Há
livros que nos interpelam de um modo especial. A mim acontece-me não pela sensibilidade
do tema, ou sequer pelo modo chocante, ou até ofensivo, como o tratam. Mas pela
dificuldade em encontrar a chave da narrativa, dificuldade tanto mais
angustiante e insuportável quanto maior for aquela sensibilidade.
Sobre
o Testamento de Maria, o último livro
de Colm Tóibín [1],
escreveu recentemente o autor:
«A
figura de Maria na novela que escrevi depois de a atuação teatral ter terminado
está traumatizada[2];
na sua voz perpassa o terror e a dor, mas também uma espécie de inteligência forte.
Maria está presa nesta casa, presa por dois homens que podem ou não ser S. João
e S. Paulo e que estão já a recriar o que se passou com o seu filho de modo a
que se torne uma fé. Não gostam dela, tal como ela os despreza. Maria tem medo,
no entanto, e precisa da proteção deles. Está preocupada com a verdade do seu
próprio sofrimento, a verdade do que viu; eles pretendem, ao escrever uma
versão do que aconteceu, construir uma religião.»
E
acrescenta Tóibín:
«Os dois homens sonham com a pintura
de Ticiano, em toda a sua glória, no Frari em Veneza; Maria tem pesadelos sobre
o Tintoretto em toda a sua crueldade vivida e suja.
Uma vez, uma só vez, Maria terá a
possibilidade de dizer o que se passou. As palavras dos seus guardiões, pelo
contrário, viverão ao longo dos séculos. A versão de Maria da morte de Lázaro,
ou da festa de casamento em Canaã, ou mesmo a crucificação pertencem à memória
pessoal, ao tempo perdido, mais do que ao mito ou mesmo à fé. Maria fala num
presente eterno, numa paisagem dominada pelos deuses gregos, onde viveu todos
os seus dias. O seu próprio judaísmo também agora pertence à memória.»[3]
Este texto dá-nos bem o argumento central da obra: o
contraste entre a glória que viam os fundadores da nova religião, e que o
pincel de Ticiano soube exemplarmente fixar muitos séculos depois no seu quadro
Assunção da Virgem (1516-1518), e o
horror que a mãe de Jesus presenciou, captado por Tintoretto no seu quadro Crucificação, de 1565.
Ticiano, Assunção da Virgem, 1516-1518
|
Tintoretto, Crucificação, 1565 |
E, na verdade, o convívio insuportável entre a vida
quotidiana que continua insensível e o sofrimento atroz impotente para a deter,
bem presente no quadro de Tintoretto, carateriza a descrição da crucificação
que nos é dada por Tóibín. Quando Maria chega ao Gólgota, chama-lhe a atenção o
facto de que
«era fácil alguém passar despercebido
no meio dos que lá se encontravam, todos a falar ou a rir, alguns montando
cavalos ou burros, outros comendo e bebendo, os soldados gritando numa língua
que não compreendíamos, alguns com cabelos ruivos e dentes partidos e caras
grosseiras. Era como um mercado, mas de algum modo mais intenso, como se o ato
prestes a decorrer fosse dar lucro ao comprador e ao vendedor ao mesmo tempo»
(p. 75).
Já a imagem gloriosa da mãe de Jesus não é assumida, mas
quase imposta pelos dois homens que a acompanham e a protegem e que «podem ou
não ser S. João e S. Paulo»[4].
Estes, segundo a Maria de Tóibín,
«pensam que não compreendo o que está
lentamente a crescer no mundo; pensam que não vejo a razão de ser das suas perguntas
e não me apercebo da cruel sombra de exasperação que se esconde no seu rosto e
na sua voz quando digo alguma coisa vaga ou tola, alguma coisa que nos leva a
lado nenhum. Quando pareço não me lembrar daquilo que pensam que me devo
lembrar. Também eles estão fechados nas suas vastas e insaciáveis necessidades
e demasiado entorpecidos pelos restos de um terror que todos sentimos então
para se aperceberem de que me lembro de tudo. A memória enche o meu corpo tanto
quanto o sangue ou os ossos» (p. 4).
