sábado, 8 de junho de 2013

O Testamento de Maria e o Testemunho da Mãe de Jesus.








 

Há livros que nos interpelam de um modo especial. A mim acontece-me não pela sensibilidade do tema, ou sequer pelo modo chocante, ou até ofensivo, como o tratam. Mas pela dificuldade em encontrar a chave da narrativa, dificuldade tanto mais angustiante e insuportável quanto maior for aquela sensibilidade.

Sobre o Testamento de Maria, o último livro de Colm Tóibín [1], escreveu recentemente o autor:

«A figura de Maria na novela que escrevi depois de a atuação teatral ter terminado está traumatizada[2]; na sua voz perpassa o terror e a dor, mas também uma espécie de inteligência forte. Maria está presa nesta casa, presa por dois homens que podem ou não ser S. João e S. Paulo e que estão já a recriar o que se passou com o seu filho de modo a que se torne uma fé. Não gostam dela, tal como ela os despreza. Maria tem medo, no entanto, e precisa da proteção deles. Está preocupada com a verdade do seu próprio sofrimento, a verdade do que viu; eles pretendem, ao escrever uma versão do que aconteceu, construir uma religião.»

E acrescenta Tóibín:

«Os dois homens sonham com a pintura de Ticiano, em toda a sua glória, no Frari em Veneza; Maria tem pesadelos sobre o Tintoretto em toda a sua crueldade vivida e suja.

Uma vez, uma só vez, Maria terá a possibilidade de dizer o que se passou. As palavras dos seus guardiões, pelo contrário, viverão ao longo dos séculos. A versão de Maria da morte de Lázaro, ou da festa de casamento em Canaã, ou mesmo a crucificação pertencem à memória pessoal, ao tempo perdido, mais do que ao mito ou mesmo à fé. Maria fala num presente eterno, numa paisagem dominada pelos deuses gregos, onde viveu todos os seus dias. O seu próprio judaísmo também agora pertence à memória.»[3]

Este texto dá-nos bem o argumento central da obra: o contraste entre a glória que viam os fundadores da nova religião, e que o pincel de Ticiano soube exemplarmente fixar muitos séculos depois no seu quadro Assunção da Virgem (1516-1518), e o horror que a mãe de Jesus presenciou, captado por Tintoretto no seu quadro Crucificação, de 1565.
 
 
Ticiano, Assunção da Virgem, 1516-1518

Tintoretto, Crucificação, 1565
 


E, na verdade, o convívio insuportável entre a vida quotidiana que continua insensível e o sofrimento atroz impotente para a deter, bem presente no quadro de Tintoretto, carateriza a descrição da crucificação que nos é dada por Tóibín. Quando Maria chega ao Gólgota, chama-lhe a atenção o facto de que

«era fácil alguém passar despercebido no meio dos que lá se encontravam, todos a falar ou a rir, alguns montando cavalos ou burros, outros comendo e bebendo, os soldados gritando numa língua que não compreendíamos, alguns com cabelos ruivos e dentes partidos e caras grosseiras. Era como um mercado, mas de algum modo mais intenso, como se o ato prestes a decorrer fosse dar lucro ao comprador e ao vendedor ao mesmo tempo» (p. 75).

Já a imagem gloriosa da mãe de Jesus não é assumida, mas quase imposta pelos dois homens que a acompanham e a protegem e que «podem ou não ser S. João e S. Paulo»[4]. Estes, segundo a Maria de Tóibín,

«pensam que não compreendo o que está lentamente a crescer no mundo; pensam que não vejo a razão de ser das suas perguntas e não me apercebo da cruel sombra de exasperação que se esconde no seu rosto e na sua voz quando digo alguma coisa vaga ou tola, alguma coisa que nos leva a lado nenhum. Quando pareço não me lembrar daquilo que pensam que me devo lembrar. Também eles estão fechados nas suas vastas e insaciáveis necessidades e demasiado entorpecidos pelos restos de um terror que todos sentimos então para se aperceberem de que me lembro de tudo. A memória enche o meu corpo tanto quanto o sangue ou os ossos» (p. 4).

