Aguarela de Paul Hogarth
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13-VIII
Aix revisitada
As cidades são como
pessoas, isto é, ligamo-nos ou resistimos a elas como o fazemos com os outros
viventes que nos rodeiam. Em ambos os casos, a estima ou desafecto que nos liga
a elas perde-se ou aumenta seguindo a mesma química complexa dos sentimentos inter-humanos.
Passámos quatro abençoados anos de Exílio aqui, nesta radiosa cidade-refúgio,
onde a Guida Miriam como eu conseguimos fazer poucos amigos íntimos nesse
período feliz de expatriação, ocupados cada um de nós com os seus afazeres
essenciais e absorventes, ela coma educação dos nossos filhos, cujo número
aumentou com o nascimento da Sibila em Aix, eu com o ensino na universidade e a
escrita dos meus livros, esperando sempre o Regresso à Ítaca voluntariamente
perdida para escaparmos à humilhação de viver debaixo da Ditadura de Salazar e,
por fim, de Caetano. As constantes revisitas feitas nos anos seguintes a Aix,
com a peregrinação ritual ao bairro das Tourelles, onde tínhamos alugado um
apartamento donde víamos a emblemática montanha de Sainte-Victoire, aquela que
Cézanne incessantemente pintou e repintou, foi a nossa maneira de reavermos uma
época, apesar de tudo feliz, ali passada.
Foi nesses sossegado
recanto periférico que vivemos esse quadriénio feliz, junto do pequenino rio
Arc, o mesmo onde, muito tempo antes, Émile Zola e Paul Cézanne pescavam
camarões quando por aqui viveram também. O nosso apartamento ficava num
primeiro andar duma pequena vivenda, com vizinhos que nunca visitámos nem nos
visitaram, já que o gaulês, mesmo do Midi, não é dado a acolher estrangeiros.
Verdadeiramente falando, só tivemos dois amigos íntimos, Mme. Gravagne,
professora primária dos nossos filhos na escola infantil a dois passos de nossa
casa, e o seu marido, um simpático e culto professor de Latim num liceu de Aix, contente por descobrir em mim um admirador de Virgílio e
Ovídio. Curiosamente, esta estima reforçou-se sobretudo quando, a seguir ao 25
de Abril de 1974, esta casal nos convidou para uma almoço destinado a celebrar
a democracia portuguesa e, ao mesmo tempo, hélas!,
a nossa partida definitiva em regresso a Portugal. No nosso bairro tínhamos
ainda uma vizinha próxima que nos estimava muito por via do seu filho ser meu
aluno na Faculdade de Letras de Aix, o estabanado e sempre jovial Marc Cleaver,
cujos conhecimentos de língua portuguesa
levariam a visitar o Brasil
e ali coleccionar, desde então,
desastrosas ligações amorosas tão ardentes quanto breves, sempre com mulatas
brasileiras que enchiam de desgosto a pobre Madame
Cleaver, uma viúva delicada e muito infeliz.
Eram, em contrapartida,
quase inexistentes as nossas relações com os outros colegas no medíocre
departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Faculdade de Letras,
chefiado por um francês das Landes, um barrigudo e pedante especialista de
teatro dos Jesuítas em Latim, no século XVII, que dessa especialidade literária
tão aberrante conseguiria a pirueta extraordinária de saltar para o ensino da
língua portuguesa e a direcção do departamento. Estava ele casado com uma
senhora católica e muito carola. Os demais professores do departamento também
não valiam um figo, havendo ainda um brasileiro semianalfabeto que prosperaria,
apesar da sua vacuidade intelectual, naquele acanhado mundo académico do Midi,
espécie de Aldeia dos Macacos numa terra ensolarada. Nenhum deles deixou
vestígios de assinalar nos estudos de que se diziam profissionais encartados.
Contudo, para mim, pestiferado aos olhos das autoridades portuguesas, mesmo
depois do refalsado aggiornamento
político da Ditadura levada a cabo pela hipócrita cosmética de Marcelo Caetano
– que crismava a Censura de Exame Prévio, a PIDE de DGS (Direcção-Geral de
Segurança) e, sobretudo, persistia na criminosa guerra colonial em três frentes
africanas –, [1] aquele lugarzito na
Faculdade de Letras de Aix (o velho edifício universitário anterior ao nosso
moderno prédio, ostentava pomposamente, incisa na fachada, a menção de ser
“Aquarum Sextiarum Literarum Facultas”) garantia-me pelo menos um viático
suficiente para esses anos de espera, mesmo que o grau de doutor pela
Universidade de Estrasburgo não me tivesse dado ali a posição académica a que
tinha direito. “Faça-se nacional, peça a nacionalidade francesa – e então lhe
daremos o lugar de maître-assistant (professor
auxiliar)!”, dizia-me com azedume o meu barrigudo director, conselho que, por
fim, decidi seguir, preenchendo os papéis necessários para vir a adquirir a
nacionalidade francesa nesse anos em que Portugal não passava dum país com três
guerras coloniais e sem hipótese alguma de entrar na Comunidade Económica
Europeia. Felizmente a lentidão do processo e, sobretudo, as minhas hesitações
em abdicar da minha escarnecida e aviltada nacionalidade lusa, tornaram o meu
processo de aquisição da cidadania francesa tão lento que o 25 de Abril chegou
e, com ele, a solicitação foi deitada às urtigas. A nossa vida ensimesmada
naqueles quatro anos aquenses-sextienses tinha aspectos que, olhados agora de
longe no tempo, parecem bizarros, como o de não usarmos de telefone, já que
este pouco ou nada serve para quem vive isolado numa ilha e não coabita com os
outros ilhéus nem precisa de entrar em contacto com a pátria longínqua donde se
exilou.
E agora, passeando uma
vez mais pelas ruas da sempre airosa Aix, sinto com uma recalcada tristeza que
já nada me prende a ela, que talvez nunca mais aqui volte a subir o Cours
Mirabeau, debaixo da sombra dos seus plátanos, a esta terra onde outrora passei
quatro anos de Espera e Desespero e até consegui ser feliz, na medida em que
até no Exílio a alma busca consolações que lhe façam esquecer as suas
tribulações mais secretas e insuperáveis, confiante embora na vinda do
Encoberto no final da expatriação tão longa e. apesar de tudo, útil.
João Medina
[1] Eu agravava,
nesses anos de expatriação francesa, a minha desafeição pela nossa Ditadura
lusa colaborando na Seara Nova e no Diário de Lisboa, publicando neste
último com uma crónica semanal que vinha já dos tempos de Estrasburgo, em 1968,
“A Torre de Babel”.
Aix, sim. Cachet. Pavilhão Vendôme. Plátanos.
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