quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

A doença, o sofrimento, a morte e uma derrota do Benfica entram num bar.

 
 
 
 

 
Ricardo Araújo Pereira termina o seu recente ensaio A doença, o sofrimento e a morte entram num bar com uma exegese provocatória: Deus não aprecia o riso. Infelizmente para o nosso humorista, o Criador, munido da sua omnipotência (mas deixando na gaveta a omnibenevolência), resolveu provar-lhe que há um erro na sua análise. E foi assim que, no pináculo da efémera glória terrena, naquele exacto fim-de-semana em que RAP lançaria o seu livro e o apresentaria de modo garboso em jornais, televisões e espaços culturais, o Todo-Poderoso se mete com ele presenteando-o com a única coisa com a qual o espirituoso exegeta não consegue brincar: uma derrota do Benfica. Todos os caminhos do Senhor são misteriosos, mas o que passou pelo Estádio dos Barreiros na última sexta-feira foi também irónico, provocador e cruelmente humorístico. Acreditando na fórmula “comédia = tragédia + tempo” que nos é explicada na página 23, é possível que este episódio o faça rir no futuro, mas, naquele momento, a situação foi certamente dramática.   
Nascido em 1974, Araújo Pereira alcança com este trabalho uma quase unanimidade que é rara no nosso país: embora não praticante, continua a afirmar-se marxista, pelo que, em caso de deriva comunista da “Geringonça” estará a salvo de eventuais “campos de trabalho correccional” a instalar nas neves da Serra da Estrela; pela sua constante defesa da liberdade de expressão e de opinião é uma figura respeitada pelos liberais (inclusive por aqueles – a liberdade não tem preço – que perderam dinheiro com o estouro da Portugal Telecom); a sua educação esmerada e vida familiar recatada colocam-no numa posição confortável aos olhos dos conservadores, e ao próprio João Carlos Espada não passará despercebida a sua atenção ao dress code; os radicais de esquerda contam com ele nas causas fracturantes e os socialistas moderados (todos os três que restam) na defesa do Estado Social; com o seu benfiquismo irracional garantiu há muito o carinho do povo que vive do lado de fora do anel da VCI, mas a defesa dos taxistas e o seu amor pela gastronomia pesada e ostensivamente heterossexual são suficientes para que seja igualmente mimado pelos que se encontram no lado de dentro; e agora, com este ensaio a roçar as fronteiras da obra académica, pontuado por epígrafes em 3 línguas (incluindo o francês da intelligentsia lusa), por reflexões existencialistas sobre o absurdo, e por um índice remissivo com 200 entradas (182, na verdade, mas aprendi no capítulo 6 as vantagens de “aumentar uma coisa”), coloca o pé na porta do salon onde se encontrava a intelectualidade mais céptica. Fica a faltar Miguel Sousa Tavares, que se converterá no dia em que Ricardo Araújo Pereira adquirir uma Beretta para ir às perdizes, e os grupos de extrema-direita, que tenderão a desanuviar o ambiente quando descobrirem que o humorista partilha o dia de aniversário com António de Oliveira Salazar.
Neste seu primeiro livro “a sério” RAP faz aquilo que a maioria de nós nunca fez, que provavelmente nunca fará e que, a ser feito, desencadearia provavelmente crises pessoais profundas ou até depressões clínicas: debruça-se sobre o seu ganha-pão e tenta descobrir, aproximadamente, em que consiste e para que serve. É feita uma abordagem histórica do humor desde tempos primevos (Sócrates aparece logo nas primeiras páginas, numa clara provocação a João Miguel Tavares), explicam-se explicadamente as teorias explicativas (teoria da superioridade; teoria da incongruência; teoria psicanalítica) e abordam-se através de múltiplos exemplos uma série de definições, truques e erros a evitar. Personagens bíblicas e mitológicas, poetas, realizadores de cinema e filósofos são apenas algumas das categorias socioprofissionais (qual será o CAE dos Deuses?) a que o autor recorre para demonstrar os seus pontos de vista, numa organizada (e honesta) corrente de name-dropping que transforma a famosa entrevista das “citações a granel” (citando João Pedro George) do ex-PM Pinto de Sousa ao Expresso numa brincadeira pueril. Nem Ruggero Leoncavallo, compositor italiano da mesma espécie biológica híbrida do futebolista Bastian Schweinsteiger, escapa ao olhar atento de Araújo Pereira, que o utiliza para demonstrar o “efeito do par de cornos” na permeável ligação entre comédia e tragédia. A esse propósito, não resisto a deixar aqui, numa espécie de “intervalo do acto crítico”, a magistral interpretação de Pavarotti do momento trágico em que Canio descobre a infidelidade da sua mulher e deixa de ter vontade de brincar com esse tema, que julgava divertido, e que entretanto se tornou sério. Nunca o teatro lírico terá sido tão feliz na tradução musical da célebre “pimenta no cú dos outros”.

