Vincent Van Gogh
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11-VIII
Estrelas cadentes
Passámos todos a noite de ontem, até às 23 h, à espera da anunciada chuva
de estrelas cadentes. Lá estávamos os cinco, nós e a Sibila, a minha neta Matilde
e o Mário, aguardando as primeiras fugitivas siderais, ouvindo na rádio o
concerto de piano transmitido de Roque d’Antheron, aqui perto aliás, os olhos
cravados no vasto firmamento onde o pastor dos astros ia espalhando os seus
flocos cintilantes. E lá as vimos, finalmente, já fatigados os primeiras
estrelas cadentes do dossel por cima de nós, cada um formulando um desejo
secreto, sem o revelar aos demais. E cumprido este ritual das noites de Agosto
na Provença, recolhemo-nos aos nossos quartos, para saborear o sono que as
passeatas desse dia pelas terras próximas tornavam urgente. Que desejo secreto
formulei eu ao ver cair a minha primeira estrela? Não, nem a este diário o
confesso…
O prazer de viver sem televisão
Há uma semana que, percorrido o calvário de ir de automóvel desde o Monte
Estoril ao Luberon, via Valhadolide, Jaca e Castres, chegámos a este encantador
recanto provençal onde já vivemos, como se toda a nossa vida aqui se tivesse
passado, retomando assim um hábito que os labirintos dos nossos anos por algum
tempo interromperam. E embora estejamos aqui tão só por um mês estival, sinto
de algum modo que voltei a estaraqui,
numa espécie de ilha atemporal onde, de quando em quando, por uma suprema
astúcia, consigo reencontrar ritualmente. Esta relativa ausência dos
constrangimentos mecânicos do tempo é reforçada pela quebra de hábitos tirânico
a que ninguém escapa, o de passar horas diante dum televisor que nos invade o
dia-a-dia com o seu tropel incessante de factos ocorridos pelo mundo fora e
outros “divertimentos”, em sentido pascaliano, que nos afastam de umas quantas
preocupações essenciais. Calada a lucerna mágica, o dia torna-se mais largo, as
horas passam menos depressa, e, neste caso, nem temos de desligar o aparelho
que nos persegue e atormenta sob o pretexto de nos informar de uma sangrenta
guerra civil no Médio Oriente, um o naufrágio dum luxuoso barco de cruzeiro ou
ainda a morte duma famosa estrela de cinema, tudo trivialidades que podíamos
ignorar vantajosamente se, como nos sucede nestas férias, a casa alugada não
tiver televisão…Em compensação, retomo um velho hábito dos longos anos de vida
em França, o de ouvir os diversos canais da excelente radiodifusão pública, a
France Inter, a France Culture ou a France Musique, o que nos permite escutar,
sobretudo depois do jantar, os concertos de piano no festival de música na
vizinha Roque d’Antheron. Assim, feitas as contas do deve e haver de fazer
dieta televisional, considero como uma bênção esta disciplina radiofónica, estasancta simplicitas que durante tantos
anos foi um dos alimentos mais fortes para resistir aos anos de solidões de
Estrasburgo e Aix.
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Camus revisitado
Nos anos anteriores passados na Provença, habituei-me a fazer uma paragem
obrigatória numa terra que agora fica a dois passos, a aldeiazinha de
Lourmarin– onde está enterrado Albert Camus, que aqui chegara a comprar uma
casa onde tencionava viver, e que havia de falecer num acidente de automóvel na
viagem da Provença a Paris, em 4 de Janeiro de 1960, em Villeblevin. Agora, a
dois passos daqui, Lourmarin tornou-se cruzamento obrigatório nas nossas
passeatas entre o Luberon e o pays aixois.