Mas não são apenas as imagens que fazem a inspiração de Colm Tóibín. Está também presente na obra o Evangelho segundo S. João, sobretudo no lugar que no livro ocupam a morte e a ressurreição de Lázaro. O episódio de Lázaro não é importante apenas porque desencadeia a condenação de Jesus (Jo 12, 45-57), mas também, e ao mesmo tempo, porque no livro marca o surgimento de uma nova perceção que Maria tem do seu filho:

«‘Mulher, que tenho eu a ver contigo?”, perguntou-me, e logo depois mais alto para que todos pudessem ouvir. ‘Mulher, que tenho eu a ver contigo?’

‘Sou tua mãe’, disse eu. Mas por esta altura tinha começado a falar com outros, conversas pretensiosas e enigmas, usando estranhos termos orgulhosos para se descrever a si mesmo e à sua tarefa no mundo. Ouvi-o dizer – ouvi-o então e reparei como as cabeças se inclinaram por todo o lado quando o disse – ouvi-o dizer que era o Filho de Deus» (p. 47).

Lázaro, por sua vez, diz Maria,

«era claro para mim que estava a morrer. Se tinha regressado à vida foi apenas para lhe dizer um último adeus» (p. 45)

Se o milagre da ressurreição de Lázaro não pode ser negado na economia da narrativa, mas apenas desvalorizado, já o mesmo não se passa com a transformação da água em vinho.

Segundo a Maria de Tóibín,

«O que então foi estranho foi a rapidez com que trouxeram aquelas bilhas para a sala. Não sei se cada uma delas continha água ou vinho, certamente a primeira continha água, mas no meio dos gritos e da confusão ninguém soube o que aconteceu até que alguém começou a gritar que ele tinha transformado a água em vinho.

(…) E então seguiu-se uma grande aclamação e todos os que se encontravam na festa começaram a aplaudir.

Ninguém notou, no entanto, que eu não aplaudi.» (p. 50)

O ponto alto da narrativa de Tóibín, e porventura o que mais enfureceu os seus leitores, está ainda para vir. E esse é o verdadeiro testamento de Maria:

«É apenas agora que posso admiti-lo, apenas agora que posso permitir-me a mim mesma dizê-lo. Durante anos tenho-me confortado com o pensamento do longo tempo que ali permaneci, do muito que então sofri. Mas tenho que o dizer uma vez, tenho que deixar as palavras sair, pois apesar do pânico, apesar do desespero, dos gritos, apesar do facto de o seu coração e a sua carne terem vindo do meu coração e da minha carne, apesar da dor que senti, uma dor que nunca me largou e irá comigo para a sepultura, apesar de tudo isto, a dor foi dele e não minha. E quando surgiu a possibilidade de ser arrastada e sufocada, o meu primeiro instinto foi de fugir e foi também esse o meu último instinto.» (p. 84)

Maria, mãe de Jesus, abandonou o seu filho na última hora:

«Digo-o agora porque alguma vez tem de ser dito por alguém: fi-lo para me salvar. Não o fiz por qualquer outra razão.» (p. 85)

Compreende-se que se pretenda explorar o conflito entre o sentimento de mãe e a perceção da divindade de Jesus. Compreende-se, até, que se pretenda fazer prevalecer aquele sentimento sobre esta perceção. Mas o que explica a cedência do sentimento materno? Por que razão Maria, mãe de Jesus, não fez o que todas as mães fariam e deixou de acompanhar o seu filho até ao fim? Por que razão Jesus, a par de todos os seus padecimentos, têm ainda de sofrer o abandono da sua mãe?