Mas não são apenas as imagens que fazem a inspiração de Colm
Tóibín. Está também presente na obra o Evangelho segundo S. João, sobretudo no
lugar que no livro ocupam a morte e a ressurreição de Lázaro. O episódio de
Lázaro não é importante apenas porque desencadeia a condenação de Jesus (Jo 12,
45-57), mas também, e ao mesmo tempo, porque no livro marca o surgimento de uma
nova perceção que Maria tem do seu filho:
«‘Mulher, que tenho eu a ver
contigo?”, perguntou-me, e logo depois mais alto para que todos pudessem ouvir.
‘Mulher, que tenho eu a ver contigo?’
‘Sou tua mãe’, disse eu. Mas por esta
altura tinha começado a falar com outros, conversas pretensiosas e enigmas,
usando estranhos termos orgulhosos para se descrever a si mesmo e à sua tarefa
no mundo. Ouvi-o dizer – ouvi-o então e reparei como as cabeças se inclinaram
por todo o lado quando o disse – ouvi-o dizer que era o Filho de Deus» (p. 47).
Lázaro, por sua vez, diz Maria,
«era claro para mim que estava a
morrer. Se tinha regressado à vida foi apenas para lhe dizer um último adeus»
(p. 45)
Se o milagre da ressurreição de Lázaro não pode ser negado na
economia da narrativa, mas apenas desvalorizado, já o mesmo não se passa com a
transformação da água em vinho.
Segundo a Maria de Tóibín,
«O que então foi estranho foi a
rapidez com que trouxeram aquelas bilhas para a sala. Não sei se cada uma delas
continha água ou vinho, certamente a primeira continha água, mas no meio dos
gritos e da confusão ninguém soube o que aconteceu até que alguém começou a gritar
que ele tinha transformado a água em vinho.
(…) E então seguiu-se uma grande
aclamação e todos os que se encontravam na festa começaram a aplaudir.
Ninguém notou, no entanto, que eu não
aplaudi.» (p. 50)
O ponto alto da narrativa de Tóibín, e porventura o que mais
enfureceu os seus leitores, está ainda para vir. E esse é o verdadeiro
testamento de Maria:
«É apenas agora que posso admiti-lo,
apenas agora que posso permitir-me a mim mesma dizê-lo. Durante anos tenho-me
confortado com o pensamento do longo tempo que ali permaneci, do muito que
então sofri. Mas tenho que o dizer uma vez, tenho que deixar as palavras sair,
pois apesar do pânico, apesar do desespero, dos gritos, apesar do facto de o
seu coração e a sua carne terem vindo do meu coração e da minha carne, apesar
da dor que senti, uma dor que nunca me largou e irá comigo para a sepultura,
apesar de tudo isto, a dor foi dele e não minha. E quando surgiu a
possibilidade de ser arrastada e sufocada, o meu primeiro instinto foi de fugir
e foi também esse o meu último instinto.» (p. 84)
Maria, mãe de Jesus, abandonou o seu filho na última hora:
«Digo-o agora porque alguma vez tem
de ser dito por alguém: fi-lo para me salvar. Não o fiz por qualquer outra
razão.» (p. 85)
Compreende-se que se pretenda explorar o conflito entre o
sentimento de mãe e a perceção da divindade de Jesus. Compreende-se, até, que
se pretenda fazer prevalecer aquele sentimento sobre esta perceção. Mas o que
explica a cedência do sentimento materno? Por que razão Maria, mãe de Jesus, não
fez o que todas as mães fariam e deixou de acompanhar o seu filho até ao fim?
Por que razão Jesus, a par de todos os seus padecimentos, têm ainda de sofrer o
abandono da sua mãe?
