena, naquele exacto
fim-de-semana em que RAP lançaria o seu livro e o apresentaria de modo garboso
em jornais, televisões e espaços culturais, o Todo-Poderoso se mete com ele
presenteando-o com a única coisa com a qual o espirituoso exegeta não consegue
brincar: uma derrota do Benfica. Todos os caminhos do Senhor são misteriosos,
mas o que passou pelo Estádio dos Barreiros na última sexta-feira foi também
irónico, provocador e cruelmente humorístico. Acreditando na fórmula “comédia =
tragédia + tempo” que nos é explicada na página 23, é possível que este
episódio o faça rir no futuro, mas, naquele momento, a situação foi certamente
dramática.
Nascido em 1974, Araújo Pereira alcança com este
trabalho uma quase unanimidade que é rara no nosso país: embora não praticante,
continua a afirmar-se marxista, pelo que, em caso de deriva comunista da
“Geringonça” estará a salvo de eventuais “campos de trabalho correccional” a
instalar nas neves da Serra da Estrela; pela sua constante defesa da liberdade
de expressão e de opinião é uma figura respeitada pelos liberais (inclusive por
aqueles – a liberdade não tem preço – que perderam dinheiro com o estouro da
Portugal Telecom); a sua educação esmerada e vida familiar recatada colocam-no
numa posição confortável aos olhos dos conservadores, e ao próprio João Carlos
Espada não passará despercebida a sua atenção ao dress code; os radicais de esquerda contam com ele nas causas
fracturantes e os socialistas moderados (todos os três que restam) na defesa do
Estado Social; com o seu benfiquismo irracional garantiu há muito o carinho do
povo que vive do lado de fora do anel da VCI, mas a defesa dos taxistas e o seu
amor pela gastronomia pesada e ostensivamente heterossexual são suficientes para
que seja igualmente mimado pelos que se encontram no lado de dentro; e agora,
com este ensaio a roçar as fronteiras da obra académica, pontuado por epígrafes
em 3 línguas (incluindo o francês da intelligentsia
lusa), por reflexões existencialistas sobre o absurdo, e por um índice
remissivo com 200 entradas (182, na verdade, mas aprendi no capítulo 6 as
vantagens de “aumentar uma coisa”), coloca o pé na porta do salon onde se encontrava a
intelectualidade mais céptica. Fica a faltar Miguel Sousa Tavares, que se
converterá no dia em que Ricardo Araújo Pereira adquirir uma Beretta para ir às perdizes, e os grupos
de extrema-direita, que tenderão a desanuviar o ambiente quando descobrirem que
o humorista partilha o dia de aniversário com António de Oliveira Salazar.
Neste seu primeiro livro “a sério” RAP faz aquilo que
a maioria de nós nunca fez, que provavelmente nunca fará e que, a ser feito,
desencadearia provavelmente crises pessoais profundas ou até depressões
clínicas: debruça-se sobre o seu ganha-pão e tenta descobrir, aproximadamente,
em que consiste e para que serve. É feita uma abordagem histórica do humor
desde tempos primevos (Sócrates aparece logo nas primeiras páginas, numa clara
provocação a João Miguel Tavares), explicam-se explicadamente as teorias
explicativas (teoria da superioridade; teoria da incongruência; teoria
psicanalítica) e abordam-se através de múltiplos exemplos uma série de
definições, truques e erros a evitar. Personagens bíblicas e mitológicas,
poetas, realizadores de cinema e filósofos são apenas algumas das categorias
socioprofissionais (qual será o CAE dos Deuses?) a que o autor recorre para
demonstrar os seus pontos de vista, numa organizada (e honesta) corrente de name-dropping que transforma a famosa
entrevista das “citações a granel” (citando João Pedro George) do ex-PM Pinto
de Sousa ao Expresso numa brincadeira pueril. Nem Ruggero Leoncavallo,
compositor italiano da mesma espécie biológica híbrida do futebolista Bastian
Schweinsteiger, escapa ao olhar atento de Araújo Pereira, que o utiliza para
demonstrar o “efeito do par de cornos” na permeável ligação entre comédia e
tragédia. A esse propósito, não resisto a deixar aqui, numa espécie de
“intervalo do acto crítico”, a magistral interpretação de Pavarotti do momento
trágico em que Canio descobre a infidelidade da sua mulher e deixa de ter
vontade de brincar com esse tema, que julgava divertido, e que entretanto se
tornou sério. Nunca o teatro lírico terá sido tão feliz na tradução musical da
célebre “pimenta no cú dos outros”.
