Provença, desenho de Valéry Müller
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8-VIII
As irmãs Berekova na Provença
Nesta tardes mais cálidas
em que ficamos no interior da casa à espera que o sol abrande o seu ardor, oiço
obsessivamente o trio para piano nº 2 em si bemol maior, op.100 de Schubert,
assim como o Notturno op.188. Há
nestas peças, como em tantas outras do sublime vienense, uma repetição
obsessiva de notas e frases que me fascina e atrai como se estivesse a ouvir
insistentemente as mesmas palavras dum Lied
preferido, como A Tília, com a sua
negra melancolia de inverno martelada num piano, mas sem palavras, reduzida ao
puro mistério da música pura, sem sílabas saídas da boca humana a embaraçarem o
seu manar repetido nas teclas dum piano e dois instrumentos de arco e cordas. E
admiro a arte das executantes, as três manas Berekova, Elvira ao violino, Alfia
ao violoncelo e Eleonor ao piano No seu concerto mais longo, a técnica
repetitiva de Schubert atinge três cumes de emoção musical, com uma ou outra
sugestão da referida Viagem de Inverno,
com trémulos ao piano que anunciam um sombrio desenvolvimento que explode, por
fim, em duas medidas fortissimo, em
cadência au pas, reforçando a
tonalidade dolorosa destes dois trios, o que dá a sensação de que, no fundo,
estas duas peças formam uma obra única, de algum modo anunciadoras da música
minimal repetitiva dum Philip Glass.
Ouvir as irmãs Berekova
nesta tarde de calor provençal, nesta vivenda perdida no meio de ciprestes,
vinhedos e bosques, dá-lhes ainda por cima uma força dolorosa ainda maior, como
se a arte schubertiana se fosse condensando nuns tantos acordes que se vão
repetindo com melancolia extrema, tão verdadeira e tão penetrante como se só
esta música fosse capaz de me dar a verdadeira dimensão desta mágica Provença,
tão cheia de plenitude natural. Ocorre-me que a magia suprema da música
consiste precisamente neste condão de ampliar a realidade, dando-lhe uma
dimensão ainda maior àquilo que ela já é, como se sem musicalidade nada fosse
total ou verdadeiro. E quando o CD chega ao fim e os sons do trio Schubert se
evaporam nesta tarde tão quente, fico a pensar que, no fundo, o terrível facto
de termos de morrer está na certeza de que não podermos ouvir mais Schubert,
nunca, nunca mais. E que sentido pode ter um vida post-mortem se dela estarão eternamente ausentes a audição dos
trios de Schubert?
João
Medina
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