A
morte, a morte, a morte. Ontem, hoje, amanhã. Nota quotidiana dos subúrbios de
uma das cidades moçambicanas, a Beira. As pessoas nascem, crescem, vivem no
meio de entes que acabam de perder a vida, como dizem. Hoje de manhã
atravessava o Segundo Bairro de Chipangara/Nhamudima, e uma multidão olhava na direcção de um
pequeno descampado onde, ocultado por árvores e estacas, estava um homem que pôs
a corda, isto é, enforcou-se. A polícia não tinha chegado. Em jeito de procissão
as pessoas, acumuladas na estrada, seguiam por carreiros de uma machamba
(horta) de alfaces para verem o rosto da morte uns metros à frente. Voltavam do
destino com a mesma face tranquila com que tinham ido. Não tive disponibilidade
para sair da estrada. Ouvir uns quantos comentários bastou-me. Era um homem do
bairro, na casa dos cinquenta anos, com uma namorada nova daqui perto, cuja
esposa legítima falecera ontem no Hospital Central da Beira e irá ser enterrada
esta tarde. Episódio, como outros por aqui, em que os cadáveres se acumulam.
Ontem, num outro bairro de gente pobre, Praia Nova, o primeiro indivíduo que
abordei não tinha disponibilidade para conversar por haver um falecimento na
sua família. Tinha perdido a vida a sua cunhada, mulher do dono da casa
onde o encontrei. Ao que me informou, nesses momentos dolorosos as famílias
naquele bairro colocam à porta de casa um banco com um prato por cima. Dentro
deste estava uma folha arrancada de um caderno onde se desenhou uma cruz. O
papel estava preso por uma pedra para não ser levado pelo vento. Disse-me: É
um sinal para as pessoas saberem que aqui há falecimento. Se quiserem
contribuir, por exemplo, com cem meticais, deixam aí. Poucas casas adiante,
encontrei o meu entrevistado de ontem. Jovem de vinte e sete anos, fiquei a
saber que a sua mulher perdeu a vida há cerca de um ano. Teve febres.
Diz ter sido malária. Hospitalizada, terá levado soro, primeiro, e transfusões
de sangue, depois. Ao fim de duas semanas não resistiu mais. A mulher tinha
vinte e três anos. Viveram juntos um ano. Agora, o filho dessa relação está com
a avó, a mãe dele (o seu pai também já perdeu a vida), na zona rural de
onde é originário, no distrito de Gondola, aqui na província de Sofala. De
momento, vive solitário numa dependência exígua alugada por oitocentos meticais
por mês (é guarda e ganha três mil e oitocentos meticais, à volta de cem
euros), mas sem pressas de voltar a ter mulher. Na casa onde estou
hospedado, a empregada faltou ontem e acaba de se justificar: Tive falecimento
em casa. Morreu o filho da minha sobrinha. Estava bem, a brincar aí no quintal,
e de repentemente faleceu. Amanhã de manhã voltarei a cruzar-me com a morte
nestes caminhos suburbanos. A companhia de um Edgar Morin faz muita falta.
Gabriel Mithá Ribeiro
Caro António Araújo
ResponderEliminarPeço desculpa por uma imprecisão. Onde está «na casa dos trinta anos» passa a «cinquenta anos». Vi agora nas notícias. Por outro lado, nesta mesma cidade da Beira e num dos bairros onde tenho andado, o Esturro, foram «apanhados» pela população hoje seis indivíduos que assaltavam uma residência durante o dia. Dois foram linchados. Um morreu e outro está com queimaduras graves. A polícia repetiu o ritual contra uma justiça popular que se arrasta pelo menos desde 2005-2006. Tenho uma ou outra peça áudio sobre o assunto. Assim que tivermos condições técnicas, a ver se o MALOMIL as passa. Amanhã tentarei ir ao bairro do Esturro.
Cumprimentos,
Gabriel Mithá Ribeiro
Viva, Gabriel,
EliminarMuito obrigado pela mensagem. É curioso comunicarmos desta forma... Já fiz a correcção e o MALOMIL aguarda notícias da Beira!
Um abraço,
António Araújo
Obrigado, António, e obrigado pela paciência. Reagi enquanto ouvia as notícias que me amarraram a uma dose de comoção moral que, por aqui, não se nota por aí além face ao que vai ocorrendo. Não tenho o direito nem o dever de julgar, mas apenas de tentar compreender esta sociedade e os seus fenómenos, sempre complexos. Como diria Freud, sempre entre o manifesto e o latente, e interessa-me sobretudo o último, o recalcado, o que está para além do óbvio. Por isso mesmo, quanto mais perto dos linchamentos e das mortes, menos deveria permitir-me soltar emoções num dia como hoje, «cheio».
EliminarUm grande abraço,
Gabriel Mithá Ribeiro