sábado, 17 de dezembro de 2016

Amália, Camões e Pessoa.

 
 

        
 
      Certo dia, após o almoço em casa do Dr. Seabra Veiga, médico e Cônsul Honorário de Portugal no Estado de Connecticut,  a Amália, a convalescer de uma operação, propôs-me um breve passeio pelo jardim, sob o pretexto de ter uma conversa a sós comigo.
         Cruzado o alpendre, com o seu belo caramanchão, disse-me que tinha visto uns escritos meus na biblioteca da casa do Adriano e da Rita e que, por curiosidade, se pusera a folheá-los. Que, de entre eles, lhe prenderam especialmente a atenção umas separatas minhas sobre a poesia de Camões e o meu livro sobre Pessoa: O “olhar esfíngico” da Mensagem de Pessoa. E, uma vez que eu conhecia a poesia desses dois grandes poetas portugueses – continuou ela –, gostava que a esclarecesse sobre uma questão que muito a intrigava. É que ela, que sempre adorara ler poesia e falar de poesia com os poetas e com as pessoas especializadas nela, e que lera e relera muitas poesias desses dois poetas, chegava sempre à mesma conclusão: que, ao passo que ao ler os poemas de Camões sentia sempre o desejo de ver alguns deles postos em música para os cantar não só para ela, mas também para os outros, com os poemas de Pessoa isso nunca acontecia. Que às vezes até ficava envergonhada, pois tinha alguns amigos que punham Pessoa nos píncaros da lua e que gostariam que ela cantasse as suas poesias. Porque seria isso? Poderia eu, como professor de literatura e especialista na poesia desses dois grandes poetas (palavras da Amália), explicar-lhe esse fenómeno? Que não: que naquele momento não podia, tive de admitir com toda a humildade e sinceridade. Que havia de debruçar-me sobre esse assunto, indo reler as artes poéticas desde a mais longínqua antiguidade até à actualidade, atendo-me na ocasião a opinar, atabalhoadamente, que, ao passo que Camões escreveu a sua poesia numa época em que havia regras muito precisas sobre esquemas estróficos, rítmicos e rímicos, e sobre o valor e o uso de vogais breves e de vogais longas e sobre fenómenos fónicos, indo de mãos dadas, na poesia dos verdadeiros poetas, o sentido das palavras e a música que o veiculava, Fernando Pessoa, por sua vez, conhecedor embora como poucos das artes poéticas de todos os tempos, ao escrever a sua poesia, tomava as liberdades que muitos dos seus contemporâneos, autores de artes poéticas, de carácter informal, um pouco por todo o mundo ocidental, advogavam, artes poéticas normalmente feitas sem o rigor e a precisão matemática das da antiguidade clássica e do Renascimento, época em que Camões vivera e poetara – repeti eu.
Dito o quê, calei-me para não me espalhar mais, reconhecendo que, se continuasse a divagar, nada mais faria senão atirar para o ar com palavras vãs, palavras sem lógica e sem sentido para quem as proferia, e, por maioria de razão, para quem as ouvia. 
         Mas como notei que a Amália esperava que eu continuasse a perorar, mesmo sem ordem e sem nexo, respirei fundo e lá me afoitei a dizer que, entre os gregos, por exemplo, desde Homero a Ésquilo, a poesia e o canto andavam de mãos dadas. Os chamados rapsodos cantavam nas praças públicas os versos da Ilíada e da Odisseia e os corifeus e os coros das tragédias de Ésquilo e de outros dramaturgos cantavam no teatro os seus versos. E que os grandes poetas latinos procediam da mesma maneira. E exemplifiquei a afirmação referente aos poetas latinos com o poeta menor e autor de uma breve arte poética, o português Miguel Sanches de Lima, o qual, em fins do século XVI, conta que Virgílio, ao compor a sua Eneida, ia cantando os versos à medida que os ia escrevendo. E exemplifiquei também com o que tinha acontecido recentemente, no decorrer de um almoço realizado em Lisboa entre a Ana Hatherly, Perfecto Cuadrado, Fernando Martinho e esposa, Joana Martinho, e o abaixo-assinado. A determinado momento, o professor de literatura da Universitat des Illes Balears contou-nos que o seu professor de Grego obrigava os alunos a ler a poesia grega, como se estivessem a cantar. E, para nosso gáudio e edificação, recitou cantando magistralmente várias passagens dos poemas homéricos.
Como notei que a Amália continuava interessada em me ouvir disparatar, acrescentei que, durante a Idade Média, depois de um hiato de vários séculos, se reatou a tradição da velha Grécia, com o advento dos trovadores e dos jograis que cantavam nas casas dos nobres e nas praças públicas as poesias escritas pelos trovadores e outros poetas, entre os quais se contou o maior e mais famoso de todos, Marie de France, cujos poemas, chamados lais, que significam chansons, eram cantados pelos trovadores e pelos jograis. E, como oriundo de Portugal e raiano, não resisti a juntar a Marie de France os nomes célebres do jogral galego Martin Codax e do Rei Dom Dinis de Portugal, referindo o Códice Martin Codax e o Pergaminho Sharrer, tendo sido este último descoberto no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em 1990, pelo meu colega e amigo Harvey Sharrer. E no Renascimento – prossegui eu, manteve-se a tradição, como claramente se deduz, por exemplo, do nome que se dava a certas composições poéticas: cantigas, canções, odes e sonetos, composições cantadas com o acompanhamento da lira e do alaúde.
          E proferidas estas últimas palavras, calei-me de vez, ciente de que, se eu não me entendia a mim mesmo, muito menos podia ser entendido da Amália.  
         Conclusão: firmemente convencido das minhas limitações neste momentoso campo do conúbio ou divórcio entre a poesia e a música, essa intrigante e legítima questão levantada pela cantora única e genial, que era e foi a Amália Rodrigues, deposito-a, mutatis mutandis, respeitosa e humildemente, nas mãos dos “sábios da escritura” de que fala Camões em Os Lusíadas (Canto V, 22), a propósito da tromba marítima, a fim de que eles a deslindem a contento dos interessados.                        
                                
 
 
António Cirurgião

1 comentário:

  1. Que coisa sensacional. Maravilha de texto. E como ela foi atacada por cantar Camões... até pelos "inteligentes" deste país. Notável testemunho.

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