segunda-feira, 17 de junho de 2013

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (4).





Vincent Van Gogh





11-VIII
Estrelas cadentes

 

Passámos todos a noite de ontem, até às 23 h, à espera da anunciada chuva de estrelas cadentes. Lá estávamos os cinco, nós e a Sibila, a minha neta Matilde e o Mário, aguardando as primeiras fugitivas siderais, ouvindo na rádio o concerto de piano transmitido de Roque d’Antheron, aqui perto aliás, os olhos cravados no vasto firmamento onde o pastor dos astros ia espalhando os seus flocos cintilantes. E lá as vimos, finalmente, já fatigados os primeiras estrelas cadentes do dossel por cima de nós, cada um formulando um desejo secreto, sem o revelar aos demais. E cumprido este ritual das noites de Agosto na Provença, recolhemo-nos aos nossos quartos, para saborear o sono que as passeatas desse dia pelas terras próximas tornavam urgente. Que desejo secreto formulei eu ao ver cair a minha primeira estrela? Não, nem a este diário o confesso…

 

 

O prazer de viver sem televisão

 

 

Há uma semana que, percorrido o calvário de ir de automóvel desde o Monte Estoril ao Luberon, via Valhadolide, Jaca e Castres, chegámos a este encantador recanto provençal onde já vivemos, como se toda a nossa vida aqui se tivesse passado, retomando assim um hábito que os labirintos dos nossos anos por algum tempo interromperam. E embora estejamos aqui tão só por um mês estival, sinto de algum modo que voltei a estaraqui, numa espécie de ilha atemporal onde, de quando em quando, por uma suprema astúcia, consigo reencontrar ritualmente. Esta relativa ausência dos constrangimentos mecânicos do tempo é reforçada pela quebra de hábitos tirânico a que ninguém escapa, o de passar horas diante dum televisor que nos invade o dia-a-dia com o seu tropel incessante de factos ocorridos pelo mundo fora e outros “divertimentos”, em sentido pascaliano, que nos afastam de umas quantas preocupações essenciais. Calada a lucerna mágica, o dia torna-se mais largo, as horas passam menos depressa, e, neste caso, nem temos de desligar o aparelho que nos persegue e atormenta sob o pretexto de nos informar de uma sangrenta guerra civil no Médio Oriente, um o naufrágio dum luxuoso barco de cruzeiro ou ainda a morte duma famosa estrela de cinema, tudo trivialidades que podíamos ignorar vantajosamente se, como nos sucede nestas férias, a casa alugada não tiver televisão…Em compensação, retomo um velho hábito dos longos anos de vida em França, o de ouvir os diversos canais da excelente radiodifusão pública, a France Inter, a France Culture ou a France Musique, o que nos permite escutar, sobretudo depois do jantar, os concertos de piano no festival de música na vizinha Roque d’Antheron. Assim, feitas as contas do deve e haver de fazer dieta televisional, considero como uma bênção esta disciplina radiofónica, estasancta simplicitas que durante tantos anos foi um dos alimentos mais fortes para resistir aos anos de solidões de Estrasburgo e Aix.
,
.
 

 

Camus revisitado

 