Passados anos e vivendo já em Éfeso, na casa onde alguns
acreditam que morreu, sob a tutela dos seus dois guardiães, que «podem ou não
ser S. João e S. Paulo», Maria também quer o seu milagre na terra:
«É simples. Se a água pode ser
transformada em vinho e os mortos podem ser trazidos à vida, então eu quero que
o tempo volte atrás. Quero viver outra vez antes de acontecer a morte do meu
filho, ou antes de ele sair de casa, quando era um bebé e o seu pai estava vivo
e havia descanso no mundo.» (p. 97)
O sentido da disposição testamentária da Maria de Cóibín
começa assim a ser desvelado: tudo se passa como se, a partir do momento em que
sai de casa com o propósito de encontrar Jesus nas bodas de Caná (Jo 2, 1-12) e
a esperança de o fazer regressar consigo se esvai, Maria veja a sua maternidade
a ceder perante o crescimento da crença na divindade do seu filho, até o seu
próprio sentir de mãe acabar também por ceder. E assim adquirem também um
sentido especial os sucessivos sinais que procuram evidenciar como na história
de Jesus se confrontam poderes mais vastos do que os seus personagens. A
presença opressiva dos dois guardiães; a figura misteriosamente dúplice de
Marcos, que trata Maria como prima (p. 23), está presente em todos os momentos
centrais e figura entre os que «controlavam» os acontecimentos na Crucificação
(p. 79); o sentimento, veiculado por Marta e Maria, irmãs de Lázaro, de que
está perto o fim do mundo (p. 65); a exigência da presença de Maria em
Jerusalém, chamada a testemunhar um acontecimento já esperado antes de ela o
realizar. Tudo isto parece marginalizar e esgotar a maternidade de Maria. E é
rejeitando tudo isto que o milagre por si desejado é apenas o retomar da
normalidade que lhe foi negada.
E é esta, afinal, a mensagem de Tóibín: Maria não abandona
simplesmente o seu filho; abandona-o por causa de uma religião nascente. Ou a
religião é instrumento de dissolução dos laços íntimos que nos unem.
Não, todavia, qualquer religião: no milagre desejado por
Maria nos seus últimos dias inclui-se o desejo
.....«de um daqueles dias de Sabbath, dias sem vento em que havia
orações nos nossos lábios, em que me juntava às mulheres e entoava as palavras,
a súplica a Deus para que desse justiça aos fracos e aos órfãos, mantivesse o
direito dos pequenos e destituídos, salvasse os necessitados, os livrasse das
mãos dos perversos. Quando dizia estas palavras a Deus, era importante que o
meu marido e o meu filho estivessem perto e que a seguir, quando regressasse a
casa sozinha e me sentasse à sombra com as mãos juntas, ouvisse os seus passos
e o sorriso tímido do meu filho quando o seu pai lhe abria a porta e nos
sentássemos em silêncio esperando que o sol desaparecesse e pudéssemos falar de
novo à vontade na paz da noite que se seguia ao dia em que nos tínhamos
renovado, quando nosso o amor que sentíamos entre nós, por Deus e pelo mundo,
se tivesse aprofundado e espalhado.» (pp. 97-98) [5]
É esta interpelação sobre o nosso entendimento da religião
que me parece estar no centro do livro de Tóibín.
Lisboa, Junho de 2012
Miguel
Nogueira de Brito
[5] As traduções no texto são minhas. O
livro de Colm Tóibín foi recentemente traduzido para português pela Bertrand
Editora.
E no entanto, o horror que se vê em Tintoretto está abaixo da cintura de Cristo, que tanto se parece com o horror dos nossos dias.
ResponderEliminarAo contrário, o crucificado, envolto em luz resplandecente, mostra a resistência e a força de quem luta pela justiça no mundo, de punhos cerrado, ombros tensos de quem suporta, e cabeça que se recusa a cair.
Do texto que aqui li pareceu-me ver uma Maria conservadora e reaccionária, que valoriza a súplica chorosa em detrimento da luta pela justiça.
A ser assim, antes a Mãe de Gorki!