Quanto à campa do grande escritor no cemitério de Lourmarin, só a visitei uma
vez, pelo convencional costume de ir ver onde ficaram inumados os restos
mortais de alguém que admiramos e amamos, como era o caso deste franco-argelino
que li nos primeiros anos de Faculdade, em Lisboa, mais interessado nos seus
livros do que nos secos códigos que me enchiam de tédio. Devorei-o com aquela
inesquecível comoção de descobrir obras que nunca mais deixei de ler e reler,
obedecendo à reflexão de Jorge Luís Borges de que só uma coisa há melhor do que
ler, que é reler. E reli constantemente A
Queda, As Bodas, O Mito de Sísifo, A Peste,O Exílio e o Reino,O Homem Revoltado, os ensaios e crónicas
jornalísticas, até os seus textos jovens do Alger-Repúblicain(os
Textes Libertaires), sem falar nas
reflexões sobre questões de actualidade política e estética, os três volumes de
Actuelles, cada vez mais lucidamente
justas e acertadas à medida que os anos passavam. Foi este Camus hedonista,
libertário, anticolonialista, inimigo do marxismo e de todos os totalitarismos
e, acima de tudo, prodigioso escritor, de que fiquei leitor recorrentemente
grato pela sua lição de humanismo heterodoxo, prosa austeramente singela e
despida de artifícios ou sobrecargas eruditas, lucidez crítica de homem do
Mediterrâneo, emblema da pensée du Midi.
Há obras literárias que, uma vez lidas, se integram de modo definitivo e
decisivo no património mais íntimo da nosso psiquismo – no meu caso, recordo A Bela do Senhor de Albert Cohen, A Condição Humana de Malraux, A Metamorfose de Kafka, A Educação Sentimental de Flaubert, Os Maias de Eça, Os Possessos de Dostoievski, O
Coração é um Caçador Solitário de Carson McCullers, O Leopardo de Lampedusa, A
Vida e Destino de Grossman… –, passando esses textos a ser alimentação para
o resto da nossa vida espiritual, apenas exigindo que, de quando em quando, os
voltemos a ler, para neles descobrirmos algo que a vida ainda não nos tinha
feito confirmar a sua validade pedagógica ou os seus dons proféticos. E, nesta
perspectiva, Camus é sem dúvida um daqueles mestres de que nunca me dispensei
de reler as lições que a sua obra tinha para me dar.
Ao mesmo tempo que relia as obras de Camus, outros livros de autores na
moda, como Sartre, iam ficando esquecidos nas estantes da minha biblioteca, sem
os voltar a ler uma única vez. Os livros, como as pessoas, envelhecem, ainda
que de maneira diferente, já que algumas guardam um renovado viço e uma
mocidade perpétua, enquanto outras decaem de modo confrangedor e triste, quase
nos envergonhando de as termos admirado. Hoje, pensando em alguns escritores da
minha adolescência e começo da maturidade, como Simone de Beauvoir e o referido
Sartre e todo o demais rebanho existencialista – excepctuado Kierkegaard, autor
perene –, sinto como que uma certa vergonha de os ter seguido com tanta devoção
nos verdes anos. Já Camus, quando o releio, tanto na maturidade como na
velhice, volto a experimentar a mesma emoção comovida que senti ao ler pela
primeira vez as suas páginas verdadeiras e lúcidas na tradição dos grandes
moralistas franceses, com aquela elegante e seca vibração dramática que fazia das
suas páginas um deslumbramento intelectual e uma invulgar aprendizagem de vida.
Raramente um autor nos invade o espírito e a imaginação com impressões tão
fortes como as que me deram as leituras de obras de Camus como A Peste, A Queda ou O Exílio e o Reino–por
exemplo, a descrição das primeiras semanas de flagelo em Oran, as considerações
sobre a desconhecida que se afogou no Sena ou os angustiados monólogos no
cenário dos canais de Amesterdão, ou ainda acerca das palavras“solidário”e
“solitário”.
E estas leituras foram repetidas tanto nos tempos de
universidade, da greve estudantil contra o regime salazarista, da curta
passagem pela recruta militar em Mafra, mais tarde nos anos da expatriação
francesa e, depois, no Portugal libertado, assim como ia perdendo, a pouco e
pouco, uma a uma, as minhas ilusões estéticas e enganos ideológicos, mas sem
que a bússola camusiana deixasse de ser retomada e consultada em cada fase
crucial da minha existência. E creio que a ligação essencial e maior a uma obra
literária ou plástica reside precisamente nesta necessidade pessoal de a
revermos periodicamente, para a actualizarmos, para torná-la cada vez mais
presente. Em suma, através desta ligação permanente com os seus livros, Camus,
o humanista exigente e lúcido, tornou-se um daqueles mestres que formou deveras
o meu psiquismo e a minha mundivisão. E agora, que por algumas semanas resido a
poucos quilómetros da sua campa, onde se tornam sombra do pó os seus restos,
não o volto a procurar no cemitério de Lourmarin, porque o verdadeiro Camus,
vivo e imortal, esse está inteiro nas páginas que escreveu.
João Medina
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