Nos anos anteriores passados na Provença, habituei-me a fazer uma paragem obrigatória numa terra que agora fica a dois passos, a aldeiazinha de Lourmarin– onde está enterrado Albert Camus, que aqui chegara a comprar uma casa onde tencionava viver, e que havia de falecer num acidente de automóvel na viagem da Provença a Paris, em 4 de Janeiro de 1960, em Villeblevin. Agora, a dois passos daqui, Lourmarin tornou-se cruzamento obrigatório nas nossas passeatas entre o Luberon e o pays aixois. Quanto à campa do grande escritor no cemitério de Lourmarin, só a visitei uma vez, pelo convencional costume de ir ver onde ficaram inumados os restos mortais de alguém que admiramos e amamos, como era o caso deste franco-argelino que li nos primeiros anos de Faculdade, em Lisboa, mais interessado nos seus livros do que nos secos códigos que me enchiam de tédio. Devorei-o com aquela inesquecível comoção de descobrir obras que nunca mais deixei de ler e reler, obedecendo à reflexão de Jorge Luís Borges de que só uma coisa há melhor do que ler, que é reler. E reli constantemente A Queda, As Bodas, O Mito de Sísifo, A Peste,O Exílio e o Reino,O Homem Revoltado, os ensaios e crónicas jornalísticas, até os seus textos jovens do Alger-Repúblicain(os Textes Libertaires), sem falar nas reflexões sobre questões de actualidade política e estética, os três volumes de Actuelles, cada vez mais lucidamente justas e acertadas à medida que os anos passavam. Foi este Camus hedonista, libertário, anticolonialista, inimigo do marxismo e de todos os totalitarismos e, acima de tudo, prodigioso escritor, de que fiquei leitor recorrentemente grato pela sua lição de humanismo heterodoxo, prosa austeramente singela e despida de artifícios ou sobrecargas eruditas, lucidez crítica de homem do Mediterrâneo, emblema da pensée du Midi. Há obras literárias que, uma vez lidas, se integram de modo definitivo e decisivo no património mais íntimo da nosso psiquismo – no meu caso, recordo A Bela do Senhor de Albert Cohen, A Condição Humana de Malraux, A Metamorfose de Kafka, A Educação Sentimental de Flaubert, Os Maias de Eça, Os Possessos de Dostoievski, O Coração é um Caçador Solitário de Carson McCullers, O Leopardo de Lampedusa, A Vida e Destino de Grossman… –, passando esses textos a ser alimentação para o resto da nossa vida espiritual, apenas exigindo que, de quando em quando, os voltemos a ler, para neles descobrirmos algo que a vida ainda não nos tinha feito confirmar a sua validade pedagógica ou os seus dons proféticos. E, nesta perspectiva, Camus é sem dúvida um daqueles mestres de que nunca me dispensei de reler as lições que a sua obra tinha para me dar.

Ao mesmo tempo que relia as obras de Camus, outros livros de autores na moda, como Sartre, iam ficando esquecidos nas estantes da minha biblioteca, sem os voltar a ler uma única vez. Os livros, como as pessoas, envelhecem, ainda que de maneira diferente, já que algumas guardam um renovado viço e uma mocidade perpétua, enquanto outras decaem de modo confrangedor e triste, quase nos envergonhando de as termos admirado. Hoje, pensando em alguns escritores da minha adolescência e começo da maturidade, como Simone de Beauvoir e o referido Sartre e todo o demais rebanho existencialista – excepctuado Kierkegaard, autor perene –, sinto como que uma certa vergonha de os ter seguido com tanta devoção nos verdes anos. Já Camus, quando o releio, tanto na maturidade como na velhice, volto a experimentar a mesma emoção comovida que senti ao ler pela primeira vez as suas páginas verdadeiras e lúcidas na tradição dos grandes moralistas franceses, com aquela elegante e seca vibração dramática que fazia das suas páginas um deslumbramento intelectual e uma invulgar aprendizagem de vida. Raramente um autor nos invade o espírito e a imaginação com impressões tão fortes como as que me deram as leituras de obras de Camus como A Peste, A Queda ou O Exílio e o Reino–por exemplo, a descrição das primeiras semanas de flagelo em Oran, as considerações sobre a desconhecida que se afogou no Sena ou os angustiados monólogos no cenário dos canais de Amesterdão, ou ainda acerca das palavras“solidário”e “solitário”.

E estas leituras foram repetidas tanto nos tempos de universidade, da greve estudantil contra o regime salazarista, da curta passagem pela recruta militar em Mafra, mais tarde nos anos da expatriação francesa e, depois, no Portugal libertado, assim como ia perdendo, a pouco e pouco, uma a uma, as minhas ilusões estéticas e enganos ideológicos, mas sem que a bússola camusiana deixasse de ser retomada e consultada em cada fase crucial da minha existência. E creio que a ligação essencial e maior a uma obra literária ou plástica reside precisamente nesta necessidade pessoal de a revermos periodicamente, para a actualizarmos, para torná-la cada vez mais presente. Em suma, através desta ligação permanente com os seus livros, Camus, o humanista exigente e lúcido, tornou-se um daqueles mestres que formou deveras o meu psiquismo e a minha mundivisão. E agora, que por algumas semanas resido a poucos quilómetros da sua campa, onde se tornam sombra do pó os seus restos, não o volto a procurar no cemitério de Lourmarin, porque o verdadeiro Camus, vivo e imortal, esse está inteiro nas páginas que escreveu.
 
João Medina


Sem comentários:

Enviar um comentário