domingo, 16 de junho de 2013

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (2).






Provença, desenho de Valéry Müller







8-VIII

As irmãs Berekova na Provença

 

Nesta tardes mais cálidas em que ficamos no interior da casa à espera que o sol abrande o seu ardor, oiço obsessivamente o trio para piano nº 2 em si bemol maior, op.100 de Schubert, assim como o Notturno op.188. Há nestas peças, como em tantas outras do sublime vienense, uma repetição obsessiva de notas e frases que me fascina e atrai como se estivesse a ouvir insistentemente as mesmas palavras dum Lied preferido, como A Tília, com a sua negra melancolia de inverno martelada num piano, mas sem palavras, reduzida ao puro mistério da música pura, sem sílabas saídas da boca humana a embaraçarem o seu manar repetido nas teclas dum piano e dois instrumentos de arco e cordas. E admiro a arte das executantes, as três manas Berekova, Elvira ao violino, Alfia ao violoncelo e Eleonor ao piano No seu concerto mais longo, a técnica repetitiva de Schubert atinge três cumes de emoção musical, com uma ou outra sugestão da referida Viagem de Inverno, com trémulos ao piano que anunciam um sombrio desenvolvimento que explode, por fim, em duas medidas fortissimo, em cadência au pas, reforçando a tonalidade dolorosa destes dois trios, o que dá a sensação de que, no fundo, estas duas peças formam uma obra única, de algum modo anunciadoras da música minimal repetitiva dum Philip Glass.

Ouvir as irmãs Berekova nesta tarde de calor provençal, nesta vivenda perdida no meio de ciprestes, vinhedos e bosques, dá-lhes ainda por cima uma força dolorosa ainda maior, como se a arte schubertiana se fosse condensando nuns tantos acordes que se vão repetindo com melancolia extrema, tão verdadeira e tão penetrante como se só esta música fosse capaz de me dar a verdadeira dimensão desta mágica Provença, tão cheia de plenitude natural. Ocorre-me que a magia suprema da música consiste precisamente neste condão de ampliar a realidade, dando-lhe uma dimensão ainda maior àquilo que ela já é, como se sem musicalidade nada fosse total ou verdadeiro. E quando o CD chega ao fim e os sons do trio Schubert se evaporam nesta tarde tão quente, fico a pensar que, no fundo, o terrível facto de termos de morrer está na certeza de que não podermos ouvir mais Schubert, nunca, nunca mais. E que sentido pode ter um vida post-mortem se dela estarão eternamente ausentes a audição dos trios de Schubert?

 

 

João Medina

 

 

 

 

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