Passados anos e vivendo já em Éfeso, na casa onde alguns acreditam que morreu, sob a tutela dos seus dois guardiães, que «podem ou não ser S. João e S. Paulo», Maria também quer o seu milagre na terra:

«É simples. Se a água pode ser transformada em vinho e os mortos podem ser trazidos à vida, então eu quero que o tempo volte atrás. Quero viver outra vez antes de acontecer a morte do meu filho, ou antes de ele sair de casa, quando era um bebé e o seu pai estava vivo e havia descanso no mundo.» (p. 97)

O sentido da disposição testamentária da Maria de Cóibín começa assim a ser desvelado: tudo se passa como se, a partir do momento em que sai de casa com o propósito de encontrar Jesus nas bodas de Caná (Jo 2, 1-12) e a esperança de o fazer regressar consigo se esvai, Maria veja a sua maternidade a ceder perante o crescimento da crença na divindade do seu filho, até o seu próprio sentir de mãe acabar também por ceder. E assim adquirem também um sentido especial os sucessivos sinais que procuram evidenciar como na história de Jesus se confrontam poderes mais vastos do que os seus personagens. A presença opressiva dos dois guardiães; a figura misteriosamente dúplice de Marcos, que trata Maria como prima (p. 23), está presente em todos os momentos centrais e figura entre os que «controlavam» os acontecimentos na Crucificação (p. 79); o sentimento, veiculado por Marta e Maria, irmãs de Lázaro, de que está perto o fim do mundo (p. 65); a exigência da presença de Maria em Jerusalém, chamada a testemunhar um acontecimento já esperado antes de ela o realizar. Tudo isto parece marginalizar e esgotar a maternidade de Maria. E é rejeitando tudo isto que o milagre por si desejado é apenas o retomar da normalidade que lhe foi negada.

E é esta, afinal, a mensagem de Tóibín: Maria não abandona simplesmente o seu filho; abandona-o por causa de uma religião nascente. Ou a religião é instrumento de dissolução dos laços íntimos que nos unem.

Não, todavia, qualquer religião: no milagre desejado por Maria nos seus últimos dias inclui-se o desejo

.....«de um daqueles dias de Sabbath, dias sem vento em que havia orações nos nossos lábios, em que me juntava às mulheres e entoava as palavras, a súplica a Deus para que desse justiça aos fracos e aos órfãos, mantivesse o direito dos pequenos e destituídos, salvasse os necessitados, os livrasse das mãos dos perversos. Quando dizia estas palavras a Deus, era importante que o meu marido e o meu filho estivessem perto e que a seguir, quando regressasse a casa sozinha e me sentasse à sombra com as mãos juntas, ouvisse os seus passos e o sorriso tímido do meu filho quando o seu pai lhe abria a porta e nos sentássemos em silêncio esperando que o sol desaparecesse e pudéssemos falar de novo à vontade na paz da noite que se seguia ao dia em que nos tínhamos renovado, quando nosso o amor que sentíamos entre nós, por Deus e pelo mundo, se tivesse aprofundado e espalhado.» (pp. 97-98) [5]

É esta interpelação sobre o nosso entendimento da religião que me parece estar no centro do livro de Tóibín.

 
Lisboa, Junho de 2012
 
Miguel Nogueira de Brito








[1] Colm Tóibín, The Testament of Mary, Viking, Londres, 2012.


[2] O autor alude aqui ao facto de a novela ter tido na sua origem uma peça teatral.


[3] Colm Tóibín, “The Inspiration for The Testament of Mary”, The Guardian, 19 de outubro de 2012.


[4] Colm Tóibín, idem.


[5] As traduções no texto são minhas. O livro de Colm Tóibín foi recentemente traduzido para português pela Bertrand Editora.
 
 
 
 
 
 
 

1 comentário:

  1. E no entanto, o horror que se vê em Tintoretto está abaixo da cintura de Cristo, que tanto se parece com o horror dos nossos dias.
    Ao contrário, o crucificado, envolto em luz resplandecente, mostra a resistência e a força de quem luta pela justiça no mundo, de punhos cerrado, ombros tensos de quem suporta, e cabeça que se recusa a cair.
    Do texto que aqui li pareceu-me ver uma Maria conservadora e reaccionária, que valoriza a súplica chorosa em detrimento da luta pela justiça.
    A ser assim, antes a Mãe de Gorki!

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