Ricardo Araújo Pereira pega na ópera Os Palhaços para nos demonstrar a
veracidade de uma segunda equação fundamental destas andanças (comédia =
tragédia + distância que vai de mim a outro), e não abandona a matemática antes
de nos presentear com uma terceira, já no âmbito da patologia mental: comédia =
tragédia + distância que vai de nós a nós mesmos. A despersonalização, esse
transtorno dissociativo de que nos falam os psiquiatras e que costuma afectar
quem sofre um ataque de pânico, é, para RAP, um dos métodos para alcançar o
ponto de vista humorístico. Obviamente que não nos é sugerida directamente uma
entrada voluntária no inferno dos distúrbios psíquicos, mas o relato dos
efeitos positivos de nos tentarmos transformar em “observadores externos”
daquilo que nos acontece, faz-nos pensar duas vezes. Não por acaso, na opinião
do autor, humoristas, crianças e loucos partilham muitas vezes o miradouro a
partir do qual observam o mundo.
No último capítulo do livro, tal como já foi referido,
Araújo Pereira atira-se à Bíblia (com indisfarçável carinho, note-se),
servindo-se da palavra sagrada para sustentar a sua tese: é o riso que nos
distingue de Deus e dos animais, e isso deve-se à consciência que temos da
nossa própria extinção; os animais não riem porque desconhecem que vão morrer,
e Deus não ri porque sabe que é eterno. Já o caso da minha filha, que com 21
meses se ri como uma perdida sem fazer ideia da finitude da existência, fica
para abordar numa próxima edição alargada. E se é verdade que a ironia (abordada
na página 47 desta “espécie de manual”) não tem necessariamente de satisfazer
um propósito específico, a que acabei maldosamente de lançar tem um. O ensaio A doença, o sofrimento e a morte entram num
bar é delicioso mas sabe a pouco! Há por aí muitos livros com 300 páginas
em que desisto à centésima; este tem 100 e eu desejaria prosseguir até à
trecentésima. Claro que o posso ler três vezes (e talvez o faça), mas não é a
mesma coisa. O propósito é por isso este: fica claro com a leitura deste
trabalho que o autor, ultrapassada a indispensável batalha com a preguiça e com
a baixa autoestima, tem as competências necessárias para o aprofundar
substancialmente. Que seja constantemente provocado até o fazer é o meu desejo.
A questão da baixa autoestima tem sido descrita em
entrevistas recentes pelo escritor (é oficial que já o podemos tratar assim)
como um dos segredos do seu sucesso. Tendo pouca fé em aptidões inatas e muitas
dúvidas sobre si próprio, aposta no trabalho árduo para reduzir as ansiedades.
Sobre esta confissão, três comentários: primeiro, era expectável que tantas
horas de convívio com Pedro Mexia acabassem por produzir efeitos secundários
deste tipo; depois, quase todas as pessoas assombrosamente talentosas se
debatem com problemas de confiança e de excesso de modéstia (eu próprio sofro
muito); por fim, e graças a Deus, podemos sempre contar com a inestimável ajuda
do Professor Joaquim Furtwangler, o reputado terapeuta luso-austríaco
especialista nestes casos (basta colocar o nome no Google para obter os contactos).
Nesta época de fanatismos, em que se discutem
regularmente os limites do humor, quais são, afinal, para RAP, os temas que
devemos salvaguardar do riso? A resposta presente neste livro é clara: nenhum.
Como “o riso subverte o medo” e permite “lidar melhor com a aspereza do mundo”,
é de todo aconselhável que seja utilizado em todas as circunstâncias. Araújo
Pereira seria por isso (e pelo que já lhe ouvimos nos últimos 12 anos) um bom
candidato a conseguir atingir, talvez pela primeira vez no percurso da
humanidade, o sonho de Jacques, o
Fatalista: livrar-se de todas as preocupações e de todos os medos através
da troça sistemática sobre tudo. Na verdade, e infelizmente para o próprio,
parece claro que tal plenitude não será nunca alcançada pelo autor. Mas não
fora o nascimento das suas duas filhas e do Sr. Cosme Damião e poderíamos estar
na presença de uma figura histórica.
Sérgio
Barreto Costa
sbcosta13@gmail.com
Impressionante como uma curta palavra destruiu este post. Não há "cú" para manteigueiros ;)
ResponderEliminarO "cu" assenta-se, mas não leva acento. Sem ser isso, viva o RAP.
ResponderEliminar