Uma das delícias do tempo de Natal são os textos contra o consumismo
desenfreado desta sociedade materialista em que vivemos. Escritos por quem tem
tudo o que quer e que reduz o consumismo àquilo de que não gosta, diatribes na
ressaca de terem de ter ido ao Colombo porque no Chiado já não havia as
cápsulas para a Nespresso, e aproveitou-se para comprar um presente que
faltava, já que se estava ali, é que já não dava para encomendar pela Amazon,
não ia chegar a tempo, uma chatice, e se viu devorado por uma horda de gente com
sacos, que horror aquela gente toda ali no domingo a fazer compras de coisas
que não precisa, a gastar imenso dinheiro, tudo a crédito só pode ser, já têm a
casa atafulhada de tarecos, a minha empregada até um plasma na casa de banho
tem e nós a mesma televisão há mais de dez anos. Ou, horror pior ainda, aquela
gente toda no Chiado. Turistas até, daqueles que roubam os bairros históricos e
o centro das cidades aos lisboetas, o terramoto, a cidade como parque temático.
Claro que nem todos os que criticam o consumismo de Natal o fazem por
povofobia. Há muitos que é mesmo por uma questão de puro bom gosto. Regrados e
contidos no gastar, porque tantas vezes a pergaminhos cheios correspondem
contas vazias, fazem da necessidade ideologia e estética, a vida simples de
quem não tem outro remédio senão ser remediado, vai aqui uma lembrança
simbólica, que nós na nossa família não somos dos de gastar no Natal, as
pessoas realmente ficam loucas com isto das compras, tem muito mais significado
este bugalho pintado com verniz das unhas para dar cheiro à roupa numa gaveta,
porque quem realmente se preocupa com os outros faz com a sua criatividade, até
pode ser em família, com os miúdos, o máximo.
Também há, claro, a crítica fácil à comida a mais, doces que nem chegaram a
ser abertos, travessas de bacalhau que mal lhes tocaram, e hoje já ninguém
gosta do bacalhau, mais vale fazer-se para a próxima o dobro do arroz de pato.
Fazer-se, que é como quem diz encomendar, que hoje cada vez se faz menos,
porque as pessoas andam muito atarefadas. Para não dar trabalho, o melhor é ir
fora, ou viajar, cada vez mais gente viaja no Natal.
Sabemos que o Natal não são coisas, que a verdade da espera do Advento não
se mede em pacotes junto da árvore de Natal, e que o nascimento do Senhor é
mais bem rezado com a Xbox desligada. Mas vamos por um momento admitir que há
um conjunto de pessoas que esperou pelo Natal para comprar o que lhes apetece,
fazendo-se a si felizes, e àqueles a quem vão dar os ténis. A compra de uma
sweartshirt de marca (Element, por exemplo) para um adolescente é um ato de
realização e transmissão da felicidade não menos digno do que a leitura de um
romance (Ferrante, por exemplo). Vamos até admitir que para muita gente um
centro comercial, um grande armazém de roupa, é um lugar mais organizado e mais
cómodo do que as suas casas. Vamos por um segundo pôr a hipótese de ser o
domingo o único tempo que têm livre para, juntos, estarem nas compras.
Curiosamente, as personagens que figuram no quadro dos horrores do consumismo
compram em bando, recusando a compra solitária, deprimente, despachada, o que
ainda encanita mais os puristas do Natal.
Claro que aquilo que nos devia contentar, no plano do dever-ser, era uma
vida virtuosa, que fazer o bem devia bastar, que não é preciso comer manteiga
de amendoim, havendo pão. É, a gente sabe isso tudo. Mas também sabe que a
praia com as pessoas vestidas e o vinho sem álcool não seriam a mesma coisa.
Entre diamantes e legos no Natal vai um mar de decência.
A impossibilidade de nos pormos na pele do outro, de percebermos o que é
semelhante, mas sobretudo o que é diferente, são também formas de negar a
essência Natal, precisamente pelos seus maiores aiatolas. E assim vamos sendo
mais empurrados para um não-Natal, sem luzes com o Menino Jesus, para não
ofender, sem presentes, porque isso é consumismo, uma coisa assim que não
ficará na memória de ninguém, mas que será quando um homem quiser, ou seja,
nunca porque sempre. Já é tarde e ainda me falta comprar umas prendas. Mas a
última coisa que me apetecia era ir agora meter-me no Colombo.
João Taborda da Gama
(publicado originalmente no Diário de Notícias, aqui;
reproduzido no Malomil graças à autorização do João: obrigado!)
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