Certo dia, após o almoço em casa do Dr.
Seabra Veiga, médico e Cônsul Honorário de Portugal no Estado de
Connecticut, a Amália, a convalescer de
uma operação, propôs-me um breve passeio pelo jardim, sob o pretexto de ter uma
conversa a sós comigo.
Cruzado o alpendre, com o seu belo
caramanchão, disse-me que tinha visto uns escritos meus na biblioteca da casa
do Adriano e da Rita e que, por curiosidade, se pusera a folheá-los. Que, de
entre eles, lhe prenderam especialmente a atenção umas separatas minhas sobre a
poesia de Camões e o meu livro sobre Pessoa: O “olhar esfíngico” da Mensagem de Pessoa. E, uma vez que eu
conhecia a poesia desses dois grandes poetas portugueses – continuou ela –,
gostava que a esclarecesse sobre uma questão que muito a intrigava. É que ela,
que sempre adorara ler poesia e falar de poesia com os poetas e com as pessoas
especializadas nela, e que lera e relera muitas poesias desses dois poetas,
chegava sempre à mesma conclusão: que, ao passo que ao ler os poemas de Camões
sentia sempre o desejo de ver alguns deles postos em música para os cantar não
só para ela, mas também para os outros, com os poemas de Pessoa isso nunca
acontecia. Que às vezes até ficava envergonhada, pois tinha alguns amigos que punham
Pessoa nos píncaros da lua e que gostariam que ela cantasse as suas poesias.
Porque seria isso? Poderia eu, como professor de literatura e especialista na
poesia desses dois grandes poetas (palavras da Amália), explicar-lhe esse
fenómeno? Que não: que naquele momento não podia, tive de admitir com toda a
humildade e sinceridade. Que havia de debruçar-me sobre esse assunto, indo
reler as artes poéticas desde a mais longínqua antiguidade até à actualidade,
atendo-me na ocasião a opinar, atabalhoadamente, que, ao passo que Camões
escreveu a sua poesia numa época em que havia regras muito precisas sobre
esquemas estróficos, rítmicos e rímicos, e sobre o valor e o uso de vogais
breves e de vogais longas e sobre fenómenos fónicos, indo de mãos dadas, na
poesia dos verdadeiros poetas, o sentido das palavras e a música que o
veiculava, Fernando Pessoa, por sua vez, conhecedor embora como poucos das
artes poéticas de todos os tempos, ao escrever a sua poesia, tomava as
liberdades que muitos dos seus contemporâneos, autores de artes poéticas, de
carácter informal, um pouco por todo o mundo ocidental, advogavam, artes
poéticas normalmente feitas sem o rigor e a precisão matemática das da
antiguidade clássica e do Renascimento, época em que Camões vivera e poetara –
repeti eu.
Dito
o quê, calei-me para não me espalhar mais, reconhecendo que, se continuasse a
divagar, nada mais faria senão atirar para o ar com palavras vãs, palavras sem
lógica e sem sentido para quem as proferia, e, por maioria de razão, para quem
as ouvia.
Mas como notei que a Amália esperava
que eu continuasse a perorar, mesmo sem ordem e sem nexo, respirei fundo e lá
me afoitei a dizer que, entre os gregos, por exemplo, desde Homero a Ésquilo, a
poesia e o canto andavam de mãos dadas. Os chamados rapsodos cantavam nas
praças públicas os versos da Ilíada e
da Odisseia e os corifeus e os coros
das tragédias de Ésquilo e de outros dramaturgos cantavam no teatro os seus
versos. E que os grandes poetas latinos procediam da mesma maneira. E
exemplifiquei a afirmação referente aos poetas latinos com o poeta menor e
autor de uma breve arte poética, o português Miguel Sanches de Lima, o qual, em
fins do século XVI, conta que Virgílio, ao compor a sua Eneida, ia cantando os versos à medida que os ia escrevendo. E
exemplifiquei também com o que tinha acontecido recentemente, no decorrer de um
almoço realizado em Lisboa entre a Ana Hatherly, Perfecto Cuadrado, Fernando
Martinho e esposa, Joana Martinho, e o abaixo-assinado. A determinado momento,
o professor de literatura da Universitat des Illes Balears contou-nos que o seu
professor de Grego obrigava os alunos a ler a poesia grega, como se estivessem
a cantar. E, para nosso gáudio e edificação, recitou cantando magistralmente
várias passagens dos poemas homéricos.
Como
notei que a Amália continuava interessada em me ouvir disparatar, acrescentei
que, durante a Idade Média, depois de um hiato de vários séculos, se reatou a
tradição da velha Grécia, com o advento dos trovadores e dos jograis que
cantavam nas casas dos nobres e nas praças públicas as poesias escritas pelos
trovadores e outros poetas, entre os quais se contou o maior e mais famoso de
todos, Marie de France, cujos poemas, chamados lais, que significam chansons,
eram cantados pelos trovadores e pelos jograis. E, como oriundo de Portugal e
raiano, não resisti a juntar a Marie de France os nomes célebres do jogral
galego Martin Codax e do Rei Dom Dinis de Portugal, referindo o Códice Martin Codax
e o Pergaminho Sharrer, tendo sido este último descoberto no Arquivo Nacional
da Torre do Tombo, em 1990, pelo meu colega e amigo Harvey Sharrer. E no
Renascimento – prossegui eu, manteve-se a tradição, como claramente se deduz,
por exemplo, do nome que se dava a certas composições poéticas: cantigas,
canções, odes e sonetos, composições cantadas com o acompanhamento da lira e do
alaúde.
E proferidas estas últimas palavras,
calei-me de vez, ciente de que, se eu não me entendia a mim mesmo, muito menos
podia ser entendido da Amália.
Conclusão: firmemente convencido das
minhas limitações neste momentoso campo do conúbio ou divórcio entre a poesia e
a música, essa intrigante e legítima questão levantada pela cantora única e
genial, que era e foi a Amália Rodrigues, deposito-a, mutatis mutandis, respeitosa e humildemente, nas mãos dos “sábios
da escritura” de que fala Camões em Os
Lusíadas (Canto V, 22), a propósito da tromba marítima, a fim de que eles a
deslindem a contento dos interessados.
António
Cirurgião
Que coisa sensacional. Maravilha de texto. E como ela foi atacada por cantar Camões... até pelos "inteligentes" deste país. Notável testemunho.
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