terça-feira, 4 de junho de 2013

Moçambique: notas de campo (7).














A morte, a morte, a morte. Ontem, hoje, amanhã. Nota quotidiana dos subúrbios de uma das cidades moçambicanas, a Beira. As pessoas nascem, crescem, vivem no meio de entes que acabam de perder a vida, como dizem. Hoje de manhã atravessava o Segundo Bairro de Chipangara/Nhamudima, e uma multidão olhava na direcção de um pequeno descampado onde, ocultado por árvores e estacas, estava um homem que pôs a corda, isto é, enforcou-se. A polícia não tinha chegado. Em jeito de procissão as pessoas, acumuladas na estrada, seguiam por carreiros de uma machamba (horta) de alfaces para verem o rosto da morte uns metros à frente. Voltavam do destino com a mesma face tranquila com que tinham ido. Não tive disponibilidade para sair da estrada. Ouvir uns quantos comentários bastou-me. Era um homem do bairro, na casa dos cinquenta anos, com uma namorada nova daqui perto, cuja esposa legítima falecera ontem no Hospital Central da Beira e irá ser enterrada esta tarde. Episódio, como outros por aqui, em que os cadáveres se acumulam. Ontem, num outro bairro de gente pobre, Praia Nova, o primeiro indivíduo que abordei não tinha disponibilidade para conversar por haver um falecimento na sua família. Tinha perdido a vida a sua cunhada, mulher do dono da casa onde o encontrei. Ao que me informou, nesses momentos dolorosos as famílias naquele bairro colocam à porta de casa um banco com um prato por cima. Dentro deste estava uma folha arrancada de um caderno onde se desenhou uma cruz. O papel estava preso por uma pedra para não ser levado pelo vento. Disse-me: É um sinal para as pessoas saberem que aqui há falecimento. Se quiserem contribuir, por exemplo, com cem meticais, deixam aí. Poucas casas adiante, encontrei o meu entrevistado de ontem. Jovem de vinte e sete anos, fiquei a saber que a sua mulher perdeu a vida há cerca de um ano. Teve febres. Diz ter sido malária. Hospitalizada, terá levado soro, primeiro, e transfusões de sangue, depois. Ao fim de duas semanas não resistiu mais. A mulher tinha vinte e três anos. Viveram juntos um ano. Agora, o filho dessa relação está com a avó, a mãe dele (o seu pai também já perdeu a vida), na zona rural de onde é originário, no distrito de Gondola, aqui na província de Sofala. De momento, vive solitário numa dependência exígua alugada por oitocentos meticais por mês (é guarda e ganha três mil e oitocentos meticais, à volta de cem euros), mas sem pressas de voltar a ter mulher. Na casa onde estou hospedado, a empregada faltou ontem e acaba de se justificar: Tive falecimento em casa. Morreu o filho da minha sobrinha. Estava bem, a brincar aí no quintal, e de repentemente faleceu. Amanhã de manhã voltarei a cruzar-me com a morte nestes caminhos suburbanos. A companhia de um Edgar Morin faz muita falta.
 
 
Gabriel Mithá Ribeiro



3 comentários:

  1. Caro António Araújo
    Peço desculpa por uma imprecisão. Onde está «na casa dos trinta anos» passa a «cinquenta anos». Vi agora nas notícias. Por outro lado, nesta mesma cidade da Beira e num dos bairros onde tenho andado, o Esturro, foram «apanhados» pela população hoje seis indivíduos que assaltavam uma residência durante o dia. Dois foram linchados. Um morreu e outro está com queimaduras graves. A polícia repetiu o ritual contra uma justiça popular que se arrasta pelo menos desde 2005-2006. Tenho uma ou outra peça áudio sobre o assunto. Assim que tivermos condições técnicas, a ver se o MALOMIL as passa. Amanhã tentarei ir ao bairro do Esturro.
    Cumprimentos,
    Gabriel Mithá Ribeiro

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Viva, Gabriel,

      Muito obrigado pela mensagem. É curioso comunicarmos desta forma... Já fiz a correcção e o MALOMIL aguarda notícias da Beira!

      Um abraço,
      António Araújo



      Eliminar
    2. Obrigado, António, e obrigado pela paciência. Reagi enquanto ouvia as notícias que me amarraram a uma dose de comoção moral que, por aqui, não se nota por aí além face ao que vai ocorrendo. Não tenho o direito nem o dever de julgar, mas apenas de tentar compreender esta sociedade e os seus fenómenos, sempre complexos. Como diria Freud, sempre entre o manifesto e o latente, e interessa-me sobretudo o último, o recalcado, o que está para além do óbvio. Por isso mesmo, quanto mais perto dos linchamentos e das mortes, menos deveria permitir-me soltar emoções num dia como hoje, «cheio».
      Um grande abraço,
      Gabriel Mithá Ribeiro

      Eliminar