 

 
 

 
 
 
 
Ricardo Araújo Pereira pega na ópera Os Palhaços para nos demonstrar a veracidade de uma segunda equação fundamental destas andanças (comédia = tragédia + distância que vai de mim a outro), e não abandona a matemática antes de nos presentear com uma terceira, já no âmbito da patologia mental: comédia = tragédia + distância que vai de nós a nós mesmos. A despersonalização, esse transtorno dissociativo de que nos falam os psiquiatras e que costuma afectar quem sofre um ataque de pânico, é, para RAP, um dos métodos para alcançar o ponto de vista humorístico. Obviamente que não nos é sugerida directamente uma entrada voluntária no inferno dos distúrbios psíquicos, mas o relato dos efeitos positivos de nos tentarmos transformar em “observadores externos” daquilo que nos acontece, faz-nos pensar duas vezes. Não por acaso, na opinião do autor, humoristas, crianças e loucos partilham muitas vezes o miradouro a partir do qual observam o mundo.    
No último capítulo do livro, tal como já foi referido, Araújo Pereira atira-se à Bíblia (com indisfarçável carinho, note-se), servindo-se da palavra sagrada para sustentar a sua tese: é o riso que nos distingue de Deus e dos animais, e isso deve-se à consciência que temos da nossa própria extinção; os animais não riem porque desconhecem que vão morrer, e Deus não ri porque sabe que é eterno. Já o caso da minha filha, que com 21 meses se ri como uma perdida sem fazer ideia da finitude da existência, fica para abordar numa próxima edição alargada. E se é verdade que a ironia (abordada na página 47 desta “espécie de manual”) não tem necessariamente de satisfazer um propósito específico, a que acabei maldosamente de lançar tem um. O ensaio A doença, o sofrimento e a morte entram num bar é delicioso mas sabe a pouco! Há por aí muitos livros com 300 páginas em que desisto à centésima; este tem 100 e eu desejaria prosseguir até à trecentésima. Claro que o posso ler três vezes (e talvez o faça), mas não é a mesma coisa. O propósito é por isso este: fica claro com a leitura deste trabalho que o autor, ultrapassada a indispensável batalha com a preguiça e com a baixa autoestima, tem as competências necessárias para o aprofundar substancialmente. Que seja constantemente provocado até o fazer é o meu desejo.
A questão da baixa autoestima tem sido descrita em entrevistas recentes pelo escritor (é oficial que já o podemos tratar assim) como um dos segredos do seu sucesso. Tendo pouca fé em aptidões inatas e muitas dúvidas sobre si próprio, aposta no trabalho árduo para reduzir as ansiedades. Sobre esta confissão, três comentários: primeiro, era expectável que tantas horas de convívio com Pedro Mexia acabassem por produzir efeitos secundários deste tipo; depois, quase todas as pessoas assombrosamente talentosas se debatem com problemas de confiança e de excesso de modéstia (eu próprio sofro muito); por fim, e graças a Deus, podemos sempre contar com a inestimável ajuda do Professor Joaquim Furtwangler, o reputado terapeuta luso-austríaco especialista nestes casos (basta colocar o nome no Google para obter os contactos).
Nesta época de fanatismos, em que se discutem regularmente os limites do humor, quais são, afinal, para RAP, os temas que devemos salvaguardar do riso? A resposta presente neste livro é clara: nenhum. Como “o riso subverte o medo” e permite “lidar melhor com a aspereza do mundo”, é de todo aconselhável que seja utilizado em todas as circunstâncias. Araújo Pereira seria por isso (e pelo que já lhe ouvimos nos últimos 12 anos) um bom candidato a conseguir atingir, talvez pela primeira vez no percurso da humanidade, o sonho de Jacques, o Fatalista: livrar-se de todas as preocupações e de todos os medos através da troça sistemática sobre tudo. Na verdade, e infelizmente para o próprio, parece claro que tal plenitude não será nunca alcançada pelo autor. Mas não fora o nascimento das suas duas filhas e do Sr. Cosme Damião e poderíamos estar na presença de uma figura histórica.   
 
Sérgio Barreto Costa
sbcosta13@gmail.com
 

2 comentários:

  1. Impressionante como uma curta palavra destruiu este post. Não há "cú" para manteigueiros ;)

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  2. O "cu" assenta-se, mas não leva acento. Sem ser isso, viva o RAP.

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